quinta-feira, 27 de maio de 2010

O novo conceito de influência – 27/5/2010 – Coluna Flávio Paiva

O entendimento de influência está diretamente relacionado com o nível de expectativas e de idealizações da sociedade (...)

As pessoas precisam identificar sinais de influência nos grupos aos quais pertencem para se sentirem integradas ao todo

As intensas transformações que estão ocorrendo em todo o mundo vêm forçando uma atualização do sentido de influência. O que antes estava mais para fama e prestígio resultantes de cargos ocupados e posições econômicas, hoje cai melhor quando associado a quem fomenta mudanças capazes de alterar o comportamento social e o que há de antiquado na lógica dos poderes estabelecidos. A complexidade social se pronuncia em avanços de democracia participativa e em desejos e práticas de sustentabilidade.

Nesse desdobramento de variantes fica cada vez mais nítida a necessidade de concatenação entre a compreensão das mudanças e os acontecimentos. A hora é de ajustar o olhar e de encarar de frente a realidade posta em sua complementaridade e interdependência. Foi o que fez a revista Fale!, que em edição especial de dez anos, lançada na segunda-feira (24) passada, no Gran Marquise Hotel, publicou uma lista dos 30 cearenses mais influentes, de acordo com uma consulta feita durante quatro meses com formadores de opinião e leitores, tendo como base cinco categorias sociais definidas pela redação: 1) Políticos, 2) empresários e empreendedores, 3) Artistas e Intelectuais, 4) Profissionais Liberais e 5) Esportes.

Ao entrecruzar numa mesma lista os nomes de pessoas que atuam em áreas distintas, sem ordem de importância, a Fale! se firma com destemor diante das tendências mundiais e demonstra que está aberta aos novos tempos. A iniciativa da revista editada pelos jornalistas Luís-Sérgio Santos e Isabela Martin é inovadora em seu conceito, à medida que trata a influência de modo intrinsecamente relacionado à relevância social. A lista me parece um retrato fiel de como enxergamos a realidade. O número de políticos e de empresários, sem contar com os empresários que são políticos, está muito desproporcional, se observarmos que a categoria Artistas e Intelectuais só conta com três nomes e em Esportes não aparece ninguém. É bom registrar também que dos trinta, apenas três são mulheres.

Adísia Sá, Airton Queiroz, Alexandre Pereira, Beto Studart, Carlos Fujita, César Asfor Rocha, Cid Gomes, Ciro Gomes, Deusmar Queiroz, Domingos Filho, Ernesto Sabóia, Eunício Oliveira, Evangelista Torquato, Flávio Paiva, Ivens Dias Branco, José Carlos Pontes, José Guimarães, José Pimentel, Luizianne Lins, Lustosa da Costa, Mairton Lucena, Nelson Martins, Paulo Oliveira, Roberto Cláudio, Roberto Macêdo, Roseane Medeiros, Salmito Filho, Tasso Jereissati, Ubiratan Aguiar e Valdetário Monteiro. Eis a relação, em ordem alfabética, dos 30 homenageados. Em que pese o desequilíbrio entre as categorias, a lista está bem resolvida, como exercício de experimentação da relação imprensa e cidadania. Se há algo a consertar ou concertar é a realidade.

O entendimento de influência está diretamente relacionado com o nível de expectativas e de idealizações da sociedade. A lista da Fale!, tanto indica que os editores apontaram o radar da influência para o rumo certo, como, em seu resultado, faz notar o quanto ainda devemos amadurecer para encontrar uma estabilidade perceptiva entre fatores sociais como cultura, educação, política e economia. Esse equilíbrio ou a falta dele afetará o nosso sentido de destino e determinará o nosso nível de desenvolvimento. A satisfação social fica mais pronunciada quando há o entendimento de uma identidade social sistêmica e compartilhada.

Valorizar diversos nodos de poder e suas interconexões torna a vida mais rica. As pessoas precisam identificar sinais de influência nos grupos aos quais pertencem para se sentirem integradas ao todo. É assim que uma coletividade torna-se mais dinâmica e uma sociedade se fortalece. As cinco categorias abertas pela revista Fale! para consulta pública formam um bom leque para a identificação de papéis modelos, em contraponto aos velhos conceitos de influência, modelados em listas de mais ricos, de políticos mais poderosos, de autores mais vendidos, de celebridades midiáticas, de nomes que compõem as fichas de cerimoniais e de personalidades que ocupam os espaços institucionalizados.

Temos o momento em mãos, o que o editor e publisher Luís-Sergio Santos chama de consistência do agora, conciliada com variáveis históricas. Não precisamos desfazer nada; só precisamos mudar de tempo; para o tempo atual. Estamos onde estamos por tudo o que somos e fizemos. Vamos aplaudir, mas sem esquecer de que esse é apenas um começo de construção de alternativas ainda não pensadas. Em sua carta editorial a Fale! revela a consciência da redação quanto a isso: "Associamos o conceito de influência diretamente à capacidade de influenciar e não diretamente a quem, episodicamente ou acidentalmente, está exercendo algum tipo de poder constituído. Mesmo assim quem habita este status leva vantagem, sim, em relação aos influentes da sociedade civil. Não é à toa que a categoria Políticos constitui a maior lista".

Luís-Sérgio admite que o adjetivo "influente" traduz prestígio, mas um prestígio vinculado a reconhecimento e credibilidade. E sintetiza bem a questão ao dizer que "Nossa lista não é sobre a influência do poder, mas sobre o poder da influência". Assim, a Fale! inova e com ousadia coloca em prática uma certa alteração no entendimento de que a identificação social se dá quando temos a sensação de pertencer a vários espaços. Uma lista altamente enxuta e mesclada por cinco categorias coloca o propósito mentalmente no presente e projeta um novo conceito de influência como um farol destinado a descortinar novos parâmetros em um mundo que se transforma.

O bem-estar social se constitui na maneira de encararmos amando ou não os desafios do viver. Para saber o que fazer na escolha dos vários futuros que nos são apresentados a todo instante é preciso que o que acreditamos esteja em pauta, em horizonte de valor e em situação de reconhecimento. A lista dos 30 cearenses mais influentes organizada pela Fale!, mesmo desproporcional quanto ao peso das categorias traz uma boa renovação de nomes no campo das lideranças políticas. Esse oxigênio equilibra um pouco a necessidade de observarmos que a contribuição ao desenvolvimento é uma tarefa transgeracional.

Fazer uma lista de pessoas influentes do presente e no presente é sempre um risco, pois a realidade está perto demais para o distanciamento fundamental a qualquer escolha que se proponha sincera. Neste aspecto, em seus dez anos de circulação ininterrupta, a Fale! se coloca como uma revista ligada, desperta, livre dos vícios do conforto de ficar no lugar comum. Em linha com o crescimento da consciência cidadã e com a intensificação dos fluxos de comunicação entre pessoas e grupos sociais, os esforços da revista apontam para a noção atualizada de influência na vida social, cultural e política cearense. A lista dos 30 mais influentes é um jeito de encarar o que se move, o que instiga, inspira e faz fazer, na reinvenção permanente do cotidiano.

Estou muito contente por fazer parte da lista da Fale!, Compartilho com você, caro/a leitor/a, o belo troféu esculpido em Petra, na Jordânia. Esse reconhecimento representa um reforço a tudo o que tenho defendido e praticado com relação ao jornalismo expressionista, à literatura sincera, ao respeito à infância, à valorização da cultura brasileira no diálogo global, à luta pela leitura e pelo pensamento não subordinado, à defesa da sustentabilidade de fato, à emancipação social, a cidadania orgânica, o combate ao consumo perdulário e ao egoísmo social, dentre outros ideais que movem o meu viver.



quinta-feira, 20 de maio de 2010

Menos sanções e mais diálogo - Coluna – 20/05/2010 - Flávio Paiva


A intenção do Brasil é abrir uma passagem interdimensional entre a cultura da guerra e uma cultura de paz (...) O bloqueio político, o isolamento cultural e os embargos comerciais só instigam desavenças

O encontro do presidente Lula com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad e com o primeiro-ministro da Turquia, Tayyip Erdogan, no qual foi assinado o acordo de atuação do Irã na área nuclear, para fins pacíficos, é um marco da geopolítica contemporânea. Ocorrido no início da semana em Teerã, foi bom para arrefecer a possibilidade de um novo conflito armado no Oriente Médio. Foi bom também para dar um basta na pouca grandeza que ainda predomina nas mentes colonizadas das elites brasileiras. E foi bom, acima de tudo, para sinalizar ao mundo que a nova ordem em construção tem mais a ver com diálogo do que com boicotes.

A consideração de um segundo argumento quando o assunto é bomba atômica parecia improvável. Os países que fizeram o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), em 1968, deixaram apenas para quem já tinha armas nucleares o direito de continuar enriquecendo urânio ao ponto de poder produzir bomba. O pequeno grupo formado por Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China costuma falar em nome da comunidade internacional. Mas Coréia do Norte, Índia, Israel e Paquistão não são signatários do TNP, embora tenham também armas nucleares.

O Irã não tem bomba, mas tem urânio e assegura que pretende usar seu potencial para fins civis. O Conselho de Segurança das Nações Unidas não acredita e tem publicado várias resoluções na tentativa de impedir que o país persa evolua nessa tecnologia. Os iranianos recusam tais acusações. Em discurso proferido dia 3/5/2010 no plenário da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, o presidente Ahmadinejad retrucou, argumentando que os países que atemorizam os demais com ameaças de usar bomba atômica é que deveriam ser repreendidos.

A fala do presidente iraniano encontra eco no pensamento do presidente brasileiro, que vê pouca autoridade moral em quem têm bomba atômica e fica criticando os outros que supostamente querem ter. O Brasil está confortável para assumir esse tipo de posição porque, mesmo estando entre os países com condições de produção de combustível nuclear, tem se empenhado em defender o desarmamento atômico mundial. Para a diplomacia brasileira o mundo precisa de um Tratado Antinuclear, que elimine as armas, que desarme quem tem bomba atômica.

Os esforços brasileiros para um acordo com o Irã causaram todo surto de julgamento extravagante à política externa brasileira. Ao invés de torcermos pelo sucesso de uma missão tão complexa quanto necessária, parte significativa das elites brasileiras reduziu essa oportunidade histórica a alegações da existência de problemas de direitos humanos no país persa, numa demonstração de dificuldade de colocar as coisas em seu tempo e lugar, recaindo na velha ideia do maléfico, tão maquiavelicamente utilizada para justificar imposições sobre oponentes.

O que o Brasil está tentando fazer é abrir uma passagem interdimensional entre a cultura da guerra e uma cultura de paz. Esse processo exige habilidades incomuns para que as leis do preconceito e da supremacia sejam substituídas pela compreensão do outro, sem prejulgamentos e sem subestimação. O apoio para que o Irã seja readmitido na comunidade internacional é um exercício de convicção no diálogo e um ato de vontade de consciência planetária, que cabe a quem aprendeu a ter domínio sobre as adversidades, como o presidente Lula.

Vivemos um ciclo especial de evolução civilizatória. Não dá para deixar para depois. O ritmo das ameaças à Terra e à Humanidade está muito intenso. As sanções muitas vezes não passam de artifícios para justificar intervenções militares. O bloqueio político, o isolamento cultural e os embargos comerciais só servem para instigar desavenças. Não funcionou no passado nem funcionará no futuro. Trilhar novos rumos passa necessariamente pela coragem de assumirmos a interdependência e a complementaridade.

À medida que o mundo se mexe em busca de bases energéticas livres de emissões tóxicas, não tem sentido fecharmos o debate a respeito do enriquecimento de urânio. Sabe-se que a utilização de energia nuclear ainda é bastante questionada, sobretudo quanto ao destino do lixo radioativo. Mas a expectativa é que isso seja resolvido com novos projetos de reatores e novas técnicas de reciclagem. O papel fundamental dessa tecnologia, como oferta de energia limpa, em tempos de aceleradas mudanças climáticas, é que precisa estar na agenda internacional.

Ao defender o desarmamento e o melhor uso dos combustíveis nucleares, o Brasil não deve ter sua posição vista como uma provocação indevida à ordem internacional. Pelo contrário, por meio da desconstrução do conceito de civilizações superiores e inferiores, o Brasil quer influir para a construção de um consentimento mundial em favor da diversidade e da pluralidade. O desafio é evitar que as normas institucionais fetichizantes continuem servindo apenas para consagrar privilégios e legitimar manipulações em favor dos interesses lucrativos da guerra.

As reações dos brasileiros de modelo mental de colonizado demonstram claramente um atávico e lamentável complexo de inferioridade. O símbolo mais notório e intragável dessa mentalidade de subordinação é uma triste lembrança do ano de 2002, quando o então chanceler Celso Lafer, em missão oficial, se submeteu a tirar os sapatos para passar no controle de segurança dos aeroportos estadunidenses. Essa é a cena aceita pelos que acham que a diplomacia brasileira está sendo ingênua, que o País não tem estatura para se meter em questões milenares do Oriente Médio e que essa "política de arco-íris" está chegando ao fim.

Em entrevista ao jornal espanhol El País (9/5/2010), Lula se definiu como "multi-ideológico". Imediatamente irromperam diversas reações no Brasil submisso, tripudiando o neologismo criado pelo presidente da República, classificando-o de pretexto para levar a cabo acordos duvidosos. Entretanto, o chefe do Executivo brasileiro esclareceu que só quis informar o quanto procura se dar com todos os chefes de estado, independente de serem de esquerda ou de direita. No que ele tem toda razão, pois são os interesses do Brasil e do mundo que devem prevalecer nessas questões.

Ainda que o acordo venha a ser ignorado por uma arrogância qualquer, ele já cumpriu parte dos seus fundamentos, por ter levado os EUA à afirmação de que não arcariam com um novo blefe do tipo que tramou à Guerra do Iraque. O apoio brasileiro ao direito do Irã de não ser mais um mero alvo de campanhas militares das máquinas de guerra das megapotências bélicas, contribuiu também para o presidente Barack Obama declarar sua intenção de reduzir o arsenal atômico estadunidense e de parar com as intimidações de destruição aos países que querem fazer beneficiamento de urânio. A armadilha está desmascarada, se bem que continua o alarde de novas sanções.

O mundo que o Brasil defende passa por uma mudança profunda nos modos das relações internacionais, porque é um mundo de nações soberanas, com instituições multilaterais, flexíveis e plurais. Um mundo que possa compartilhar responsabilidades e benefícios, considerando as diferentes perspectivas e circunstâncias na construção do interesse comum. A cultura brasileira é uma cultura de alteridade plena e não do invariante egocentrismo primário que tem norteado as relações de intolerância no universo das potências bélicas. Menos sanções e mais diálogo é o que permite reformular essas relações e fazer com que uns povos cresçam com as diferenças dos outros em negociações de boa-fé.


sexta-feira, 14 de maio de 2010

No quartel com o Recruta Zero - 13/5/2010 - Flávio Paiva

Oportunidade para pensarmos na ética da guerra (...) A minha simpatia pelo Zero estava no seu caráter de anti-herói, embora ele fosse conterrâneo dos promotores do mercado da morte


Entre os motivos que me levaram a dizer que queria prestar o Serviço Militar, quando completei 18 anos, está sem dúvida a influência do Recruta Zero, personagem de Mort Walker, 86, que está completando 60 anos da sua primeira publicação em 1950. Eu lia as tirinhas e as histórias em quadrinhos do soldado raso mais famoso do mundo e achei desafiador experimentar a vida na caserna. O meu Quartel Swampy foi o 23º Batalhão de Caçadores.

O Recruta Zero foi um universitário que trocou o campus por um quartel na época da Guerra da Coréia (1950 a 1953), ocorrida por interesses comerciais e territoriais dos Estados Unidos e da Inglaterra, de um lado, e da ex-União Soviética e da China, do outro, que infernizou a península asiática, ainda hoje dividida em Coréia do Norte e Coréia do Sul. No Brasil de 1979, os tempos eram de Anistia e eu estava terminando a Escola Técnica Federal do Ceará (hoje IFCE). Poderia me alistar no NPOR, que formava oficiais, mas achei que seria chato e optei pelo 23º BC.

Diferentemente do Zero, o ano que passei no quartel não foi de exercício da preguiça, mas de muita atividade. Foi no quartel que eu tirei a carteira de motorista, disputei futsal nas olimpíadas do exército, aprendi a atirar com fuzil e pistola de verdade, fui cabo enfermeiro e montei uma charanga, que acompanhava a famosa banda de música do 23º BC. O que fiz de semelhante ao Recruta Zero foi negar os excessos dos superiores, procurar desconstruir as regras que descambam da disciplina para a opressão e desacreditar da guerra.

Na "Canção do Exército" fui surpreendido com uns versos que dizem assim: "A paz queremos com fervor / A guerra só nos causa dor". E quanto mais eu ouvia esse hino, mais eu procurava ler as revistas do Recruta Zero para tentar entender o que estava acontecendo. E, evidente, que eu só conseguia ficar mais confuso. Somente anos depois descobri que o deboche do Zero era parte contra a truculência de certos militares com os subordinados, mas que havia algo mais; havia uma negação ao militarismo do país que mais plantou guerras nas últimas seis décadas.

A minha simpatia pelo Recruta Zero estava no seu caráter de anti-herói, embora ele fosse conterrâneo dos promotores do mercado da morte, os mesmos que por décadas se apresentaram ao mundo como "mocinhos". E como anti-herói, ele conseguiu sobreviver ainda às guerras do Vietnã, do Líbano e do Iraque, aos bombardeios da Somália e do Kosovo, as invasões de Granada e do Panamá, à ocupação do Afeganistão, ao patrocínio da intriga armada entre Colômbia e Venezuela e à demonização do Irã, acusado de querer ter o que os Estados Unidos têm, que são armas nucleares.

Hoje, com a derrocada da imagem simulada dos Estados Unidos, a grande mudança que o presidente Barack Obama poderia fazer seria trocar o Capitão América pelo Recruta Zero. Talvez assim pudesse justificar o Prêmio Nobel da Paz que recebeu em 2009 por um arrazoado de intenções e não por mérito devidamente comprovado. Com o Zero no comando, os estadunidenses dariam a volta por cima e poderiam dizer ao mundo que estão dispostos a deixar de viver à custa da destruição dos outros. Para aceitar um anti-herói, a terra do Super-Homem e de todos os super-heróis da Liga da Justiça (analogia da OTAN) precisaria se reinventar.

O aniversário de 60 anos do Recruta Zero não deixa de ser uma boa oportunidade para pensarmos na ética da guerra. A impressão que tenho é que a violação das culturas regionais, especialmente quando motivadas por disputas geopolíticas e econômicas, já é vista com muitas reservas em todo o mundo. Depois da desmoralização de justificativas para o fomento à guerra, como a de que o Iraque tinha armas químicas, a situação degringolou para o total descrédito.

Não sei se é o caso de lamentar ou não, mas Washington está cada vez mais parecida com a caserna onde o Zero foi parar. Quem tem a força não é o General Dureza, distraído superior que vive assediando a Dona Tetê, a secretária de provocativas minissaias e decotes salientes. Quem tem a força é o Sargento Tainha, com sua autoridade sem freios e seu cachorro Otto, sempre uniformizado e disposto a entregar recrutas que saem dos eixos. Nesse desfile de tipos não falta o Tenente Escovinha, pronto para agradar aos superiores, com seu espírito carreirista. É essa a cultura do império em decadência, que o Cosmo e o Quindim, os galanteadores do quartel, tentam passar em lábia para as nações ressabiadas por tanta dissimulação.

A esperança só pode estar no Zero. Com ele, o quartel poderia tomar novos ares, e personagens como o matuto e ingênuo Dentinho, o pensador Platão, o cozinheiro Cuca e o Tenente Durindana, com seu jeitoso cavanhaque e cabelo black-power, certamente tornariam a vida bem mais humorada do que com a grosseria do Tainha. A turma do Recruta Zero não é a turma da guerra, por isso o "não" que ele pronuncia em cada quadro, em cada tira, em cada revista, mesmo quando sem palavras, mesmo quando em simples piada visual, tornou-se um incômodo para o militarismo, essencialmente vinculado à indústria de armas. Para os que se beneficiam diretamente da guerra, esses 60 anos de Recruta Zero representam uma ameaça a autoridade brutal.

Durante o ano que passei no 23º BC, convivi com muitos soldados com as características do Recruta Zero. Lembro que certa vez eu estava de plantão na enfermaria, quando recebi um telefonema do comandante da guarda. A ordem era que eu requisitasse a ambulância para ir pegar um soldado no bairro Granja Portugal e levá-lo ao Hospital Geral. Era um final de semana. Acionei o soldado que estava de plantão na garagem e saímos para cumprir a determinação. De repente, escutei a sirene e perguntei ao Gilberto, o soldado motorista, se havia mesmo necessidade de ligá-la. Ele disse que sim, pois soube que o recruta que íamos apanhar estava muito doente e era irmão de um sargento, que estaria nos aguardando.

O endereço que tínhamos era muito complicado. A rua começava em um local e não tinha continuidade; depois retomava lá na frente... Enfim, quando estávamos chegando à casa do soldado, encontramos com o irmão dele, o dito sargento. Naquele momento descobrimos que o suposto soldado doente estava todo arrumado para ir a uma festa. Não entendemos nada. Preparamo-nos para retornar ao quartel, quando o Gilberto virou para mim e perguntou se eu faria alguma objeção se passássemos na casa dele, no bairro vizinho, no Henrique Jorge, para pegarmos umas revistas em quadrinhos. Como era caminho, respondi que não via problema.

Passamos na casa dele e retornamos ao quartel cheios de interrogações, embora não tivéssemos dúvidas de que tinha sido um trote. Explicamos o ocorrido ao comando da guarda, fomos jantar e cada qual retornou ao seu lugar de plantão, ele na garagem e eu na enfermaria. O tempo passou e aquele episódio perdeu-se entre tantos outros. No dia em que deixamos o quartel, encontrei com o Gilberto na saída e conversamos um pouco na calçada da avenida 13 de Maio. Recordamos algumas coisas e lembrei do trote do soldado doente. Ele olhou para mim com a cara de quem queria fazer uma revelação e eu me antecipei: "Então foi você quem passou o trote no comandante?". Ele certificou-se de que não havia ninguém por perto e disse: "Não acontecia nada naquele plantão e eu estava doido para ler a revista nova do Recruta Zero". Como àquela altura saber disso não daria mais cadeia, caímos na gargalhada.





quinta-feira, 6 de maio de 2010