quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Literatura e encantamento - Diário do Nordeste -29/09/2011

A gente às vezes passa por momentos de satisfação que não dá para descrever. Mas como em todo estado de contentamento amplo, mesmo o hiato existente entre o acontecer e o retrato falado que dele fazemos não é suficiente para segurar a voz de um coração transbordante. Desde a terça-feira passada (27) que falo da contribuição direta que os meus filhos deram em todo o processo da palestra que fiz sobre "A literatura que encanta o público de oito a onze anos", a convite do eixo de Literatura Infantil e de Formação do Leitor, da Secretaria de Educação do Estado do Ceará - Seduc.

Estavam ali, no auditório do Condomínio Espiritual Uirapuru (CEU), educadores da Seduc, representantes das Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Crede) e das secretarias municipais de educação, que acompanham o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic). O tema em si e a qualidade da plateia já davam motivo suficiente para um empolgado diálogo. O fato novo para mim, foi que pela primeira vez eu senti, vi e pude mostrar concretamente um pouco da aventura da paternidade criadora que há mais de uma década vem me levando a compor e a escrever para crianças.

Tudo começou quando eu cheguei em casa, comentei da palestra que faria e comecei a procurar nas estantes alguns livros que eu pudesse mostrar como exemplo dos conceitos orientadores da minha fala. Como a faixa de idade abordada era de oito a onze anos, os meus filhos, que estão com doze (Lucas) e dez (Artur) anos, logo se apropriaram da ideia e passaram a contribuir na escolha dos títulos. Numa hora dessas é que a gente percebe claramente o tanto que a vida é intensa e o quanto as crianças apreendem do que vivem no cotidiano. Selecionados os livros, agradeci aos dois pela colaboração e parti novamente para a tarefa solitária de elaborar o roteiro.

Embora concentrado no que iria colocar em debate, notei a inquietação deles, entrando e saindo do escritório e, por vezes, dando uma rápida olhada na tela da máquina. A princípio não atentei muito bem ao que se passava. Dei como normal aquela movimentação. Como dividimos a mesma bancada de trabalho, para as tarefas profissionais da mãe deles, as minhas e as tarefas escolares dos dois, é comum trocarmos observações sobre o que estamos fazendo. E, embalado por essa rotina, conclui a sequência da apresentação. Quando me preparava para montar o material em Power Point, o Lucas chegou para mim e disse que poderia montar a apresentação no Prezi, uma ferramenta de navegação em zoom, descoberta pela amiga dele, Lara, e já testada por eles em trabalhos escolares.

Aceitei a proposta imediatamente e passei o conteúdo para ele, que fez o design e a montagem dos textos e imagens dentro da dinâmica não-linear do aplicativo. E foi mostrando as possibilidades para mim, numa narrativa que aproxima e afasta o que se quer mostrar, de modo que quem vê, não vê onde a informação se esconde, até que ela salte do detalhe imperceptível para o primeiro plano. Com plena liberdade de organização do conteúdo, o Lucas preparou todo o material da apresentação, considerando que o que está de cabeça para baixo tem tanta importância quanto o que está aparentemente disposto em parâmetros normais, em um curioso mapa nonsense de ponto de vista.

Fui me dando conta do estava acontecendo. Havíamos lido juntos quase todos os títulos escolhidos para a apresentação; havíamos selecionado juntos parte da literatura que mais encantou o Lucas e o Artur na zona etária definida pela Seduc para a palestra; e havíamos preparado juntos a exposição do conteúdo. Como todos esses fatores haviam afluído espontaneamente para aquele trabalho resolvi convidá-los a fazer a apresentação comigo. Combinamos para que eles saíssem no intervalo da aula, pois a palestra ocorreu pela manhã, horário em que estão na escola, e eles foram com a farda do colégio fazer comigo a co-apresentação do tema; o Lucas passando os slides e o Artur fazendo fotos e me dando dicas do que eu poderia acrescentar em um ou outro aspecto.

Nunca me senti tão longamente emocionado e ao mesmo tempo tão à vontade para contribuir com um debate. Além dessa experiência de interação completa com os meus filhos, a discussão me permitiu reforçar e dar apoio ao papel da escola, enquanto espaço de possibilidades de criação e de recriação social e cultural. A escola existe para ajudar seus alunos a valorizar suas histórias de vida, suas experiências comunitárias, suas perspectivas cidadãs e para questionar o que eles desejam e necessitam em decorrência da imposição massificadora da comunicação mercadológica.

As crianças de oito a onze anos, estudantes do terceiro ao sexto ano, têm idades diferentes, mas experienciam um mesmo estágio de fronteira aspiracional, puxada para cima pela pulsão pré-adolescente. É muito importante, por conseguinte, esse cuidado especial da Seduc em buscar referências literárias que possam estar à altura da complexidade desse momento. O acesso a livros que constroem vínculos entre o sentir e o saber, que estimulam a percepção em distintos planos de realidade, que ativam a relatividade das noções e que redesenham o processo social é fundamental em um momento que a criança tem consciência do si e necessita compreender-se enquanto indivíduo que é parte do social.

A literatura tem o potencial de redescrever a vida por dentro do encadeamento do pensamento humano, desde os seus elos mais primitivos aos mais sofisticados. Ler não exige consciência do próprio raciocínio para raciocinar, por isso, na aventura literária sentir é mais importante do que entender. Para encontrar nos livros ou tablets uma grande descoberta, a criança precisa ter seu nível de leitura respeitado e contar com autores que tenham uma existência, que tenham o que revelar e façam isso com estilos simples, sem infantilismos ou exageros de compreensibilidade.

Se existe alguma coisa que deveria estar totalmente descolada de interesses comerciais na escola, é o conteúdo. Não faz sentido o equipamento escolar ser ponto de venda das multinacionais de best-sellers ou de lobbies de falsos autores que muitas vezes ocupam as bibliotecas, protegidos por barreiras do ineditismo e do paternalismo local, empobrecendo a qualidade literária dos acervos e prestando um desserviço à infância e à juventude. O ser humano é universal e a literatura que traduz essa universalidade não tem data de validade nem limite territorial. De onde quer que um autor escreva, com o sotaque que for, no contexto e na circunstância em que se encontre, o que define a sua obra é o caráter subjetivo da transfiguração que faz do real, sua força estética e sua propulsão de significados para quem lê.

Toda literatura é regional. Algumas obras literárias é que se tornaram mundialmente conhecidas pela força expansionista de suas civilizações. Em um país com tamanho nível de ingerência do mercado na educação, com a dimensão continental que tem e com as desigualdades regionais do Brasil, não é fácil trabalhar uma política pública de literatura que encante a exigente meninada dos oito aos onze anos. Mas é um desafio que se impõe. E nesse desafio, a minha opinião é que seja oferecido o que há de melhor e mais acessível da literatura local, nacional e mundial, independentemente do tempo e do espaço em que cada autor viveu e escreveu, vive e escreve. Melhor ainda se tudo isso puder contar com o auxílio luxuoso da força do sensível de outras linguagens artísticas e culturais.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A canção no tempo da infância - Diário do Nordeste - 22/09/2011

Rosy Greca desenvolve no Paraná um trabalho de trilhas sonoras para teatro, performances, oficinas, palestras e música para crianças, sempre focada no sentimento de que a emoção está associada à poesia e à beleza. Em 1993 gravou o seu primeiro CD "Gente Criança" e, de lá para cá, já fez uma dezena de registros fonográficos, especialmente do seu trabalho de composições para teatro.

Inquieta com a situação de assédio consumista a que as crianças estão expostas, ela resolveu organizar no livro/cd "A canção para crianças - uma contribuição ao reencantamento da infância" (Gramofone, Curitiba, 2011), reflexões sobre a música para criança, a partir do próprio trabalho e de referências que considera relevantes no eixo Rio - São Paulo, onde a indústria, o comércio e os canais de comunicação ainda concentram suas plataformas de modelagem de produtos e serviços culturais no Brasil.

O resultado é uma obra de grande valor para a compreensão da MPB Infantil. Rosy inicia contando do esforço que fazia quando criança, ao ajudar a mãe a escolher feijões, separando os bons dos que não prestavam para ir à panela. "Aquilo para mim era uma diversão, um jogo que tinha por tabuleiro a mesa da cozinha e por peças, os feijões" (p. 13) lembra, exaltando sua atitude de sempre querer salvar alguns feijões saudáveis para não vê-los morrer cozidos na água fervente e depois devorados por toda a família.

Essa metáfora construída pela autora aplica-se muito bem ao conceito do livro, considerando que Rosy tem como propósito interferir no debate sobre a infância contemporânea, pelo viés da dimensão social da canção. Seu olhar é a um só tempo indagador e reflexivo. Ela quer descobrir quem é mesmo essa criança para quem ela canta e conta histórias. E a melhor maneira que encontrou de perseguir a resposta é compartilhando aspectos da sua própria experiência.

Cheio de curiosidade li o livro e escutei o CD com doze canções da autora em uma tirada só. O trabalho tem a leveza própria da contação de uma artista que em seus argumentos sobre arte, educação e mercado procura entender o que faz. Ela deixa bem claro que está discutindo canção de autor e não canção folclórica ou canção infantil. Explica que a canção para criança é uma composição caracterizada pela existência do cancionista adulto, do intérprete e da criança.


O recorte definido por Rosy Greca lineariza o processo, mas nem por isso reduz a importância do seu livro. Nesse conceito, o cancionista intui, evoca e mergulha no imaginário infantil para produzir. Entendo essa racionalidade como um recurso didático bastante praticado hoje no Brasil, mas estou mais para a compreensão desses processos transferenciais dos adultos para as crianças, que Rosy também aborda à luz do trabalho da psicanalista Leny Magalhães Mrech, como elemento de construção do ser na infância e não como uma tentativa do adulto de querer representar o mundo simbólico da criança.

A posição de Rosy é bem mais aceita nos dias atuais, quando a pedagogização da arte ganha realce. Entretanto, tirando essa pequena discordância de olhar com relação ao motivo da composição para criança, estou em linha com a autora no que diz respeito a uma relativa necessidade de haver uma arte e uma literatura voltada para o universo infantil. Assim como ela, procuro ver a caracterização "infantil" antecedida das palavras canções, teatro, filme, livro etc, como algo bem além de um recurso mercadológico; algo que colabore para a melhoria da percepção dessa forma estética expressiva de elaboração cultural.

Por ser um instrumento de sociabilidade e de narração da nossa experiência social e cultural, quanto mais a canção infantil nascer de uma vontade sincera, mais ela será fator de educação para a sensibilidade. "Como forma de imaginação criadora, essas linguagens operam como fatores indispensáveis de humanização (...) inclusive, porque em sua dimensão de linguagem, atuam, em grande parte, inconscientemente", diz a geógrafa Júlia Pinheiro de Andrade em seu "Cidade Cantada" (Editora Unesp, p. 68, SP, 2010).

Em "A Lira de Orfeu" (LMiranda, Fortaleza, 2007), a professora Elvira Drummond corrobora com a necessidade de deixar o coração do autor livre na hora de compor e de escrever para crianças, ao tratar do enlace dos fios da literatura e da música nas narrativas tradicionais infantis: a música como meio de sedução, exorcismo, alívio de tarefas exaustivas, memorização, comunicação do invisível e como discurso privilegiado no meio social. O adulto deve, antes de tudo, ter o que dizer para a criança, para que o seu repertório tenha força de atração, de aliviar tensões, de revelar contradições sociais e de dar acesso ao mundo encantado.

O fato de a canção para crianças ter destacado vínculo com o teatro infantil, com o cinema e com a televisão, pode ter levado Rosy Greca a confundir o olhar quando procura citar referências de artistas importantes na MPB infantil. Dentro do conceito de canção artística, por exemplo, ela praticamente reduz a obra da compositora, cantora, atriz e contadora de histórias Bia Bedran ao trabalho que esta fez na TV Educativa do Rio de Janeiro (Canta-Conta e Baleira Verde) e na TV Cultura de São Paulo (Lá vem História). Depois de Braguinha (1907 - 2006), Bia Bedran é a artista brasileira com mais constância na composição de forma sistemática para a infância no Brasil.

Em termos de MPB infantil temos muitas e boas obras pontuais de grandes artistas, muitos deles citados por Rosy em seu livro, tais como Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Gilberto Gil, Adriana Partimpim e Arnaldo Antunes. As obras desses artistas têm motivações diferentes das trilhas de artistas também maravilhosos, como Hélio Zinskid e André Abujamra, que fazem músicas para programas como Cocoricó e Castelo Ra-tim-bum. Sandra Peres e Paulo Tatit, com o selo Palavra Cantada, fazem um híbrido de MPB infantil com canções de cunho didático-pedagógico.

Ao se referir às apresentadoras de televisão que viraram estrelas da música comercial para crianças, Rosy alfineta Xuxas e Angélicas com sutileza: "Felizmente nem só de louras bonitas e sedutoras vive o imaginário das crianças brasileiras" (p. 40). Ela manifesta sua esperança de que mais do Brasil que faz canção infantil de qualidade se integre aos movimentos que vêm sendo desenvolvidos em alguns países latino-americanos. Enquanto isso, ela se espanta com a ausência de material teórico sobre o assunto - "A ausência é perturbadora" (p. 104) - e com a predominância das produções musicais dos seriados e desenhos animados importados pelos canais fechados, juntamente com a produção comercial brasileira que segue o mesmo padrão estético e ideológico - "nos dá a clara noção de que estamos diante de uma monocultura musical bastante restritiva" (p. 74).

Rosy Greca transmite a convicção de que a canção representa uma grande força a favor da preservação, da integridade e da plenitude da infância. Daí, seu esforço para ajudar a "devolver o tempo vital, orgânico, essencial, contemplativo" (p. 124) do tempo infantil; um direito que meninas e meninos têm ao encantamento. Esse olhar utópico de Rosy me fez lembrar de quando conheci o seu trabalho musical para adultos, nas movimentações de produção independente. No seu LP "Vitrais" (1986) ela cantava: "Está ventando, Francisca / Tira esse casaco de visom / e vai sentir / o vento carece te assoprar". Que bom encontrá-la novamente acreditando na liberdade.

flaviopaiva@fortalnet.com.br

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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O tabu do imperialismo Diário do Nordeste – 15/09/2011

A exaustiva propaganda do poderio militar estadunidense que ocupou os mais relevantes espaços da mídia mundial por ocasião das comemorações de dez anos da trágica derrubada das torres gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, me fez concatenar máximas do escritor e jornalista italiano Alberto Morávia (1907 - 1990) e do compositor e cantor brasileiro Edvaldo Santana. O primeiro dizia que "o diabo não pode salvar o mundo" e o segundo diz que "quando Deus quer até o diabo ajuda".

Tomei como sinônimo de diabo a ideologia imperialista que, em busca de poder e glória, torna os impérios inimigos comuns da humanidade. A história está cheia de ascensões, quedas e desaparecimentos de impérios e suas influências dominadoras, por força militar ou assimilação econômica e cultural: romano, bizantino, mongol, turco-otomano, inca, asteca, espanhol, português, francês, russo, austro-húngaro, britânico e estadunidense, são alguns desses impérios que se deram o direito de invadir e interferir onde bem entenderam.

Morávia recorreu a contos eróticos para abordar a sedução no incesto e Santana evoca em sua música o incômodo de ser protegido pelo inimigo. Há uma conexão muito ajustada nessas duas formas de denotar o quanto não se justifica mais a existência de qualquer império. Está provado e comprovado que as políticas de expansões hegemônicas não fizeram e não têm como fazer bem ao mundo. E se não cabe mais aceitar situações de domínio territorial, físico ou virtual, resta trabalharmos pela consolidação das tendências éticas ecoplanetárias e de reciprocidade cultural.

O aforismo de Alberto Morávia está com prego batido e ponta virada: não se tem mais dúvida de que com imperialismos haja saída para a enrascada de esgotamento de recursos naturais e de perspectivas humanas em que o mundo se meteu. O desafio maior da atualidade é, portanto, o de dar sentido ao axioma de Edvaldo Santana, ou seja, o de produzir uma transformação social fundamentada na esperança, no desejo de felicidade e na consciência, que possa contar, inclusive, com o que pode ter sobrado de bom dos impérios, a fim de remodelar o mundo com formas sustentáveis de ser e de viver.

A alteração da geografia política, econômica e cultural do mundo terá pouco tempo entre o declínio do império estadunidense e a opção de vivermos em um planeta sem impérios ou a de enfrentarmos a realidade do estabelecimento de um possível império chinês, que já vem sendo encorpado com as sobras das intratáveis proteínas emuladas pelo capitalismo em exaustão. Se pretendemos construir uma autoridade global, apoiada na complementaridade, na interdependência e no multilateralismo, está mais do que na hora de partirmos para a fomentação do tabu do imperialismo.

Uma década antes do ataque às torres gêmeas, o pensador italiano, Umberto Eco, aproveitou a destruição do Iraque, em 1991, por bombardeios de uma coalizão militar voltada para a economia do petróleo, liderada por Estados Unidos e Inglaterra, na chamada Guerra do Golfo, para fazer uma reflexão sobre restrições à guerra. Eco tomou como exemplo a questão do incesto, tratada por Morávia, que virou tabu após a constatação coletiva do seu caráter negativo, como bloqueio à troca em grupos. Para ele, a humanidade começa a perceber a necessidade de transformar a guerra em tabu. "Um tabu não se proclama por decisão moral ou intelectual, mas forma-se ao longo de milênios nos recessos obscuros da consciência coletiva" (Cinco Escritos Morais, p. 25, Record, Rio, 2006).

Assim como os males das guerras, os inconvenientes dos impérios têm sedimentação milenar na formatação da memória coletiva. Comemorações como a de 11 de setembro, na qual a dissimulação é a tônica da tentativa dos Estados Unidos de se reafirmarem como superpotência, podem ter efeito contrário nas circunstâncias atuais. Por trás das imagens chocantes dos escombros, dos depoimentos comoventes de familiares das vítimas e do simbolismo do ataque ao mundo e não a um país, pretendido no monumento construído no lugar onde ficavam as torres gêmeas, está a retórica de um conflito entre Ocidente e Oriente, que, a bem da verdade, é uma guerra apenas dos EUA e de parte dos países europeus.

O fantasma da Guerra Fria entre EUA e URSS, que rondou a geopolítica mundial desde a Segunda Guerra (1945) até a queda do Muro de Berlim (1989) não tem mais espaço nos tempos atuais. A inclinação do pêndulo econômico e cultural do hemisfério norte para o hemisfério sul está redesenhando o poder entre os continentes e as bravatas do aparato de propaganda do império não conseguem mais emplacar suas versões com tanta eficácia. E olhe que a indústria cultural norte-americana trabalhou para isso ao longo da última década. Somente a partir de Hollywood, filmes como Voo United 93, As Torres Gêmeas, 24 Horas, Guerra ao Terror e Nova York - o Renascer da Esperança, ocuparam as salas de cinema para orientar o olhar do mundo sobre o 11 de setembro.

Acontece que nessa mesma década, as guerras do Iraque e do Afeganistão resultaram em mais de 225 mil mortos. Mas as agências internacionais de notícias só realçam os menos de três mil mortos nos ataques às torres gêmeas. Os investimentos de quatro trilhões de dólares, para a movimentação das duas guerras, dessa vez não parecem ter rendido o esperado. Sem contar com a despesa de 75 bilhões de dólares que anualmente o país passou a ter com segurança. E, querendo ou não, todo mundo sabe que os EUA estão mergulhados em uma crise econômica profunda, que é uma crise de inadequação aos tempos. O país está estruturado na cultura do consumismo e do desperdício, totalmente incompatível com as condições do planeta de supri-la e da vontade do resto de mundo de patrociná-la.

O triunfalismo da reação bélica revelado na comemoração da derrota é desconcertante. Em 11/09/2011 a al-Qaeda ajoelhou literalmente o maior símbolo da globalização financeira, que eram as torres gêmeas do World Trade Center, na ilha de Manhattan; acertou o Pentágono, centro do poder militar, e obrigou a defesa estadunidense a abater um avião comercial do próprio país, para evitar um provável choque com a Casa Branca, sede do seu poder político em Washington. O caráter ficcional contido nessa ação fala por si e, numa rara experiência de comunicação os fatos conseguiram ser mais importantes do que as narrativas.

O fato é que as torres não estão mais lá e reacender a dor como plataforma para exibir capacidade de destruição me parece uma dificuldade de lidar com o presente. No passado, esse arroubo de supremacia até funcionou, com a divulgação das imagens dos cogumelos das bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki, em resposta final ao ataque japonês a Pearl Habor (1941), no Havaí. Hoje, simulações como a da captura de Osama bin Laden, não funcionam mais. Não houve cadáver para exibir como trunfo porque o mentor do ataque às torres gêmeas teria morrido há algum tempo de problemas renais.

A voz do império, embora ainda reverberante, não é mais a mesma. Tanto que a propriedade simbólica da data de 11 de setembro acabou sendo dividida com o bombardeio do Palácio de La Moneda, patrocinado pelos EUA no mesmo dia (1973), matando o presidente eleito do Chile, Salvador Allende, e abrindo espaço para a ditadura sangrenta do general Augusto Pinochet. Isso quer dizer que, em declínio, o último império perde o norte e cai no engano dos seus próprios sofismas. flaviopaiva@fortalnet.com.br

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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Convivência no espaço virtual – 8/9/2011 – Diário do Nordeste

A falta de regras para o uso da internet tem favorecido preponderantemente as corporações do mercado digital e as organizações do crime eletrônico. Esses setores estão mais bem preparados dos que os usuários para fazer valer sua moral comercial, religiosa ou política, contraditoriamente dentro dos padrões novidadeiros característicos da tradicional cultura de massa. Na tentativa de ampliar a segurança no ciberespaço e de proteger a internet pelo que ela tem de bom e assegurar ao usuário uma relação clara com os provedores e com o Estado, estão tramitando no Congresso Nacional dois projetos, o da Lei Azeredo e do Marco Civil.


A Lei Azeredo, de molho há mais de dez anos, tem abordagem criminal, e o Marco Civil, que entrou em pauta no mês passado (24/8), tem caráter civil. Parece-me mais lógico que primeiro se deve ter um Marco Civil, estabelecendo direitos e deveres cidadãos no espaço virtual, para depois tipificar os crimes, embora muitos desses ilícitos cibernéticos e condutas impróprias sejam notórios. Falo do estelionato eletrônico, da captura não autorizada de informações protegidas, dos atentados a serviços de utilidade pública, da interceptação de mensagens pessoais, da inserção ou disseminação de códigos maliciosos, de pedofilia e incitação ao preconceito, para citar alguns.


Parte das decisões a serem tomadas é de ordem política, tais como a soberania dos países na nova configuração multipolar, uma vez que o funcionamento da internet está pensado a partir de protocolos desenhados conforme os interesses norte-americanos, de alguns países europeus e do Japão. A outra parte deve obedecer a questões técnicas, a exemplo do tempo em que os provedores devem guardar as informações de acesso do usuário, com seu respectivo endereço de máquina (IP), para casos de interpelações judiciais, acionadas por quem se sentir efetivamente lesado em sua intimidade, imagem e vida privada.

É fundamental que ao examinar a proposta do Marco Civil da internet, a sociedade brasileira sinalize aos legisladores os temas de seu interesse, para que não haja omissão nem ambiguidades, o que por qualquer descuido pode acontecer em uma lei que estabelece regra geral. Assuntos específicos, como os previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os ilícitos cibernéticos, contemplados ou não pela Lei Azeredo e os temas a serem tratados pela lei do Direito Autoral, não devem ficar com brechas, sob pena de subjugarmos os interesses do País aos interesses de algumas condenáveis redes formais e informais.

Dois aspectos que considero fundamentais que estejam contemplados no Marco Civil, nem que seja apenas orientando sua providência em mecanismos adicionais, é a questão do idioma e a preservação da memória científica. Sem uma regulamentação nesse sentido, continuaremos obrigados a "raciocinar" na língua dos donos da internet e a abrir mão da linha evolutiva acadêmica, nos casos de citações bibliográficas. É lamentável ver tantas referências bibliográficas de sites e blogs em monografias, teses e dissertações, muitos deles já indisponíveis. Esse tipo de menção precisa ser protegida, a fim de facilitar a visitação de novos pesquisadores aos seus conteúdos integrais.


Outro ponto que percebo como preocupante na discussão do Marco Civil é que ele esteja descolado da predominância do poder econômico, do sistema partidário e eleitoral e de alguns duvidosos reclames democráticos; aquela coisa de tudo pela liberdade, desde que seja a minha, sobre a dos outros. Vira e volta e tenho essa impressão. É que muitos dos ativistas do anonimato não me dão a segurança de que se mexem por uma nova ordem social, mas apenas para se dar bem, reforçando o traço indesejável da esperteza, desde que tire o atraso do tempo em que não pôde copiar os privilégios burgueses que muitas vezes condenavam.

Talvez o problema mais complexo para o estabelecimento do Marco Legal da internet seja o conflito entre anonimato e privacidade online. A defesa pela não identificação de usuários tem inspiração nos traumas sociais europeus, na primavera árabe e no próprio fantasma das fatídicas experiências de ditadura no Brasil, marcados por regimes de exceção que tanto machucaram os direitos individuais e de grupos políticos. O anonimato, como uma premissa para a total liberdade de expressão na rede, pode evitar riscos de vigilância oficial e de invasão de privacidade, mas é antes de tudo abrigo a toda sorte de marginalidade.


Trata-se de um problema difuso, no qual a cidadania tende a ficar deslocada na queda de braços entre o mercado e o Estado. Não é à toa que o patrocínio de programas que driblam o monitoramento na internet, como o Tor, e os que procuram enfraquecer os criadores de conteúdos, como o Creative Commons, são corporações transnacionais, que se beneficiam com situações de vulnerabilidade legal. É provável que organizações mal-intencionadas e até criminosas também estejam por trás da manutenção desse grande "Complexo do Alemão" online, onde a ausência do Estado e a situação de impotência da população resulta nas condições ideais para a sua atuação.


Essa discussão deveria partir do princípio de que a internet é formada por logradouros públicos e que todo espaço público é por natureza um espaço de anonimato. Todo transeunte é, em tese, um anônimo. A perda dessa condição só deve ocorrer quando infringidas as regras de convivência, o que provoca a necessidade de identificação do infrator. Na vida de qualquer comunidade, física ou virtual, o bem-estar e o estabelecimento do equilíbrio social passam pelo respeito mútuo. Esse é um aprendizado que vem desde a vida nômade, da fixação humana em áreas agricultáveis e de criação de animais domésticos, da construção da cidade, dos processos de conurbação ao espaço público da virtualidade.


A revolução ensejada pelo surgimento da internet é fenomenal, mas não é tão distante assim das grandes mudanças ocorridas no mundo com a chegada do automóvel, do trem, do avião, da transmissão de rádio e tevê. Para a complexidade de cada situação dessas a sociedade encontrou formas de estabelecer marcos legais capazes de regular direitos e deveres dos usuários, por meio de sinalizações legíveis, visíveis e universais, da educação de direção defensiva e de normas para o transporte de mercadorias. Parece simples, mas não foi fácil cuidar, por exemplo, das liberdades do ar, quando o espaço aéreo doméstico e internacional necessitou de instrumentos jurídicos para ordenar o fluxo do trânsito "sem fronteiras" das aeronaves.


As redes são logradouros públicos e privados, ambientes de negócios e de convivência coletiva e espaços de circulação que, como as rodovias, as estradas de ferro, o espaço aéreo e as frequências de rádio e televisão, carecem de ordenamento através de regularidades. Nos séculos XIX e XX foram produzidas inúmeras peças legais e códigos de conduta que certamente servirão de balizas para a nova realidade desse início de século XXI. O Marco Civil da internet e suas leis complementares só terão alcançado êxito quando evitarem as infovias de mão única, por onde escoam cargas de bens econômicos e culturais homogeneizantes e muitas vezes em regimes abusivos que vitimam as cidadãs e os cidadãos, reduzindo o seu potencial de construção de múltiplos sistemas sociais, políticos e econômicos, motivados pela riqueza da diversidade cultural e da sustentabilidade.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O mal-estar da corrupção - 01/09/2011 - Diário do Nordeste


Cresce no Brasil a intolerância contra os corruptos. O mal-estar da corrupção na política criou um alvo comum para a indignação social, independentemente de classe, etnia, gênero e faixa etária. Os torpedos contra a delinquência oficial atingem tanto os velhos bandidos que tradicionalmente vêm assaltando os bens coletivos para fazer negócios particulares escusos, quanto os militantes que mais recentemente se transformaram em mercadores do poder, queimando parte significativa dos princípios republicanos e das nossas reservas éticas no âmbito dos costumes políticos.

Os escândalos de corrupção atingiram níveis de magnitude em escalas sismográficas. A formação de gangues para assalto ao orçamento público, a má gestão, os gastos excessivos, os desvios de recursos para benefício próprio, o enriquecimento ilícito e o favorecimentos de comparsas são alguns dos delitos dessas quadrilhas que tramitam nos escaninhos dos tribunais. Sem contar com aqueles que ainda não estão nos autos, mas reverberam nas vozes da imprensa, nas ações da Polícia Federal e nas providências do Ministério Público.

O mais revoltante em tudo isso é a desfaçatez com que certos corruptos aparecem nos meios de comunicação demonstrando sarcástica insatisfação pelos seus interesses contrariados. Nada de questões ideológicas ou programáticas; isso os partidos políticos no Brasil deletaram descaradamente e alguns querem piorar ainda mais, defendendo uma Reforma Política de cartolagem. As alegações faltam pouco para explicitar que se não dá para roubar, não interessa ser aliado de nada. As coalizões e as tensões nas bases aliadas fazem parte do cotidiano administrativo dos governos democráticos, mas esse tipo de chantagem ao vivo já está beirando o insulto público.

Este debate é muito sensível. Um descuido que seja e as raposas atacam por trás. Não é sem motivo que o assunto da corrupção caiu aparentemente nas graças de muitas figurinhas carimbadas por comportamentos pouco recomendáveis. Nesse álbum de horrores, quem vê cara não vê cidadão. Muitos estão até defendendo a CPI da Corrupção. Sabem que afastando o tema da sociedade e levando-o para a arena parlamentar, além de ter mais controle, a possibilidade de tirar vantagem da situação é maior. Mesmo em caso de carnificina, o tipo sanguíneo e o fator de transfusão da maioria tende a ser o mesmo; portanto, não falta quem possa fazer doação em caso de emergência.


O Brasil está sob nova direção e os seus antigos manipuladores não suportam isso, mas também não demonstram competência para apresentar razões que levem a população a acreditar que vale a pena reconduzi-los ao poder. O resultado desse triste vazio é uma oposição purulenta e ineficaz. A situação se agrava com as brigas de gangues, antes travestidas de esquerda, que fizeram do oportunismo uma forma de se dar bem e pronto. É desse saco de gatos malhados que saltam os escândalos de corrupção, desgastando consideravelmente a mínima estabilidade econômica e social conquistada pelo Brasil nos últimos anos.

As mensagens mais comuns, que podem estar confundindo a opinião pública na abordagem dos problemas da corrupção, ora acusam a presidenta Dilma Rousseff de estar montando um Estado dirigista e ora cobram que ela governe acima da lei, atropelando os direitos individuais dos servidores e dos aliados que entram em situação de degola. O que um Chefe de Estado republicano deve fazer nesses casos é mostrar que a corrupção não é um jeito cínico de governar, mas uma deformação da vida social, cultural e política. E a melhor maneira de interferir neste problema é governar com decência de caráter e com lisura, como ela tem feito.

A derrocada dos corruptos é um processo de múltiplos atores. Entregar a tarefa apenas à responsabilidade da presidenta é apostar no afastamento das pessoas da zona de interesse político, para que fiquem mais e mais descrentes na capacidade do poder público de gerir os recursos arrecadados dos impostos e de limpar a área contaminada pelo avanço da corrupção, no velho estilo da surdina e dos conchavos. A pressão para que o Palácio do Planalto faça da demissão de envolvidos em irregularidades uma meta administrativa é notavelmente tosca.




Combater o malfeito e tomar providências contra a bandalheira é diferente de estabelecer uma pauta de faxina. A presidenta está certa por não ter mordido a isca de faturar aceitação nas mídias e nas massas, em cima da ideia de limpeza. Esse estigma de Elektra assassina - a letal ninja de Frank Miller e Bill Sienckiewicz - serve para histórias em quadrinhos, mas estamos tratando das questões críticas de um País ainda desafiado por enorme desigualdade social, econômica e cultural. Sem contar com a pedreira que é proteger e dinamizar o Brasil no cenário turbulento da grande recessão mundial em curso.

Dilma não tem poupado os aloprados em nenhum escalão do seu governo, nem de qualquer força aliada, inclusive do seu próprio partido. Entretanto, ela sabe que os corruptos mais perigosos, os mais ardilosos, são aqueles cujas falcatruas ainda não foram descobertas ou estão sob a guarda de laranjas e de instituições fantasmas. Não é novidade dizer que este é um problema secular e que a solução para a corrupção no Brasil não depende de heróis e heroínas. Isso é conversa de quem quer destruir promovendo. A presidenta não pode sair demitindo meio mundo, senão poderá haver dificuldade de encontrar alguém para apagar a luz dos gabinetes.

O ajuste de conduta possível de ser feito no plano do Executivo me parece ser o que Dilma Rousseff está fazendo. Temos um tempo de purgatório pela frente, embora a ala dos sórdidos esteja superlotada. Escândalos não faltarão. Com o aperto orçamentário, que reduz a liberação de emendas e a nomeação de cargos, as disputas sangrentas na base de sustentação do governo tenderão a se acentuar. E os coveiros da governabilidade intensificarão as alegações de que a presidenta não quer abraçar a bandeira anticorrupção porque está sem rumo e não é uma liderança à altura do desafio. Este tipo de coerção infamante requer como contraponto o apoio da população, para que Dilma não se sinta sozinha quando tiver que afastar os maus políticos do governo.

A mudança no perfil do poder central brasileiro, que passou a ter um núcleo duro feminino, é tão importante quanto às demissões de ministros acusados de corrupção. Comparo a postura propositiva de Dilma, que, apesar de tudo, segurou o foco da gestão na construção da equidade, com a do rei Harald V, no caso da tragédia ocorrida mês passado na Noruega, quando um jovem foi ao extremo da carga de tensão que ronda a juventude europeia e matou quase uma centena de pessoas. A resposta do monarca nórdico inclinou-se mais para a ampliação da tolerância, da democracia e da generosidade do que para o aumento do número de presídios, da segurança armada e do cerceamento das liberdades individuais.

Se na monarquia, forma de governo da Noruega, o permanente é o rei, que tem a destacada obrigação de pensar grande e no longo prazo; na república, caso do Brasil, essa responsabilidade é, antes de tudo, da sociedade. A tarefa de derrubar e de não eleger mais corruptos deve fazer parte da nossa organicidade civil. Para ter estabilidade, a vida social do País necessita essencialmente de uma moral cultural e de uma moral política, tracionadas entre si; uma movida pela sociedade e a outra movida pelo Estado. A luta contra a corrupção passa pela sincronia do movimento gerado por essas forças. flaviopaiva@fortalnet.com.br