sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ana de Hollanda e o Direito Autoral - Diário do Nordeste - 30/12/2010


A perversão do perfil de negócio no meio musical não é coisa nova. Muitas bandas foram transformadas em marcas de festas, cujos proprietários passaram a alterar seus integrantes conforme demanda

A cantora e atriz Ana de Hollanda, ministra da cultura nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, vai rever o projeto que altera a Lei 9610/98, que regula os direitos autorais no Brasil. Ela tem declarado que é a favor da flexibilização do uso de obras autorais, mas não concorda que os autores sejam desapropriados, como querem as corporações do novo mercado de conteúdos.

Desde 2005 que o Ministério da Cultura (MinC) vem mexendo com esse assunto e não consegue chegar a um texto ideal. A dificuldade toda é que o debate partiu de uma fundamentação ambígua: o discurso defendia a democratização da cultura, quando na prática o que estava em jogo era o conflito entre o velho e o novo sistema comercial de produtos e serviços culturais.

O MinC iniciou as consultas públicas para a reforma da lei, impondo a gestão de licenciamento de música por meio de "creative commons", desconstruindo o sentido de autoria, antes mesmo do estabelecimento de um marco legal para o uso da internet. Abraçou o novo modelo de copyright (direito de cópia) estadunidense, disseminado desde 2002 por essa organização "laranja", chamada Creative Commons, voltada para os interesses do mercado de computadores, softwares, telefones, buscadores e provedores de acesso à Internet.

Como os conteúdos passaram a ser bens muito valiosos na nova economia, o que seria um segundo movimento da globalização econômica - o primeiro foi a ampliação da escala produtiva mundial com o aproveitamento da mão-de-obra barata dos países subdesenvolvidos - criou esse artifício para induzir, por constrangimento social ou por obrigatoriedade compulsória, os autores a renunciarem publicamente no todo ou em parte, seus direitos conferidos por lei e pactuados em convenções internacionais.

Com dois pesos e duas medidas, ficou impraticável que governo, mercado e sociedade chegassem a um consenso. Para saquear de forma acintosa um patrimônio que pertence aos criadores, as corporações do mercado digital se infiltraram nos órgãos de cultura, com uma retórica de criação de riqueza para todos, mas trabalhando a redução do caráter estético, vinculado ao autor, a uma função utilitária da obra de arte ou literária, associada especificamente ao direito comercial.

Na Convenção da Diversidade Cultural, realizada pelas Nações Unidas (2005) os "especialistas da economia criativa" foram orientados a valorizar o patrimônio simbólico como forma de beneficiar a livre concorrência. Em nome da "função social da propriedade intelectual", os autores deveriam deixar de ser gananciosos e abrir mão do recebimento pelo seu trabalho de criação, para que as corporações (que vendem conteúdos financiados por publicidade e cessão de cadastros de usuários) pudessem promover a globalização econômica e social da cultura.

Essa vulgata incorporada pelo MinC passou a fomentar uma indisposição dos usuários de cultura contra o Direito Autoral, inclusive com editais modelados em situações causadoras da impressão de que os autores estão atrapalhando a socialização do conhecimento, dos saberes e das obras criativas da humanidade. É quase inacreditável que o mesmo ministério que criou programas de tanta grandeza como os Pontos de Cultura tenha entrado na onda da mediocrização da condição humana, típica de um modelo de sociedade instrumental, inspirado na supremacia técnica.

A perversão do perfil de negócio no meio musical não é coisa nova. Muitas bandas foram transformadas em marcas de festas, cujos proprietários passaram a alterar seus integrantes conforme demanda, podendo fazer inclusive apresentações simultâneas em diferentes lugares. Lembro-me de uma entrevista que fizemos em 29/05/2007 com o Emanoel Gurgel, dono da banda Mastruz com Leite, na qual ele afirmava com rara sinceridade empresarial que o CD tinha virado apenas cartão de visita.

"Quanto mais músicas eu espalhar, mas tenho como levar as pessoas para dançar os sucessos na festa. A festa é o negócio. Descobri isso há 15 anos. O segredo para mim é não ter intermediário" (PINHEIRO, Andréa e PAIVA, Flávio, in: Na trilha do disco - relatos sobre a indústria fonográfica no Brasil, E-papers, Rio de Janeiro, 2010).

A despeito de não concordar com a maneira como essa nova configuração de negócio passou a explorar os artistas, vejo com mais simpatia declarações claras como essa do Emanoel Gurgel do que o discurso atravessado e nebuloso do MinC. Mesmo assim, diante de tudo que ocorreu, acho que o resultado da proposta de alteração da lei brasileira até que está bem próxima do possível. É natural que a adequação das leis de direitos autorais aos novos padrões tecnológicos e de comportamento precise de algumas flexibilidades, como admite a ministra Ana de Hollanda.

Referindo-se ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), a ministra adianta que não vê sentido subordinar uma entidade de classe ao poder executivo, como pretende o anteprojeto. Entretanto, algo precisa ser feito porque do mesmo jeito que os autores não merecem ser planificados pelo rolo compressor das multinacionais do mercado de conteúdos, é inaceitável que os compositores fiquem à mercê do cartel do ECAD, montado em um sistema de excelência tecnológica e policialesca para arrecadar, mas cheio de corpo mole e de "deficiência prática" na hora de distribuir.

Ana de Hollanda, na condição de filha de Sérgio Buarque, irmã de Chico e senhora de uma consistente experiência como artista e gestora cultural, sabe muito bem o tanto que o Brasil precisa contar com a cultura para poder entrar de fato no mercado da economia criativa. Deixando seus compositores à míngua, o País, um dos mais férteis do mundo em inventividade musical, somente reforçará a concentração do mercado fonográfico mundial, 80% dominado pela Alemanha, Estados Unidos, Holanda e Áustria. Na balança comercial o déficit brasileiro é de aproximadamente um bilhão de reais na área cultural.

A determinação de que vai rever a proposta de reformulação da Lei de Direitos Autorais é um sinal de que Ana de Hollanda está disposta a uma ação sociocultural e política do Estado, diante desse controle da cultura pelo mercado. Na entrevista coletiva que concedeu à imprensa no dia 22 passado, na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, ela destacou que pretende aproximar a cultura da educação. No campo da música, por exemplo, isso será formidável, considerando que o até o mês de agosto de 2011 as escolas brasileiras oferecerão obrigatoriamente o ensino da música na Educação Básica.

Um ponto que merece ser revisto na questão do Direito Autoral é o imbróglio que foi feito entre Propriedade Intelectual, como produção funcional, e Direito de Autor, enquanto criação artística e literária. Esse é o calcanhar de aquiles nesse debate. É muito vulnerável a compreensão do que distingue uma obra que não depende necessariamente do mercado para cumprir a sua função social ou existencial e a criação de um novo "software", do "design" de um carro e de um "jingle", que têm em comum um sentido funcional, quer seja produzido de forma independente ou sob contrato de trabalho.

Em linhas gerais, o desafio que a ministra Ana de Hollanda coloca para a sua gestão, no que diz respeito a Direito Autoral, passa por um aperfeiçoamento dos resultados dos esforços controversos que o MinC vem fazendo em favor da economia e do acesso democrático à cultura.

Nesses cinco anos de estica e puxa, fiz várias reflexões sobre esse assunto, parte delas expostas novamente aqui. Para mim, o que deveria orientar essa discussão seria o princípio de que todo produto e todo serviço protegido por esses direitos deveriam ser liberados para cópia e compartilhamento, exceto se utilizados para fins comerciais, institucionais e políticos, com a devida remuneração dos autores.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A marca autoral do consumidor - Diário do Nordeste - 23/12/2010

A grande revolução no consumo seria, nessa hipótese, a união da criatividade com o conforto (...) As políticas de banda larga deveriam antes de tudo serem fundamentadas em razões culturais

Dezembro de 2010. A economia mundial continua sob os efeitos cambaleantes da quebra do sistema hipotecário estadunidense que levou a colapso o mercado financeiro em 2008. No Brasil, a situação desvia-se da regra, em consequência da combinação de fatores como renda maior, desemprego menor, ampliação da base de consumidores, aumento de crédito e a queda no preço dos importados, provocada pela desvalorização do real na guerra do câmbio.

Em 2008, pouco antes da crise, um estudo da agência norte-americana Young & Rubican traçava o perfil do que os consumidores tinham em comum, independente de classe social, gênero, poder aquisitivo, faixa etária e referências culturais. Com variação de predominância por região, os tipos resumiam-se entre: a) fieis a marcas tradicionais, b) ostentadores do status de consumidor; c) compradores comedidos; d) novidadeiros; e) politicamente corretos; f) avessos a inovações; e g) voltados para preços e gratificação instantânea.

No mesmo ano de 2008, as principais megatendências de estilo de consumo, projetadas pela Future Concept Lab, empresa italiana de pesquisa social e de mercado, apontavam para: a) a gratuidade da experiência compartilhada; b) o gosto autêntico como impulsionador de compra; c) a atração pelas linguagens lúdicas; d) a regeneração dos estilos do passado; e) a circunstância como resposta às paixões; f) a qualidade do tempo e do espaço como variável do desejo.

As duas prospecções oferecem um panorama bem razoável das características do consumidor contemporâneo. Francesco Morace, presidente da FCL chegou a organizar um livro, intitulado "Consumo Autoral - as gerações como empresas criativas" (Estação das Letras e das Cores, SP, 2009), no qual tenta mostrar a unicidade existente em fenômenos aparentemente distintos. Neste aspecto, ele descola o consumidor que é ao mesmo tempo autor e ator de suas próprias escolhas de consumo, daquele sobre o qual ainda prevalece a influência das marcas e da publicidade.

Achei formidável esse conceito de o consumidor ter uma marca autoral. O que o meu pensamento passa à margem da tese de Morace é quanto aos motivos que podem levar as pessoas a essa condição de autonomia nas decisões de compra. Ele acredita que florescerá da cultura colaborativa, fomentada pela nova economia, um novo consumidor que considerará as marcas e os produtos seus companheiros de vida. Particularmente entendo que parte da sociedade caminha para o consumo autoral, mas como expressão consciente do que tenho chamado de social-ambientalismo participativo.

Os colaboradores de Francesco Morace entendem que para esse consumidor autor desabrochar faz-se necessário repensar, recriar e redesenhar o mercado, de forma a contemplar o sentido de inovação existente na experiência do consumidor. Acreditam que os bens de criatividade já são uma prioridade para muitos indivíduos. Entenda-se aí como bem de criatividade, os relacionais, os culturais, enfim, os de longo prazo; diferentes, portanto dos bens de conforto, voltados para estímulos imediatos, de curto prazo.

A grande revolução no consumo seria, nessa hipótese, a união da criatividade com o conforto. O uso da rede mundial de computadores e das tecnologias digitais por comunidades colaborativas para o desenvolvimento de projetos comuns seria uma maneira de chegar a uma visão neorrenascentista das profissões, do consumo e do mercado. Algo como uma retomada dos valores humanos, pelo abandono da velha lógica de uma globalização surda a qualquer diferença.

No novo mundo do consumo autoral, as pessoas exercitariam a capacidade de escolher, de interpretar, combinar livremente serviços, produtos e estéticas porque teriam seus genius loci respeitados e uma coerência experiencial de serem consumidores de produtos e serviços dos quais têm participação como protagonistas criativos. Não sei não, essa vulgata me parece mais uma justificativa para a socialização de produtividade, em favor de uma nova mais valia.

O estudo da Future Concept Lab insiste em avisar que a nova economia teria revolucionado os valores essenciais da existência, alterando assim a racionalidade que tem guiado o comportamento dos indivíduos no mundo do consumo. O consumidor autoral, urdido por novos modelos de pensamento coletivizado, estaria com seu campo estético mais alargado e poderia assumir o papel antes atribuído ao crítico. Isso o faria ter uma inteligência de escolha orientada por sua própria sensibilidade.

Como cogitação do processo dialético esses argumentos são atraentes e me parecem necessários ao avanço das urgentes discussões relativas ao consumo. Afinal, a ideologia do consumismo vigente nos faz devorar ¼ a mais do que as condições de reposição da natureza. Mas, sinceramente, não espero consciência de consumo advinda desse novo processo de exploração do capitalismo. As infovias estão controladas por novos sistemas de captura de lucros em tempo real e à base de seguidores que interagem enquanto compram e ajudam a vender.

A intensificação da convergência pela busca dos mesmos eletroeletrônicos de tecnologia mais avançada, tipo tevê de tela plana, celulares e netbooks, é uma prova de que há uma forte onda dirigindo os impulsos de consumo. Tudo isso pode, sim, estar sendo construído de forma colaborativa. Quer dizer: independentemente de quem sejam, de como e onde vivam ou de suas condições culturais, ao serem assimilados como seguidos ou seguidores, os usuários assumem uma sintonia coletiva, capaz de torná-los marqueteiros sem causa.

O que seria consumo autoral nesses casos acontece em um brete comercial de pouca graça. Explico melhor: você pode escolher um aparelho celular que dance tango e que fotografe no escuro. Faça o que quiser, escolha o que quiser, desde que compre um novo celular. Isso me parece com a variante da teoria dos jogos que leva um participante a tomar uma determinada decisão por considerar que os outros estão se comportando do mesmo jeito.

Para mim, a tendência a um autêntico consumo autoral somente será confirmada no dia que deixarmos de pensar na popularização do acesso ao mundo das redes digitais por motivos prioritariamente econômicos. As políticas de banda larga deveriam antes de tudo serem fundamentadas em razões culturais. Encaradas assim, ter um computador deixaria de ser uma estatística de inclusão para ser uma inclusão no debate do que fazer com ele. O consumo autoral deve estar além da noção de serviços ou produtos, cujos pressupostos ainda são pouco claros em uma sociedade modelada por impulsos consumistas.

A internet produziu uma excelente inflexão em nossos parâmetros de consumo, tanto na pesquisa de preços quanto nas opções de compra e no exercício dos direitos do consumidor. Espalhar na rede experiências de compra, principalmente quando negativas, tem sido comum, até como desabafo, catarse, demonstração do novo poder de afirmação e de negação da parte do consumidor. Isso não significa, todavia, que estejamos inclinados a deixar de lado a economia de consumo para voltarmos a uma economia de produção.

Esteja no perfil sistematizado pela Young & Rubican ou dentro das megatendências projetadas pela Future Concept Lab, a marca autoral do consumidor é um tema empolgante e necessário. A reversão do quadro de degradação do planeta está diretamente associada à nossa tomada de consciência no que diz respeito à sustentabilidade. Isso, sim, pode nos levar definitivamente a assinar nossas escolhas.



sábado, 18 de dezembro de 2010

Nos bastidores do Facebook - Diário do Nordeste - 16/12/2010


A influência das tecnologias na modelagem do nosso gosto pela vida sempre esteve presente nas construções civilizatórias (...) O caso do Facebook como negócio é tão interessante e complexo quanto o que ele representa como mecanismo de bate-papo
Vi finalmente o filme "A Rede Social" do diretor David Fincher, que trata do fenômeno do Facebook. Como usuário eventual deste website de relacionamento que conecta meio bilhão de pessoas em mais de duzentos países, estou entre os que se interessam em saber o que se passa nos seus bastidores. Com edição ágil e ao mesmo tempo aparentando durar mais do que os seus 190 minutos, o drama estadunidense é uma das boas produções cinematográficas de 2010.
Diante das tantas possibilidades de reflexões a que o filme nos instiga, chamou a minha atenção o comportamento dos protagonistas, enquanto símbolos do estado de vazio ético viralizado na cultura tecnológica digital e na condição de insensíveis empreendedores da nova economia. Passei toda a sessão variando de opinião sobre os humores do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e de seus, digamos, seguidores e seguidos, já que ali não dá para chamar ninguém de amigo ou companheiro.
O filme revela o quanto essas redes têm de vínculo vulnerável por trás das maravilhosas oportunidades que elas oferecem. Uma das chaves do magnífico sucesso do Facebook é a capacidade da ferramenta de aproximar pessoas para conversas de poucas palavras e sem qualquer risco de contaminação corporal.
O traço de personalidade mais comum dos personagens é... não sei. O que dá para perceber é um conjunto de distúrbios entrelaçados. Não é narcisismo porque o narcisismo requer a presença de amor, mesmo que exageradamente a si mesmo. E o que parece é que eles não gostam nem de si. São pessoas afetadas, carentes de atenção, histriônicas, todavia centradas no jogo do domínio dos algoritmos.
Tem algo muito confuso na conduta obsessiva e compulsiva dos novos magnatas dependentes de tecnologia, de acordo com a abordagem do filme. O que representaria a arrogância nerd combinada com déficit de sociabilidade? Uma mistura de esquizofrenia com psicose grupal? Acho que não... eles não chegaram a perder o contato com a realidade... Sabem muito bem ganhar dinheiro com coerência harvardiana.
A situação problematizada é delicada. Tratei de mudar de pensamento e comecei a observar "A Rede Social" pelo que o filme mostra de vazio ético, estruturado na desconstrução da privacidade. Seria isso o significado de toda essa vida de jovens cercados por tecnologias, que convivem sem conviver e sequer duvidam de não ter dúvidas?
Mark Zuckerberg teria se aproveitado de ideias dos seus colegas de universidade para, com sua habilidade de programador de computador, ampliar o clube, compartilhando inclusive a intimidade da namorada. É como se a cultura tecnológica digital trouxesse um novo prazer, ainda sem parâmetros de disciplina; um prazer que não necessita do gostar de nada para ter sentido.
A influência das tecnologias na modelagem do nosso gosto pela vida sempre esteve presente nas construções civilizatórias. A internet ampliou vertiginosamente os nossos espaços sociais e geográficos. Claro que isso gera uma dificuldade para suportar tanta grandeza. Ao expor a privação ética de pessoas voltadas para uma ferramenta de visibilidade, o filme denuncia uma visão de mundo wiki, contraditoriamente restrita à Inteligência aplicada ao individualismo.
Em pessoas com a genialidade estritamente técnica e empreendedora de Mark não deve haver crença nem razão. Haveria o quê, então? Essa é uma incógnita. Uma causa certamente não é. Como ferramenta configuradora de novos padrões de conversa o Facebook ainda tem muito em que se aperfeiçoar. O caso mais exemplar de limitação dos seus algoritmos sociais, das suas sequências determinadas para o estabelecimento das relações entre usuários, está na ausência de mecanismos capazes de encerrar a conta de quem morre.
Quem já recebeu o aviso do Facebook para retomar o contato com alguém que já morreu tem sentido muitas perplexidades. Até onde um portal de relacionamentos estará alterando a lógica da nossa relação com a morte? Nessa perspectiva já estão sendo instalados no mercado vendedores de garantia da permanência dos usuários nas redes sociais, mesmo depois de mortos. Assim, a existência passa a ser proporcional aos anos que o cliente pode pagar para ficar "vivo" na rede, encurtando a vida eterna, que continua um serviço de exclusividade das religiões.
Quer dizer: com a internet nem tudo virou infinito. Essa sensação de que a vida eterna tem prazo de validade, associada à sensação de impotência diante do número extraordinário de informações disponíveis e de contatos que podem ser travados por meio das plataformas de conectividade, virou uma virtualidade sufocante. No filme, essa aflição das possibilidades consome a vida de Mark, enquanto ele alcança o topo da escala das grandes fortunas mundiais.
O caso do Facebook como negócio é tão interessante e complexo quanto o que ele representa como mecanismo de bate-papo e outras necessidades da cultura tecnológica digital, acrescidas a todo instante de novos e atraentes plugins, de novos componentes adicionais de funcionalidade.
Em 2004, o então "The Facebook" não passava de um mural com perfis e interesses de usuários. O filme conta que foi Shawn Fanning, o criador do Napster, quem sugeriu tirar o "The", simplificando a marca para Facebook. Aliás, abrindo aqui um parênteses, esse Fanning aparece ao longo do filme como um dos babacas do vazio ético. Assim como Mark, ele não passava de um obcecado programador de computador, quando em 1999 apareceu com a sua formidável plataforma de baixar música gratuitamente, provocando uma inflexão no mercado fonográfico.
Fanning vendeu o Napster e saiu abrindo empresas e vendendo, em uma narrativa marcada por falta de foco e ausência de motivo. Está milionário também. A impressão que dá pelas notícias que se lê do seu desempenho como empreendedor e consultor é que ele não sabe muito bem a razão de estar fazendo tudo isso. Pelo jeito, está dentro do que eu chamaria de anedonia social, ou seja, faz parte do grupo de indivíduos que não desfruta da capacidade de sentir prazer por ter uma vida em sociedade.
Mark, por sua vez, conseguiu desenvolver um inovador e eficaz sistema de publicidade direcionada e serviço de venda de cadastro de consumidores. O Facebook termina o ano de 2010 anunciando o registro da palavra "Face", simplificando mais ainda a marca, e preparando-se para lançar ações na bolsa, na expectativa de ser uma transnacional de um trilhão de dólares.
Depois de ver "A Rede Social" fiquei um bom tempo matutando sobre o comportamento dos seus protagonistas, como ícones da cultura tecnológica digital e da nova economia. O filme sugere que estamos diante de pessoas que renunciaram ao amor, à paixão e à amizade para construir um sistema de recompensas fora da função do prazer. É como se houvesse um vício no desejo de ser notado e seguido, mas houvesse concomitantemente a vontade de não ser alcançado de fato.
Embora enfadonho, o trabalho do diretor David Fincher é de grande valor, por apresentar uma versão questionadora dos mitos da genialidade de algumas mentes brilhantes que muitas vezes aparecem fora de contexto e não refletem o quanto podem ser apenas subprodutos de preferências induzidas em estado adaptativo.
O filme é baseado no livro do escritor norte-americano Ben Mezrich, cujo título, em tradução livre, é "Bilionários por acaso: a criação do Facebook, uma história de sexo, dinheiro, genialidade e traição".Parece-me bem mais que isso: os bastidores do Facebook mostram uma experiência de prazer que não está no sensório, no sexual, nem no social... e muito menos nas dimensões artística e transcendental. Talvez não seja mesmo nem prazer. Talvez não seja mesmo apenas um filme.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Itamar, hein?, é outra coisa - Diário do Nordeste - 9/12/2010


Foram de apenas cinco artistas da música, produtores de obras extensas, consistentes e de qualidade, que eu colecionei quase a totalidade dos discos nos meus anos de estudante, quando defini minhas preferências musicais:Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, Elomar Figueira de Melo, Mercedes Sosa e Itamar Assumpção. Segui e sigo adquirindo novos gostos em música, mas toda vez que escuto o som dessa gente tendo a me emocionar de forma especial.

Eu nunca havia pensado sobre isso, até o domingo passado (5), quando assisti ao show da banda Isca de Polícia, no auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. As cantoras Vange Milliet e Suzana Salles, os guitarras Luiz Chagas e Jean Trad, o batera Marco da Costa e o baixo Paulo Lepetit, também responsável pela direção artística e musical do espetáculo, apresentaram naquele dia alguns dos primeiros sucessos e uma dezena de composições inéditas deixadas pelo saudoso Itamar Assumpção.

Fiquei emocionado como se naquele momento abrisse com atenção e zelo um álbum no qual eu tivesse guardado decisivas recordações. O show da Isca me fez lembrar dos discos do Nego Dito, Beleléu, de como eu os conseguia, ora na Baratos Afins, em São Paulo, ora na Francinet Discos, em Fortaleza e uma vez, no Theatro José de Alencar, por ocasião de um Projeto Pixinguinha, com autógrafo do Itamar dizendo: “além de som, gosto também de orquídeas”.

Desde outubro passado, quando se iniciaram os shows de lançamento da “Caixa Preta” (Selo Sesc), estojo que traz dez discos remasterizados e dois com inéditas de Itamar Assumpção, produzidos por Beto Villares e Paulo Lepetit, que eu esperava por uma oportunidade para encaixar algum deles na minha agenda. Teve show com Naná Vasconcelos, Arnaldo Antunes, Elza Soares, Arrigo Barnabé, Denise Assunção, Alzira e Tetê Espíndola, Macalé, Zezé Motta, Zélia Duncan, Lenine, BNegão, Chico César, Kiko Dinucci, Karina Buhr, Anelis e Serena (filhas do Itamar).

Todos certamente muito bacanas, mas digo que dei sorte porque vi exatamente o que eu não gostaria de perder: o show da Isca de Polícia. Da plateia pude ler e reler as novas leituras e releituras que Vange Milliet e Suzana Salles fizeram dessa interseção entre o meu desejo de fã e um som que espontaneamente adquiri, ouvi, acompanhei e organizei como parte da minha experiência envolvente com a música. Ouvir Itamar Assumpção não é apenas ouvir suas canções, não é simplesmente apreciar seu repertório, mas sentir seu som, sentir a performance vocal e gestual de quem o interpreta.

A banda, sob o comando do Paulinho, preserva o som cheio e entrecortado, característico do Itamar, com modulações tonais e poéticas e irreverentes transposições literomusicais na extraordinária experiência de pulsão e beleza da sua obra. No início, fiquei um pouco apreensivo, achando que sentiria falta do grave da voz do Itamar em equilíbrio com o agudo das Orquídeas, o áspero e o delicado, o preto e as brancas, o colorido tonal de suas vibrações. No entanto, logo percebi que a Vange e a Suzana conseguiram cantar as mesmas notas, com sofisticada distinção de timbres, fazendo o tempo passar mais rápido em nossos corações do que no relógio.

As primeiras composições gravadas por Itamar saltam da Isca como se fossem criadas hoje: “Olha aqui beleléu, tá limpo coisíssima nenhuma meu (...) que black navalha é você, beleléu? tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia” (Luzia); “Espero ver você curtindo o reggae desse rock comigo (...) grite forte, dê um jeito, cante, permaneça comigo” (Fico louco); “Baby nada existe resguardando nossa vida, duvido que me chamem para sentar naquela mesa (...) e a grande família já não é tão grande” (Baby); “Tudo que eu podia fazer eu já fiz, no entanto você nem se toca, ainda diz que a vida não é nada mais que um beijo na boca” (Beijo na boca); e “Meu nome é benedito joão dos santos silva beleléu, vulgo nego dito cascavé” (Nego Dito).

Das inéditas, a música “Persigo São Paulo” traduz o território do Nego Dito e sua desassossegada urbanidade: “São Paulo é uma outra coisa / não é amor exatamente / é identificação absoluta / Sou eu / Eu não me amo, mas me persigo / Eu persigo São Paulo”. No momento que o Brasil vive uma emersão de sua cultura periférica do rap e do funk, essas movimentações revolvedoras da obra de Itamar, que chegam com a “Caixa Preta”, incendeiam as expectativas de possibilidades de acesso para quem está disposto a curtir mais do melhor do Brasil.

Seria maravilhoso ver a obra de Itamar Assumpção descoberta pela parte da juventude que está cheia de vontade de criar e de agitar, mas quase sempre sem condições de acessar as mais bem elaboradas referências do seu tempo. Edgard Varèse (1883 – 1965), compositor franco-estadunidense, dizia contrariando o senso comum, que os artistas não estão à frente do seu tempo, os outros é que estão atrás deles. É por essa angulação que me animo a observar a discografia de Itamar, pois o momento está propício para a música popular urbana chegar realmente aos nossos dias.

O abandono a que foi relegada cultural e educacionalmente parte significativa da população brasileira, somado ao inchaço das metrópoles, fez florescer o rap e o funk como estética oficial da periferia, cujo som pulou o muro dos condomínios fechados; o primeiro como discurso antissistema e o segundo como válvula de escape. A liga entre a base e o topo da pirâmide social e econômica é o vazio do “eu” extremado, na busca da felicidade no consumismo, e a falsa ideia de liberdade, expressa em fobias, ressentimentos e impulsos de segregação.

A música de Itamar pode perfeitamente “chegar chegando” à crônica dos rappers e funkeiros porque é música irmã, é brother, embora bastante diferenciada por sua consistência estilística e destacada criatividade literária e musical. Como Marcel Proust (1871 – 1922), a Isca de Polícia corre na recuperação de um presente que se não for bem fisgado pode ficar injustificadamente preso ao passado. A entrada em cena dos conteúdos da “Caixa Preta” atualiza a interação da nova música urbana, colocando a arte como experiência de construção.

Os dez álbuns publicados com Itamar ainda em vida foram: “Beleléu, Leléu, Eu” (1980), “Às próprias custas S/A” (1982), “Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim” (1983), “Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!” (1988), “Bicho de Sete Cabeças”, volumes I, II e III (1993), “Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora” (1996), “PRETObrás I – Por que não pensei nisso antes” (1998) e “Naná Vasconcelos e Itamar Assumpção – Isso vai dar repercussão” (2004). Os dois CDs de inéditas (“PRETObrás II – maldito, vírgula” e PRETObrás III – devia ser proibido”) foram feitos em 2010 com músicas que Itamar estava trabalhando antes de morrer prematuramente de câncer em 2003, aos 53 anos.

Se a “Caixa Preta” é uma relíquia, a banda Isca de Polícia também. O show que assisti no Auditório Ibirapuera não teve convidados. No palco, a formação da Isca foi a mesma do final dos anos 1980. Vange Milliet conta que quando o Itamar Assumpção conheceu o Paulo Lepetit, profetizou que eles tocariam juntos por toda a vida. Lá se foram 30 anos, o Itamar já partiu e o Paulinho continua tocando com ele. O converseiro no palco é assim, cheio de graciosidades e histórias para contar. Vange foi vocal das Orquídeas e da Isca, enquanto Suzana Salles antes de ser Isca foi Sabor de Veneno, com Arrigo Barnabé. Só pode mesmo é dar em coisa boa, hein, hein, hein???



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A ciência na contramão - Diário do Nordeste - 2/12/2010


Considerando que a contribuição efetiva da ciência é tão indispensável quanto o seu papel no conjunto da experiência simbólica (...) O debate que coloca a saúde como direito e não como mercadoria chegou às prateleiras das farmácias

O fascínio que a ciência construiu e acumulou historicamente em torno de si está ameaçado. Não por falta de avanços científicos inquestionáveis, pois a busca por respostas aos mistérios da vida e do mundo continua sendo muito bem desvendada por modelos cada vez mais precisos.

O que está desgastando a sua mística é a fragilidade de um horizonte moral traçado pelos abusos resultantes do excesso de subordinação da ciência ao mundo dos negócios.

O comportamento social sofre influência direta da ciência, assim como da religião. Cada um desses fenômenos tem a sua explicação evolutiva no conjunto de mecanismos mentais que ordenam a transmissão cultural. A capacidade de discernir entre o que é aceitável e que não é inaceitável tem uma parte intuitiva e outra parte que é construída com base em simulações que fazemos na combinação entre os nossos sentidos e a nossa mente.

É desnecessário conhecer como isso funciona para nos posicionarmos diante das regras coletivas de conduta. O chamado senso comum tinha até pouco tempo uma devotada confiança na verdade científica. Essa confiança está mudando porque ao invés de ir ao encontro do tendente social-ambientalismo participativo, ela se desencontra de si mesma, recusando-se a seguir como uma das grandes referências da credibilidade humana.

Esse impasse entre razão e irracionalidade é lamentável, considerando que a contribuição efetiva da ciência é tão indispensável quanto o seu papel no conjunto da experiência simbólica. A forma falaciosa e o aspecto prioritariamente econômico (e político, óbvio) de determinadas escolhas científicas, estão na contramão da reputação desse precioso apanágio das civilizações.

As notícias de novas pesquisas científicas sempre estão cobertas de curiosidades e expectativas. Na última década, os estudos sobre as proteínas das sementes de pau-brasil, realizados pela UFPE e por algumas universidades paulistas, confirmam essa minha sensação.

As descobertas de utilização da árvore que deu nome ao Brasil para o benefício da saúde têm um alcance cultural importantíssimo: a devastação ocorrida no período colonial para uso da madeira como matéria-prima para a produção de corante, encontra na medicina a sua redenção.

E com um detalhe: os pesquisadores brasileiros estão considerando à sabedoria popular que já usava o pó da casca do pau-brasil para tratar de diarreia, cólicas menstruais e recurso anti-inflamatório. Além de tentarem comprovar essas propriedades, os nossos pesquisadores conseguiram identificar na semente do pau-brasil atributos para tratamentos anticoagulantes, redução de edemas pulmonares e mal de Alzheimer. Isso, sem derrubar um único pé de pau, como se diz no interior.

Entretanto, esse tipo de notícia não tem sido comum. O que está na mídia com mais frequência e que suja a imagem da ciência é a sua característica deslavadamente venal, que vincula a "verdade" científica pública a interesses meramente particulares. Têm sido comum as denúncias de corporações multinacionais que "compram" cientistas e revistas especializadas para darem um jeito de comprovar a eficácia de seus produtos de duvidosa eficácia, difundindo-os como evidência científica.

A produção e veiculação de falsos textos científicos, assinados por pesquisadores contratados para dar respaldo aos seus conteúdos, está virando commodity e em alguns casos tem provocado ações judiciais contra a má conduta dos seus signatários. O uso de artigos científicos como marketing e de cientistas como garotos-propaganda vem sendo alvo, em muitos países, de órgãos reguladores da concorrência, de associações de consumidores e de entidades de defesa do consumo.

No centro desses escândalos encontra-se a indústria farmacêutica. O setor é acusado de limitar o acesso ao uso de medicamentos porque só pensa em lucros exorbitantes. Talvez o caso mais polêmico no universo dos medicamentos seja o da terapêutica da AIDS, que se tornou uma queda de braços entre governos e multinacionais detentoras das patentes dos compostos de drogas anti-HIV.

O uso da ciência para fins mercantis não é novidade. O que há de novo na atualidade é a troca da exceção pela regra. Nesse cenário, destaca-se a utilização de artigo científico para propaganda de produtos de consumo. "O caso mais emblemático é o do remédio Prempo, usado para reposição hormonal em mulheres na menopausa. Nos EUA, o produto gerou uma ação pública, movida por 14 mil pessoas, que acusam a droga de aumentar o risco de câncer de mama" (MIRANDA, Giuliana e RIGHETTI, Sabine, in: FSP, 8/9/2010, p. A12).

As fraudes de laboratórios, mancomunados com pesquisadores de condutas desviantes são tão alarmantes que o governo estadunidense criou um órgão, a Agência para a Integridade da Pesquisa (ORI), com a finalidade específica de tratar das denúncias de manipulação da ciência naquele país.

No Brasil, a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) está criando um selo de segurança, com código de barras, que será impresso na Casa da Moeda, para ser fixado nas caixas de remédios, como forma de garantir a autenticidade do conteúdo.

A pressão dos laboratórios para defender seus interesses é grande e passa pelo custeio de despesas de parlamentares - uma espécie de "bancada do remédio" - e pelos tradicionais patrocínios de viagens para médicos que se dispões a receitar e indicar determinados produtos a pacientes que deles necessitam ou não. No meio médico essa anomalia ética é chamada de "parceria". O lobby é tão poderoso que até os genéricos já voltaram a ser "preferidos" por marcas.

Recentemente o Conselho Federal de Medicina (CFM) tentou emplacar uma resolução para evitar a farra das viagens de profissionais da área, custeada pela indústria farmacêutica e pelas farmácias, o que restringiria essas "ajudas" apenas a quem fosse apresentar trabalho em evento científico. Não conseguiu. A força de algumas associações médicas e de promotores de eventos falou mais alto e o CFM foi forçado a criar uma comissão que elaborará um protocolo de recomendações a ser "consensado" com a indústria farmacêutica, o Conselho Nacional de Farmácias e com a Anvisa.

O debate que coloca a questão da saúde como direito e não como mercadoria levou a agência do governo brasileiro a regulamentar a venda nas farmácias e drogarias (Resolução 44/99), limitando a esses estabelecimentos a permissão para a comercialização apenas de produtos relacionados à saúde. A grita das boticas foi geral. Essa turma quer exercer função de serviço bancário, de venda de loterias e fazer promoção de venda de remédios, com "novidades" para a automedicação.

O problema do avanço do mercado sobre a ciência é tão grave que já não se sabe bem no que ou em quem acreditar. Na semana passada, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal aprovou o PLS 159/10, que proíbe a venda de mamadeiras e chupetas com a substância bisfenol A (BPA). Tomara que ande, mas a questão de fundo mesmo é o uso desses acessórios que priorizam os interesses da indústria de produtos lácteos e dos serviços de ortodontia, em detrimento do aleitamento materno.

O pior é que não se sabe o que esperar dos novos cientistas, muitos deles sendo formador com trabalhos baixados da internet ou encomendados a "consultores acadêmicos". Ao invés de aprender a raciocinar, a formular, esses falsos "expertos" tornam-se presas fáceis das corporações mal intencionadas, empurrando mais ainda a ciência para a contramão dos interesses da sociedade e para o abismo da descrença.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A autoridade metropolitana - Diário do Nordeste - 25/11/2010

A existência de autoridades metropolitanas vem sendo discutida e praticada de forma relativa em vários centros urbanos (...) Seja como for, está na hora de colocar em pauta a viabilidade ou não de uma autoridade metropolitana

A complexidade dos problemas das regiões metropolitanas é tão grande que às vezes tentar encará-las dá a sensação de que estamos diante de um destino inescapável. É como se vivêssemos em cidades que não existem mais, em aglomerações urbanas, cujos modelos administrativos não mais atendessem às demandas da cidade real.

Será que o crescimento desordenado e desigual dessas regiões não se ajusta mais a estrutura vigente de gestão pública? O que efetivamente deve ser feito para que as metrópoles e suas cidades satélites consigam o equilíbrio dinâmico necessário a um funcionamento aceitável? Como fazer alguma coisa de modo que o caos estabelecido não continue em expansão?

Em que pese a autonomia jurídica das prefeituras, a trama territorial reciprocamente cruzada entre os municípios, sem uma preocupação estratégica com o bem comum do todo, exige uma revisão constitucional que crie as condições institucionais para o funcionamento de uma autoridade metropolitana, com orçamento próprio e metas transmunicipais claramente definidas.

A existência de autoridades metropolitanas vem sendo discutida e praticada de forma relativa em vários centros urbanos, tais como Nova Iorque, Londres, Bogotá, Curitiba, Belo Horizonte, Madri e Barcelona. Soluções voltadas para o tráfego envolvendo diferentes modalidades de transporte e flexibilizações tarifarias, combinadas com ações que priorizam a locomoção em transportes coletivos e ciclovias, demonstram que são bem-vindas, mas insuficientes.

A existência de alguns instrumentos jurídicos, como a Lei Federal 11.107/2005, que "dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos", são igualmente importantes, mas também não o bastante. Até permitem a constituição de associações de entes federativos com uma certa independência para receber contribuições e subvenções econômicas de outras entidades e órgãos governamentais, porém não possibilitam uma adequada autonomia política, administrativa e financeira.

Para ter força de planejamento e gestão de sistemas integrados nas grandes cidades e suas regiões metropolitanas, a saída parece ser mesmo pela via da autoridade metropolitana. O ideal seria que juntamente com a reforma política se fizesse uma reforma das regiões metropolitanas. Algo que pudesse abranger não somente as áreas urbanas estranguladas, mas que considerasse os entroncamentos de consumo, as cidades-polo culturais, religiosas e econômicas, em torno das quais gravitam dezenas de municípios.

Basta ver as fotos noturnas dos satélites para identificar pela nebulosa de luzes onde estão essas aglomerações constituídas por ajuntamentos de municípios. A saturação desses territórios decorre de um modelo insustentável de ocupação urbana, baseada no inchaço das cidades e esvaziamento do campo. Se o problema é de modelo, temos que pensar em alternativas a esse modelo. E isso pode significar em mexidas no pacto federativo, o que torna o assunto ainda mais sensível, necessário e urgente.

Fiz um rápido exercício para tentar visualizar quais seriam os pontos mais críticos de uma gestão metropolitana integrada. Na minha visão, encontrei cinco dimensões de indiscutível transversalidade: 1) a dimensão das "vivências e convivências culturais"; 2) a "relação com o meio ambiente"; 3) o "bem-estar de segurança pública"; 4) a "mobilidade espontânea"; e 5) a dimensão das "condições básicas de vida e desenvolvimento".

Procurei escapar das abordagens setoriais e dos determinismos econômicos como norteadores das políticas públicas, quando o tema é fazer valer a integração e a potencialização individual e sistêmica das metrópoles e seus municípios periféricos. Passando de um escopo setorial para um olhar de movimentações essenciais e saindo do foco em coisas para enxergar pessoas, pude notar com mais nitidez o quanto é possível sair do parâmetro do crescimento a qualquer custo para o de convivência decente da coletividade.

Então, pensei nas "vivências e convivências culturais" como o estabelecimento de um fundo de pertencimento comum em realidades sociológicas distintas. O uso dos logradouros públicos e dos espaços privados para a circulação permanente de manifestações artísticas, para a difusão do patrimônio histórico e para atividades de lazer são exemplos de oportunidades para novas opções de vida. De igual maneira, pensei no estreitamento da "relação com o meio ambiente", por meio da revitalização das praças e dos parques, do cuidado com a sombra, da valorização do paisagismo, da redução sistemática de poluentes, da reciclagem do lixo e o estímulo à priorização das energias limpas.

O "bem-estar de segurança pública" estaria para a autoridade metropolitana como um compromisso de evitar aberrações anunciadas como a consolidação do tráfico de drogas, o confinamento da infância sem-rua, das fobias sociais e religiosas, do assalto ao voto nos períodos eleitorais, enfim, da chamada violência urbana como um todo, sobretudo com relação a impunidade a indivíduos que se divertem com a miséria dos outros. Ao lado dessa dimensão está a "mobilidade espontânea", o direito de ir e vir sem ser tangido por qualquer tipo de especulação. A acessibilidade, a desobstrução de passagens reservadas, a liberação das calçadas, o direito de andar de bicicleta e as políticas de inibição do uso do automóvel.

A quinta dimensão que imaginei como recurso de ilustração do meu pensamento a respeito da necessidade de institucionalização de uma autoridade metropolitana é o que intitulei de "condições básicas de vida e desenvolvimento". Aqui se coadunam desde as políticas de proteção social até as de ampliação da produtividade econômica. Saúde, saneamento, farmacopeia, habitação, respeito à cultura da infância e todas as práticas sociais e econômicas que nos dicionários podem ser sintetizadas na palavra habitat, no que o termo diz com relação às circunstâncias físicas e geográficas que oferecem condições favoráveis à cidadã e ao cidadão sentirem-se em seu ambiente ideal.

Tomando como referência o caos que se tornou Fortaleza em si e em sua falta de conectividade com os municípios do seu entorno, vê-se que é inadmissível continuar fazendo de conta que a situação não é grave. O problema tomou proporções tão agigantadas que a questão da competência ou incompetência dos gestores parece não bastar para justificá-lo. Fortaleza, uma cidade cuja região metropolitana tem quase a metade da população do Ceará, não pode ser administrada como se fosse apenas uma grande cidade interiorana. Sem um compartilhamento estruturado, dificilmente superaremos o quadro de ineficiência que caracteriza a nossa realidade conurbana.

A autoridade metropolitana poderia ser constituída por um Conselho de Gestão Estratégica, composto pelo governador, pelos prefeitos da região metropolitana e pelo presidente do que seria uma Câmara Legislativa Metropolitana, instância que poderia muito bem dispensar as atuais e controversas câmaras municipais dessas cidades. A organização política de cada local seria assumida pelas entidades da sociedade civil, tornando o sistema um misto de democracia representativa com democracia participativa.

Além desse conselho, a autoridade metropolitana dessa minha idealização exemplificativa, teria ainda um Comitê Executivo, de caráter eminentemente técnico e operacional. Teria orçamento próprio e nessas cinco dimensões ou em outras melhor formuladas agiria com efetividade pela força institucional de atuação sistêmica. Seja como for, está na hora de colocar em pauta a viabilidade ou não de uma autoridade metropolitana.



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A música na educação - Diário do Nordeste - 18/11/2010

A rigor, todos somos música. Não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música e os que ouvem (...) Por ser bem distribuída em todas as áreas do cérebro a música tem importância inquestionável em nossas vidas

O ano que vem será um ano muito importante para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica (Infantil e Fundamental) nas escolas brasileiras. Os sistemas de ensino do País têm até agosto de 2011 para se adaptarem a obrigatoriedade do exercício da música nas escolas, conforme determinado no texto da lei federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008.

A criação de condições para a formação artística, voltada para a cognição, a sensibilidade e a socialização estudantil, coaduna-se com as ações de reflorestamento cultural que vêm sendo implementadas pelo Ministério da Cultura em todo o País. A opção pela experiência envolvente da música é fundamental como componente intrínseco do cotidiano a um processo educativo inspirado na diversidade da cultura brasileira.

Em toda a história da humanidade a música esteve presente de alguma forma. Mesmo em épocas pré-linguísticas são evidentes os sinais da música como parte do dia a dia das pessoas e das comunidades. É comum vermos nas escavações arqueológicas a descoberta de instrumentos musicais que atestam a capacidade dos nossos ancestrais de lidar com padrões sonoros complexos.

A rigor, todos somos música. Alguns aprendem teoria musical ou a tocar instrumentos, mas não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música, os que cantam, os que tocam e os que ouvem, dançam, cantarolam e sentem sua presença no corpo e na mente. O que há, pode-se dizer, são pessoas inibidas de praticar suas habilidades musicais e pessoas que, ao se refinarem, refinam a música, merecendo assim manejo especial de madeira de lei na biodiversidade cultural.

O ato de cantar é mais natural do que falar. Para falar nós precisamos necessariamente usar um código reconhecido de comunicação, quer saibamos escrevê-lo ou não. Entretanto, para cantar basta deixar os sentimentos fluírem, agudo como o agudo dos pássaros e graves como o tom grave dos mamíferos. Em linhas gerais, inventar a canção foi mais simples do que inventar a fala. Contudo, fixar uma ou outra por meio de sinais adequados de transmissão talvez tenha grau semelhante de dificuldade e prazer.

Desde criança que gosto de inventar música. Com o saudoso amigo Pandé, fizemos o hino do nosso time de futebol; com o amigo Félix, costumava musicar romances de cordel. Fazia isso como uma movimentação espontânea da vontade, seguindo uma característica da musicalidade das sociedades nativas e africanas que se fundiram com o canto nômade dos aventureiros que povoaram o sertão. Dos aboios às cantigas de campo, a cognição musical está presente em minha vida por sincronia histórica do lugar onde nasci.

Na busca incessante de entender como pensamentos, sentimentos, esperanças, desejos e manifestações estéticas se originam, muitos estudiosos atribuem à música o poder de desencadeá-los. No livro "A música no seu cérebro" (Civilização Brasileira, RJ, 2010), o músico e neurocientista canadense Daniel J. Levitin, afirma que "a música pode ser a atividade que preparou nossos antepassados pré-humanos para a comunicação, por meio da fala, e para a flexibilidade eminentemente representativa e cognitiva necessária para que nos tornássemos humanos" (p. 294).

Afirmações como essa respaldam a decisão do Ministério da Educação e reforçam a ideia de que a música na escola não deve ter como objetivo preparar instrumentistas e cantores, nem transmitir gosto. Nada impede, porém, que essa prática estimule o talento daqueles inclinados a serem refinadores. Minha expectativa é que essa política abra espaço para que o estudante marque um encontro de caráter sugestivo com o que há de mais vibrante e desejante na essência humana.

Sempre tive comigo a sensação de que o modelo mental de um povo pode ser compreendido a partir da sua música. Uma mente germânica tem a sofisticação da música de Bach, Wagner e Beethoven, dentre outros compositores excepcionais, e os limites de conservadorismo que essa sofisticação impõe. Uma mente brasileira vive a se reinventar à flor dos neurônios, mas em geral ainda se desconhece no requinte das obras dos seus refinadores mais geniais como Villa-Lobos, Severino Araújo e Elomar Figueira de Melo.

A entrega do patrimônio musical brasileiro ao bel-prazer do mercado fonográfico, especialmente nos anos de neoliberalismo, causou danos extremamente graves no tocante à contribuição da música na atualização do desenho do nosso modelo mental. Por ser distribuída em todo o cérebro, e não apenas no hemisfério direito como se acreditava antigamente, a música tem importância inquestionável em nossas vidas. "O ato de ouvir, tocar e compor música mobiliza quase todas as áreas do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os subsistemas neurais" (LEVITIN, 2010, p.15).

Venho há uma década fazendo a experiência de associação da música à literatura, dentro da convicção de que ler e cantar é receber do jogo dos sons e das palavras a oportunidade de produzir visões. No livro/cd "Flor de Maravilha", combinei vinte histórias e vinte músicas; no livro/cd "Benedito Bacurau", experimentei o uso de vinhetas intercalando onze textos de literatura recitada; no livro/cd "A Festa do Saci", a música principal surge na história em uma composição coletiva dos personagens; e no livro/cd "A casa do meu melhor amigo", que lançarei no próximo dia cinco de dezembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, a música acontece inseparavelmente ligada ao contexto de cada um dos dez capítulos.

O que tenho aprendido com as respostas dos leitores a essa prática é que a liga da literatura com a música potencializa as emoções, não no sentido de orientar os sentimentos como ocorre com as trilhas sonoras no cinema, mas de dar mais volume às palavras, expandindo a noção de realidade no espaço de liberdade de interpretação que é disponibilizado ao leitor no campo que rebenta entre o que está escrito e que está cantado. Integrar a música ao fluxo de informações sensoriais faz bem à imagística da mente na sua construção de significados.

O processo cognitivo tem muita relação com as frequências vibratórias dos sons dos fonemas e das notas musicais. A vivência simultaneamente literária e musical aciona a consciência que temos das coisas para que possamos nos abrir às representações organizadas pelo ensino. Existem conteúdos que só encontram eco em nossa compreensão quando refletem nossos enunciados de sentimentos e emoções. Assim, o estudante pode se destravar da racionalidade para jogar com os pensamentos e seu próprio jeito de sentir o mundo.

No fenômeno perceptivo é muito importante que haja nodos de gratificação como inspiradores de estado de ânimo. Um dos grandes desafios da educação na atualidade é a busca de alternativas à aprendizagem que não desperta interesse por não ter a flexibilidade de estar no nível de habilidade de cada estudante. A minha experiência com o livro/cd, no qual a partitura integra o estatuto das ilustrações, tem demonstrado que a integração de linguagens multiplica as dimensões de trânsito da imaginação e da compreensão.

Os estudos de Daniel Levitin dizem que ouvir música aprimora os circuitos neurais, ajudando a preparar a inteligência para os desafios da linguagem e da interação social. Dentro de uma perspectiva cultural e educacional, o exercício do músculo da imaginação e da cognição, proporcionado pela reincorporação da música ao cotidiano escolar, é fundamental na reinvenção do Brasil



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Preconceito e literatura - Diário do Nordeste - 11/11/2010

Qualquer educador sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições da relação entre a Emília e a Tia Nastácia (...) No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.


Como se não bastassem as travas contra a imaginação que uma certa categoria de livros paradidáticos vem causando às crianças, agora chega o Conselho Nacional de Educação (CNE) para extremar o politicamente correto com um parecer que recomenda a suspensão de Monteiro Lobato dos ambientes escolares.

A alegação é que a literatura do autor do Sítio do Picapau Amarelo, sobretudo o livro "Caçadas de Pedrinho" apresenta expressões preconceituosas com as quais a baixa qualidade dos professores brasileiros não estaria preparada para lidar.

A junção certamente irrefletida da pobreza analítica do tema com o tratamento desrespeitoso dado às pessoas que ensinam neste País, para poder justificar o afastamento da obra de Lobato das bibliotecas e salas de aula, reflete a vulnerabilidade da clareza conceitual que ronda o âmbito das nossas políticas públicas para uma educação antirracista.

Qualquer educador com o mínimo de sensibilidade sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições explicitadas em situações conflituosas como as que regem a relação da boneca Emília com a Tia Nastácia, que é a sua mãe de confecção.

No anseio de corrigir uma irracionalidade de cunho étnico, modelada em três séculos de escravidão do Brasil colonial, os promotores da igualdade racial extrapolam muitas vezes os limites da razoabilidade. Atacar um clássico da literatura, como se houvesse um dolo, uma intenção de ofensa em suas palavras, transforma o ativista em déspota.

Dessa forma, mais do que o sentido específico do parecer do CNE, o que chama a atenção e preocupa é o fenômeno do destempero incutido nesse ato de exceção que atinge a mais livre das expressões estéticas, que é a literatura.

Esse tipo de movimentação, que faz parte de um pacote de atitudes segregacionistas importadas dos movimentos sociais estadunidenses, onde o racismo é institucionalizado, aponta para o risco de engessamento da pedagogia em nome da idealização de um comportamento destituído de preconceitos entre os seus diferentes grupos sociais.

O ataque às obras do Sítio demonstra que essa reconstrução ideológica, que em um primeiro momento parece utópica, tende mesmo a degringolar para a distopia, para o pesadelo da apartação lastreado em um processo discursivo incoerente.

Por sorte o fato envolveu a figura do escritor Monteiro Lobato, que já está calejada de sofrer esse tipo de ataque, pelos mais distintos motivos, embora sempre com um incômodo comum: sua literatura infanto-juvenil desacomoda por ser autêntica, sincera e transformadora.

Esses atributos são insuportáveis para quem arvora do status de detentor da moral da vez. Foi assim quando o Visconde de Sabugosa descobriu petróleo no quintal da Dona Benta, o que contrariou o monopólio da indústria petrolífera estrangeira, e pode estar sendo assim, caso por trás dessa tentativa de banimento escolar do célebre autor brasileiro, haja o dedo das multinacionais que avançam no mercado editorial no País.

Não custa nada desconfiar. Afinal, a história da queima de livros, inclusive os de Lobato, tem sua gênese em solo político e comercial. A professora e pesquisadora mineira Angelina Castro, autora do livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, 2010), traz à memória vária das razões que levaram à retirada das obras do Sítio das escolas, entre elas as cenas de antropofagia em "Hans Staden" e o questionamento do descobrimento do Brasil em "História do mundo para as crianças". Curiosamente, as perseguições anteriores ao livro "Caçadas de Pedrinho" foram feitas por incômodo à crítica que a obra faz à política e aos processos burocráticos brasileiros.

Enquanto de um lado o parecer do CNE orienta que "Caçadas de Pedrinho" "só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil" (Parecer 015/2010, pág. 2), o que no dito popular seria como recomendar a morte imediata da vaca para acabar com os carrapatos, Angelina é de opinião que a polêmica atual sirva exatamente para pôr de lado essa noção preconceituosa contra a liberdade literária e abra caminhos para que uma reforma cognitiva propicie o espírito observador e crítico de que tanto carece a nossa escola.

Em que pese à existência natural de expressões de época, a atualidade da obra de Monteiro Lobato é impressionante. A cada dia nos aproximamos mais do Sítio do Picapau Amarelo, tomando como referência a intenção literária do autor na criação do Brasil ideal. O exemplo mais presente dessa característica é a eleição de Dilma Rousseff para a presidência da República. Como assim?

Na literatura de Lobato, o Brasil ideal está desde o início comandado pela lógica do poder feminino, na figura da Dona Benta; enquanto no Brasil real, somente agora vamos experimentar pela primeira vez na história da República o País ser dirigido por uma mulher.

O Brasil está precisando mais de literatura que instigue a pensar do que de pesquisadores obtusos e burocratas que querem impor suas razões cartesianas ao mundo escolar. E tem mais: essa conversa de que educadores e crianças não estão preparados para lidar com situações literárias que podem ser embaraçosas a determinadas identidades mais parece aquele discurso do Pelé de que o povo não sabe votar. A falta de interação entre os órgãos de educação e cultura não só deixa o equipamento escolar à mercê do mercado, como distancia a educação da função simbólica da nossa vida cultural.

As orientações do CNE para que as obras que apresentam possibilidades de "representações negativas sobre a cultura popular, o negro e o universo afro-brasileiro" (p. 5) sejam rejeitadas ou obrigadas a ter notas explicativas à luz dos estudos atuais e críticos, configura-se como uma imposição desnecessária, considerando o quanto esse tipo de restrição à criação literária abre de precedente.

Rute Albuquerque, coordenadora do Programa de Educação do Núcleo de Estudos Negros, de Florianópolis, procura contemporizar, colocando-se ao mesmo tempo a favor do parecer e a favor de Lobato. Seu argumento é que a leitura deve atender acima de tudo à interpretação do que por vezes pode estar disfarçado por adornos criativos.

A escritora gaúcha, Lígia Bojunga, se pronunciou sobre o caso, chamando a atenção para o contrassenso que ele traz com relação aos avanços dos estudos literários sobre a noção do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão em um livro. Ela lamenta que, como está acontecendo atualmente com relação à obra de Monteiro Lobato, de vez em quando educadores de todas as instâncias manifestem desconfiança da capacidade que os leitores têm de se posicionarem "de forma correta" diante do que leem. Essa liberdade do leitor está associada ao seu universo de conhecimento, aos saberes que embalam suas crenças, ao seu modo de vida e ao seu grau de escolaridade e acesso à informação.

Os livros de Lobato estão entre os que educam pelo viés da cultura, por isso possibilitam um constante exercício do contraditório e dão espaço para a imaginação no processo cognitivo. O autor primou em sua literatura pelo exercício do pensamento e do diálogo e não por discernimentos de empréstimo, pretensamente sistematizados em conteúdos previamente estabelecidos como corretos. No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Continuidade e rupturas - Diário do Nordeste - 4/11/2010


O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas da moral religiosa, fragilizando o imaginário democrático (...) Abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação"

A eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República, no domingo passado (31/10), apresenta dois sentidos curiosos: o de continuidade, se observada como consagradora do plano de sucessão do presidente Lula; e o de ruptura, se considerado como referência o processo político brasileiro como um todo. Foi na conjunção desses aspectos que a população tomou a sábia decisão de oferecer maioria no Congresso Nacional à nova governante, mas forçando um segundo turno e mantendo o equilíbrio entre situação e oposição nos estados.

No Brasil a intuição popular parece mais bem preparada do que a razão da elite intelectual. Antes de ser um Estado-Nação, o Brasil é um estado de espírito. Daí, a vontade da população de participar da construção de uma democracia ainda empírica por que estranha às luzes das ciências sociais. Seja como for, a desconstrução da hierarquia das aspirações nacionais está confirmada nas urnas em uma repetida prática de liberdade de escolha que se consolida como despertar de inclinação transformadora.

Em mais de cinco séculos de representação política de orientação colonial, Luís Inácio Lula da Silva foi o primeiro presidente do País (2002 - 2010), com cabeça eminentemente brasileira, além de ser um trabalhador de chão de fábrica. Lula é um "Silva" legítimo. Fez o que fez para o Brasil deixar de se ver como uma nação de segunda e se afirmar no diálogo global pelo limite das possibilidades. O eleitor satisfeito disse sim ao projeto de Lula e assegurou o seu prosseguimento abrindo as portas do Palácio do Planalto para uma mulher, descendente de búlgaro (imigrante invulgar) e, como se não bastasse, ex-guerrilheira.

É natural que os representantes da tradicional política brasileira se coloquem contrários às novas forças que se estabelecem. No mundo da política é normal a quem está no poder rejeitar as crias que não são suas. O nível tenso do embate eleitoral revelou o quanto essa questão é complexa e cheia de sensibilidades. As cidadãs e os cidadãos tiveram inclusive que se submeter a circunstâncias estapafúrdias enquanto alvos da caça ao voto. O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas de moral religiosa, fragilizando e despolitizando o imaginário democrático.

No meio dessa inflexão ocorrida na estrutura do poder real no Brasil surge um personagem que rouba a cena da brasilidade, o "Silva Rousseff". Quem é ele? Qualquer um e todos os que não tendo sido jogador de futebol ou modelo nunca tiveram condições para explorar as suas potencialidades. Se antes ele fazia parte da massa invisível, agora é filho da dialética entre o que está sendo herdado de Lula e o que será a gestão de Dilma. Sua existência parte do pressuposto de que Lula elegeu Dilma, mas que Dilma será a presidente.

Antes de Dilma Rousseff somente uma mulher tinha assumido o posto máximo da administração pública do Brasil, a Princesa Isabel. Filha do imperador Pedro II, na última vez que interinamente ela subiu ao trono assinou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil em 1888. Na República, Dilma é o 40ª presidente, mas é a primeira mulher, depois de 33 presidentes homens. Qual o ato que assinará para marcar seu nome na história brasileira? É difícil imaginar. O bom sinal é saber que ela não representa um projeto pessoal. Tudo leva a crer que sua disposição é estar a serviço da melhoria das condições de vida dos brasileiros e da inserção positiva do Brasil na comunidade internacional.

O Brasil é um lugar historicamente cobiçado pelas grandes potências. Devassado por vários séculos, acumulou muitos gargalos estruturais. Em sua fala, logo após a apuração final das urnas, Dilma comprometeu-se a manter a estabilidade econômica, a aplicar a meritocracia no serviço público, a concluir o processo de erradicação da miséria iniciado por Lula, a garantir a liberdade de expressão, a lutar para que as forças conservadoras não tumultuem a vida democrática do país e a honrar as mulheres brasileiras. Não falou sobre o acordo que assumiu com Lula, mas disse que "conviver com ele me deu a exata dimensão do governante justo e do líder apaixonado"... E, numa revelação pouco comum do seu jeito racional, se emocionou para todo mundo ver.

Lula rompeu com a lógica de que o governante se resume a um executivo das políticas dos grandes centros econômicos. Conquistou a estabilidade no Brasil em uma combinação de atitudes ousadas no âmbito do mercado doméstico e na diversificação comercial nas relações exteriores. Foi hábil em não cair em aventuras militares financiadas por interesses extracontinentais. Conhece bem a piada que explica o fato de não haver golpe de estado nem guerra dentro dos Estados Unidos: "É por que lá não tem embaixada norte-americana". Também não deve ter recebido como novidade a declaração da chanceler Angela Merkel, decretando no mês passado que o multiculturalismo fracassou na Alemanha.

Além de dar continuidade à condução do Brasil entre essas e outras contradições do mundo globalizado, em tempo de rearranjos multipolares, a presidenta eleita Dilma Rousseff tem uma série de grandes temas e desafios que não se limitam a fazer apenas mais do mesmo em seu governo. São na verdade rupturas que ela precisará promover para não desmerecer sua biografia, nem trair a confiança que o povo brasileiro depositou na sua honestidade política e na sua determinada capacidade de realização.

Na condição de filha da classe média mineira e de militante política, Dilma Vana Rousseff, 63 anos, é uma legítima representante da nova elite que ascendeu ao poder, utilizando-se dos instrumentos tradicionais da democracia burguesa. Tem todas as características de quem saberá valorizar o papel modelo que a partir de primeiro de janeiro de 2011 passará a assumir no mais elevado posto do País. E a primeira das rupturas que precisará fazer é dar um basta na banda podre do PT, não cedendo espaço à ação marginal dos aloprados, muitos deles de triste notoriedade.

As rupturas com as políticas segregacionistas, responsáveis pela formação de guetos étnicos, etários, de gênero, de classes e religiosos, também precisam ser feitas para abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação" tão bem conhecido de petistas limpos como o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Isso significaria desestimular os movimentos que contrariam a cidadania republicana, quer pela desvalorização da lei, quer pela marginalização arbitrária das oportunidades de indivíduos e grupos.

No plano das rupturas econômicas, estão as ações predatórias físicas e virtuais que comprometem a integridade do mercado comum brasileiro, inclusive na extensão do seu idioma comum. Dilma poderá priorizar os investimentos em ciência e tecnologia voltados para os interesses nacionais e inibir a ciência de resultados, que se limitam aos interesses das grandes corporações que atuam no País, muitas vezes em detrimento da saúde pública.

A ruptura com os esquemas que tiram valor da biodiversidade natural e cultural brasileiras dará ao Brasil as condições para desenvolver uma criativa educação para a sustentabilidade, a necessária qualificação para o trabalho, inclusive com atenção especial ao trabalho de educador, e, consequentemente, a consciência de si, do que pode e como deve se comportar em um mundo em acelerada transformação. O certo é que temos muitas estradas a serem abertas, desde que persistamos em ter desejos e pensamentos próprios.


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um redemoinho puxa o outro - Diário do Nordeste - 28/10/2010

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia (...) que é a Festa do Saci. (...) É maravilhoso ver o Saci, aglutinando amigos de lendas (...), mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem.

A coordenadora da Universidade Popular, da Prefeitura Municipal de Passo Fundo, Maria Augusta D´Arienzo, me conta que a partir de uma das conversas que tivemos no ano passado, por ocasião da Jornada Literária, aquele agradável e dinâmico município gaúcho realizará no próximo sábado (30) a sua primeira Festa do Saci. E como não poderia ser diferente na terra da professora Tânia Rösing e da Universidade de Passo Fundo, a sacizisse vai acontecer à base de troca-troca de livros.

Da Cidade de Goiás a educadora Lúcia Agostini me transmite a vibração de mais uma Sacyzada, ocorrida na Vila Esperança durante a Semana de Estudos e Vivências da Cultura Brasileira (14 a 18/09). Não faltaram causos e batucadas de Sacy nesse território livre que um dia o poeta Gilberto Mendonça Teles conceituou de "saciologia goiana". A agitadora pedagógico-cultural Maria Inez do Espírito Santo, escreve do Rio de Janeiro para dizer que o Saci da Festa da Comunidade, que ela fazia com motivação inclusiva nos anos 1980, na Escola Viva de Petrópolis, se fará presente no Ceará, no dia 31.

A Sociedade de Observadores de Saci (Sosaci) segue firme em sua festa, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo; evento incorporado ao calendário turístico da cidade. Débora Kikuti, observadora de Saci em Guarulhos, anima uma festa que, entre músicas, rodas de histórias e oficina de boneco de Saci, conta com atividades multimídias "folcloricantes". Isso mesmo, eles usam graciosamente o verbo "folcloricar" para fazer integração de linguagens.

Como é de conhecimento comum, a locomoção rápida do Saci é feita em redemoinhos; e, como nas contações de histórias, um redemoinho puxa o outro. Por isso a Festa do Saci se constrói na concertação das diferenças, agregando uma brincadeira daqui, uma travessura dali, revelando o poder que temos para eleger e praticar o nosso modo de ser, enquanto sociedade miscigenada de um país continental.

A popularização da Festa do Saci, sobretudo no dia 31 de outubro, mesmo dia do "Halloween" estadunidense - uma das ideias traquinas do jornalista Mouzar Benedito - tem gerado uma participação elevada pela liberdade de cada lugar poder fazer a festa de acordo com seus desejos e condições. Como não há fórmula, nem hierarquias, a Festa do Saci não se limita a uma única emoção, nem a um só público; é uma festa da diversidade e da pluralidade.

Procurei disseminar esse construtivismo inter-regional em meu livro/CD "A Festa do Saci" (Cortez Editora) e experienciar algumas sequências recreativas em uma festa de condomínio que há três anos realizamos em Fortaleza com familiares e amigos. Essa brincadeira já resultou em um musical do Instituto Canarinho, adaptado pelo dramaturgo Rafael Martins e dirigido por Marconi Basílio; em duas monografias de graduação e no trabalho desenvolvido pelo facilitador alemão Thomas Semrau para a Formação Continuada dos Educadores Sociais, do programa "O Ceará Cresce Brincando", que trata o brincar como um direito.

Um exemplo evidente da mutualidade na construção da Festa do Saci ocorreu no dia 20 passado, em uma conversa que tive em Messejana com brinquedistas desse programa realizado pela Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Ceará (Apdmce) e Unicef, e executado pelo Instituto Stela Naspolini: Socorro e Joselda (Assaré), Ângela e Lilia (Beberibe), Leopoldo e Roberto (Brejo Santo), Lúcia e Adriele (Cruz), Karolina e Rosa (Itarema), Amirles e Karla (Horizonte), Márcia e Darlene (Pedra Branca), Ledian e Evânia (Porteiras), Verônica e Rosa Maria (Quixeramobim), Maria da Glória e Alaíde (Sobral), Adriana (Tejuçuoca) e Jordeana e Elenilda (Viçosa do Ceará).

Ao falar que na Festa do Saci cada criança deve levar a guloseima que mais gosta para oferecer aos participantes, as educadoras sociais colocaram a dificuldade dessa prática em algumas comunidades. Imediatamente encontramos alternativas para essa contribuição, como por exemplo, a de levar o avô ou a mãe para contar uma história na roda. O importante é fugir do estigma de carente, possibilitando que todos sintam que têm algo a compartilhar.

De Independência, onde eu nasci, recebo da ONG História Viva a notícia de que a Festa do Saci está acontecendo em algumas escolas desde a segunda-feira passada (25) e se estenderá até amanhã (29), por onde tem circulado um boneco do Saci feito pelo artista plástico DIM. A brincadeira tem base em um projeto pedagógico e recreativo preparado pela professora Maria Irandir Bezerra Sabóia, no qual estão sugeridas atividades de recorte e colagem, caça-palavras, boca de forno e cabra-cega, na perspectiva do Saci como mito ecológico e cultural.

O redemoinho continua puxando o outro também nos três dias de Festa do Saci que a Aldeia Luz realizará na Biblioteca Pública e na Casa de Juvenal Galeno, entre os dias três e cinco de novembro, dentro do calendário oficial do Departamento de Patrimônio Imaterial da Secult. Como nos anos anteriores, as ações sacizísticas contarão com teatro de boneco, oficina de desenho, distribuição de gorros e camisetas, cordéis com histórias de Saci e uma palestra com o jornalista Vladimir Sacchetta, o saciólogo que me iniciou nessas e em outras reflexões lobatianas.

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia contemporânea de liberdade que é a Festa do Saci. A liberdade de ser o que somos, de ser uma sociedade tomando consciência de si. Criei dois conceitos como contribuição para esse debate: a) Sacizada é um ajuntamento alegre, divertido, crítico e contemplativo de pessoas e mitos populares; e b) Saciologia é uma ciência humana que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação.

É maravilhoso ver um personagem como o Saci, aglutinando amigos de lendas para a sua festa, mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem. O grande luxo de uma Festa do Saci é aprender a brincar com ele "sem ele", exercitando a imaginação na sua forma mais espontânea, no limite da criatividade do brincante.

O Robson Moreira, presidente da Sosaci, me contou meses atrás em uma conversa na calçada do Patbanda, na Vila Madalena, em São Paulo, que ensinou seus netos a pegar Saci, só para brincar e depois soltar. Segundo ele, a gente não vê quando o Saci passa em nossa frente porque o danado aproveita exatamente o momento em que piscamos os olhos para passar. Então, ele inventou de rapidamente fechar à mão diante dos olhos no momento em que a pálpebra fecha e pegou um Saci. Passou a dica para a criançada e tem muito moleque pegando Saci para brincar.

No domingo (31) vai ter homenagem ao Dia do Saci também no Centro Cultural Dragão do Mar, às 16 horas, dentro da programação "Pintando e Brincando no Dragão". É o redemoinho passando, enquanto aprendemos a fazer a festa uns com os outros. Uma das maiores dificuldades que tínhamos para fazer a Festa do Saci em nosso condomínio era a de conseguir copo biodegradável.

Até que comentando isso com a Mônica Yoshizato, mestranda em ciência ambiental na USP, ela sugeriu que solicitássemos às crianças que levassem seus próprios copos. Depois ela me disse que inspirada na nossa Festa do Saci havia proposto para a escola do filho dela o "amigo secreto sustentável" (com brinquedo usado) para o Natal. Deu certo cá e deu certo lá... um redemoinho puxa o outro.






quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O boato na democracia - Diário do Nordeste - 21/10/2010

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto

O uso de boato em campanhas políticas não é novidade. Aliás, não existe política sem boato. Mas deve existir um limite ético para a utilização do boato como propaganda eleitoral. O segundo turno da eleição para presidente coloca esse paroxismo em pauta. O que ler nos boatos? O que eles dizem? Quais seus significados para a democracia? O que será feito da boataria depois do dia 31 de outubro de 2010? A resposta a essas perguntas é um desafio posto ao eleitor que não aceita ser manipulado por esse velho artifício da fragilidade humana.

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto. Esse fato de não haver tempo hábil para o eleitor saber antes de votar se o seu conteúdo tem origem em verdade ou mentira aumenta a criticidade do apelo ao boato em campanhas eleitorais.

O pesquisador francês Jean-Noël Kapferer, uma das principais referências mundiais no campo da gestão de marcas, diz em seu livro "Boatos - o mais antigo mídia do mundo" (Forense Universitária, RJ, 1993), que não distingue cultos e não cultos como propagadores de boatos. "Poderíamos ser levados a acreditar que o boato é vulgar e que não encontra nenhum crédito junto às pessoas pretensamente a par dos mecanismos e desenvolvimento da vida nacional, e que acompanham mais ou menos o debate público. Ora, não acontece nada disso" (p. 91). Um dos argumentos de Kapferer é que boa parte da "intelligentsia" acredita também em boatos, porque tem cada vez mais uma visão parcial e específica do mundo.

Como fenômeno plantado na crença das pessoas, o boato carrega sempre mensagens ocultas, protegidas por conteúdos aparentes. Ele está presente no cotidiano de todas as esferas da vida social. Quando o boato parte de fora da esfera institucional da campanha, quando ele parte da militância, ele é aceitável por criar uma necessidade de resposta por parte das autoridades; agora, quando o boato parte de alguém que está formalmente em campanha, ele perde o caráter de espontaneidade para assumir um perfil manipulador.

Que dizer: se o boato é gerado por fonte anônima ele é um recurso movedor de algumas verdades ocultas, mas se ele é produzido nos laboratórios da propaganda e da publicidade eleitoral, ele passa a cumprir uma função de proselitismo para mobilizar atenções contra seu adversário. Neste caso, Krapferer entende o boato como uma indústria de conversão às suas próprias teses: "quanto mais ele amplia o círculo de adeptos maior é o sentimento de que se está diante do verdadeiro" (p. 49).

A recorrência ao boato oferece muitas vantagens na guerra política. Uma delas é que o candidato delega a tarefa da calúnia a voluntários e permanece por trás das cortinas. "O boato permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe que se mencione abertamente" (p. 196). Assim, a priorização do boato no estratagema das campanhas para a desestabilização de adversários passa a ser praticada porque a opinião pública tende a se apegar mais a impressões do que a fatos.

O boato é um grande instrumento de difamação que atravanca a experiência democrática. Ao tentar convencer, ele induz o eleitor ao erro, por sedução moral. Circula afastando o eleitor da atração por propostas, projetos, visões e sentido de destino, enquanto promove dúvidas e indignações: nada garante que um boato seja ou não verdadeiro. O problema é como a combinação de informação verificada e boato se traduz nas urnas.

A opção pelo boato como tática de campanha é uma revelação de baixo espírito democrático. O apelo ao "ouvi-dizer" pode ter efeito bumerangue quando percebido pelo eleitor, atingindo a reputação de quem lança o boato. Ninguém em sã consciência almeja um governante afeito a fofocas. É uma questão de defesa psicológica, que age quando o boato passa a preponderar descaradamente em campanhas políticas, deixando de relatar o que interessa para espalhar o que dizem por aí, desligando a palavra e a imagem do fato que significam.

Uma parte das conversas fantasiosas de eleitores é natural do nosso comportamento e não tem maldade, por estar associada à novelização do cotidiano e da vida. Uma outra parte, pelo contrário, revela mordacidade, por ser propaganda de desonra e afirmação de preconceitos, construída a partir de blefe dos tipos ideais.

Quem apela para a fofoca e o boato como peça de campanha demonstra temor e incapacidade de propor algo que possa ser compreendido pelo eleitor como importante para sua comunidade e para o País. É na tentativa de justificar o que não tem a acrescentar que o político boateiro recorre a esse tipo de expediente, procurando esconder-se na (in) consistência de suposições (in) fundadas em (in) formações de motivos tendenciosos. Esse chapéu cabe também na cabeça dos eleitores que se prestam ao papel de espalhadores voluntários de boatos.

O boato profissional sinaliza para a fragilidade do espírito democrático de quem dele se vale para conseguir da maioria um decreto de corrosão do adversário. O pior é que o boato funciona para tornar realistas hipóteses ameaçadoras que, em muitas circunstâncias, empurram o eleitor a assumir a voz da propaganda política, sem perceber que ao fazer isso muitas vezes está acusando a própria consciência de preferir um ou outro candidato.

A priorização do boato é antidemocrática porque atinge o equilíbrio psicossocial dos votantes ao deixar o eleitor orgulhoso do seu poder de desdenhar de alguém mais poderoso do que ele, no momento em que esse alguém precisa de voto para continuar no poder. Entusiasmado com esse brio passageiro, o eleitor acaba esquecendo que depois da eleição o boato pode simplesmente desaparecer. "O pós-boato interessa pouco. Tudo parece em ordem, e a vida recomeça como antes. A tempestade passou e com a volta do tempo bom tudo se esquece, nada aconteceu. O boato? Que boato?" (p. 101).

Embora depois da eleição o sumiço do boato seja enganador, pois sempre ficam alguns resquícios para campanhas futuras, essa síntese de Kapferer vai bem ao encontro do que se costuma chamar de memória curta. O recuo silencioso do pós-boato produz algumas suposições: "Não se comenta mais porque não se acredita mais no boato, ou porque ainda se acredita, mas não fica bem se falar dele ou, enfim, porque mesmo se acreditando nele, não há mais condição para se falar dele" (p. 101).

Qualquer dessas conjecturas leva o eleitor atento ou frustrado a perceber que a coragem de fofocar e de espalhar boatos é uma manifestação de covardia, uma pisada na própria sombra. Atingido pela atração de mercado negro que tem o boato, o eleitor muitas vezes só vai descobrir tempos depois que foi abduzido pelos rumores e que deixou de mobilizar suas energias em favor do que realmente acredita.

Um grande problema gerado pelo boato excessivo em campanhas eleitorais é a perda da confiança do eleitor nas lideranças políticas e nas fontes de informação. Muitos eleitores bombardeados por toda sorte de promessas, percebem no boato um instrumento de liberdade, uma forma de comunicação que não pode ser controlada pelos diversos poderes e se sente gratificado com essa válvula de escape. Ao fazer isso, aposta na ambiguidade como determinação de preferências políticas e eleitorais, o que é muito ruim para a evolução da nossa democracia empírica.