quinta-feira, 31 de março de 2011

A família e os limites da escola - Diário do Nordeste - 31/3/2011

Mês de março de 2011. Em uma grande escola de Fortaleza os estudantes de nove e dez anos fazem prova de matemática, com nove páginas, uma predominância de referências de consumo em seus enunciados e até perguntas que não são de matemática. O conteúdo gira em torno da chegada de portais de compras coletivas ao mercado "pet" (animais de estimação), das datas de vencimento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e a ilustração de um termômetro, com base na qual o estudante deve dizer a temperatura indicada e se essa temperatura caracteriza ou não a existência de febre.

No mesmo mês de março de 2011. Em uma escola de porte médio de Fortaleza um grupo de pais de crianças também na faixa de nove e dez anos escuta o vendedor de uma agência de viagens que explica a programação de uma excursão "pedagógica" para a cidade de Natal. Concluída a explanação, um pai comenta que sentiu falta da inclusão do "maior cajueiro do mundo" no roteiro. O representante da agência esclarece que essa famosa atração potiguar está fora porque é "programa de índio". Diante de algumas reações esboçadas na platéia, ele se defende dizendo que esse cajueiro não passa de uma "lenda urbana".

Tão desconcertante quando o ensino que pressiona a infância ao enquadramento mental nos parâmetros de consumo e na falta de propriedade conceitual das disciplinas é ouvir que uma "lenda urbana", inspirada em uma árvore frutífera originária da região, presente em sua culinária mesmo antes do início da colonização e com destacada relevância econômica e social não cabe no roteiro de uma "viagem pedagógica". Ao passo que uma balada, igual em qualquer lugar, é exibida como adequada para meninas e meninos de nove e dez anos, conforme explica o programa: "Curtiremos a valer com toda a turma ao som das baladas do momento e sob o comando de um DJ super animado".

Esses dois exemplos refletem três disfunções educacionais que merecem aprofundamento nas discussões sobre o compromisso da escola com relação à família, independente do tamanho do estabelecimento de ensino e em qualquer que seja a configuração familiar, enquanto núcleo de aproximação pela afetividade: a) educação voltada para a indução ao consumismo (redução do horizonte social? / preparação para o mercado de baladas?); b) educação sem clareza de conceitos (saber a temperatura da febre é matemática ou ciências? / viagem pedagógica ou doutrina de consumo?); e c) educação para a consolidação da precocidade em nome da autonomia (extinção do período de latência? / pressão para a antecipação da puberdade?)

O contrassenso delineado nessas interrogações parece oculto em uma tendência de cumplicidade desenvolvida em pontos de interesses comuns entre educadores e vendedores, com a anuência de mães, pais e cuidadores. "Isso é um erro motivado pelo egoísmo dos pais que, no fundo, querem ver-se livres do cuidado responsável dos filhos para viver suas vidas" (Quiroga, OESP, 12/10/2010). O problema é grave e deixa transparecer o transtorno resultante de uma certa incapacidade das famílias de estabelecerem os limites da escola na educação.

Por conta do descontentamento de muitas famílias com a qualidade do ensino, com as apostilas caras demais, com a anuência das escolas a comportamentos voltados para o consumismo e para a idolatria da violência, notam-se alguns focos de crescente insatisfação ainda velados pelo medo social. Mesmo assim, algumas famílias têm resolvido protestar, tirando os filhos da escola para educar em casa, contrariando a legislação brasileira, que determina a matrícula em escolas de ensino regular. Já existe até uma associação de famílias dispostas a lutar pela educação domiciliar, que é a Aliança Nacional de Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia).

Dá realmente uma agonia pensar em uma educação focada para tornar a meninada compatível apenas com a lógica econômica, como se não houvesse outras referências e razões importantes na vida em sociedade. Quando uma escola programa a ida de crianças para uma boate, ela está referendando institucionalmente a balada e tudo o que isso pode significar como redução do período de latência e preparação para o consumo de álcool e drogas, mesmo que na "balada infantil" nada disso seja vendido. É o conceito que está em pauta nessas circunstâncias em que a escola se submete aos interesses comerciais, quando o senso comum diz que os valores éticos são transmitidos pelo exemplo.

Pois bem, nessa "brincadeira" é que vem aumentando o sucesso das "galletitas mágicas", os biscoitos, brownies e cookies de maconha vendidos nas ruas em áreas de baladas portenhas. Com a entrada mais cedo das crianças nesse perfil de consumidor é provável que esse novo tipo de "guloseima" passe a ser vendido também nas calçadas escolares. Ao assumir decisões que cabem à família em casos como os das baladas, a escola acaba confundindo a diversão infantil (mais associada à linguagem do brincar) com a oferta de lazer juvenil (que é uma antecipação da puberdade), conferindo à criança uma autoridade inadequada à sua maturidade.

A usurpação do período de latência por meio da indução ao consumismo prejudica o equilíbrio individual, o senso de equidade social e causa ruídos sensíveis nas famílias, para as quais resta a saia justa de vetar a ida dos filhos para a balada, alimentando a desconfiança na orientação da família voltada para as instituições de ensino, ou a de deixar a criança ir, correndo o risco de validar um tipo de atividade que ultrapassa as fronteiras do papel escolar. A saída mais razoável tende a ser a de vez por outra consentir com a ida da meninada a esse tipo de evento, mas ressalvando o entendimento de que é uma coisa do grupo de colegas, isentando a escola para não ter que desautorizá-la.

Da mesma forma que existem famílias lutando judicialmente para educar os filhos em casa, existem aquelas que se sentem acobertadas pela "verdade moral" que está por trás da presença da escola com crianças nas boates freqüentadas pelas "galeras", que estão reproduzindo mais e mais o conceito de "balada" nos aniversários infantis. Alguns têm até batida de limão feita com todo o ritual de uma caipirinha, mas com a desculpa de não ter álcool. O chamado "som do momento" é o que a indústria da mesmice põe à venda na estação e isso nem sempre é do interesse de todas as crianças. Atualmente, pode ser a brasileira Manu Gavassi, revelada ao público infantojuvenil com o clipe "Garoto Errado", veiculado no YouTube, ou pode ser o estadunidense Justin Bieber que, com marketing mais robusto, tem até um filme (Never Say Never) contando a sua "trajetória".

Tenho a impressão de que muitas dessas famílias não estão bem avisadas do que é empurrar os filhos a uma educação sul-coreana, capaz de produzir indivíduos altamente autônomos, "inteligentes" e competitivos, mas que amarga uma estatística de quarenta casos de suicídios diários, numa proporção de trinta vítimas para cada cem mil habitantes. Que bom nível de vida será esse? "Em nome da autonomia, muitas crianças são abandonadas à mercê de seus parcos recursos de autocontrole" (Rosely Sayão, FSP, Equilíbrio, 9/4/2009). O desafio é não cair nessa roubada. Entretanto, para que a escola tome pé da sua parte no processo educativo, cabe à família explicitar as fronteiras dessa relação, por meio de um nexo afetivo acolhedor, impossível de ser estabelecido apenas pelo vínculo entre fornecedor e cliente.

quinta-feira, 24 de março de 2011

O Ecad diz que não é bem assim... - Diário do Nordeste -24/3/2011


Quando alguém vai gravar um CD de música é necessário tirar o ISRC, o Código Internacional de Normatização de Gravação, uma espécie de CPF digital da composição. Com esse código, o fonograma, que é a música gravada, passa a ser identificado na extensão dos seus titulares de direitos autorais e conexos, dentre outras informações, do tipo procedência, gênero e data de gravação original. Assim, toda vez que uma música é executada, a leitura do ISRC oferece o nome dos seus titulares e até a percentagem dos seus direitos.

No Brasil, o ISRC pode ser emitido por qualquer uma das nove associações de autores e essas associações devem encaminhar o relatório de cadastro de fonogramas ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, Ecad. Com um banco de dados informatizado e farto, o Ecad tem tudo para fazer um controle eficiente da execução pública, inclusive no que se refere às canções apresentadas em shows e eventos, com base nos borderôs fornecidos pelos promotores, na hora de pagar o Direito Autoral.

Do mesmo modo que emitem o ISRC para fonogramas, as associações são responsáveis também pela emissão do ISWC, o código de referência internacional para a identificação de obras musicais, não necessariamente gravadas. De sorte que o Ecad tem em mãos todo um ferramental que o torna apto a administrar a arrecadação e a distribuição dos direitos autorais dos titulares vinculados às suas associações filiadas. Essa é a teoria, pois na prática há dois graves problemas nesse esquema: um de obrigatoriedade na arrecadação e o outro de falta de transparência na distribuição.

No meu artigo, intitulado "Ana de Hollanda e o Direito Autoral" (DN, 30/12/2010), replicado no portal Cultura e Mercado (24/02/2011), defendi que algo precisa ser feito nessa dissonância administrativa, para que os autores não fiquem à mercê do cartel do Ecad, montado em um sistema de excelência tecnológica e policialesca para arrecadar, mas cheio de corpo mole e de "deficiência prática" na hora de distribuir. A superintendente executiva do Ecad, Glória Braga, considerou o meu posicionamento uma "infeliz declaração" no artigo "Resposta do Ecad a Flávio Paiva", publicado naquela revista blog (14/03/2011).

Ela ressalta que "o Ecad não pode ser considerado um cartel, pois as atividades de arrecadar e distribuir direitos autorais não são de natureza econômica, já que a música não pode ser caracterizada como um bem de consumo a ser ditado pelas regras de concorrência". Eu diria que apesar de as associações que mantém o Ecad serem entidades sem fins lucrativos, elas existem por motivação econômica e, por terem o monopólio da arrecadação e da distribuição dos direitos de terceiros, inclusive de não associados, guardam a característica de cartel.

Em sua réplica ao meu artigo, Glória Braga argumenta que se o artista filiado a qualquer das associações "não estiver satisfeito, seja com a política adotada seja com a presidência de sua associação, que busque outra opção". Como buscar outra opção se o sistema de gestão do Direito Autoral relativo à execução pública tem controle exclusivo do Ecad? Os autores que não aceitam essa ingerência compulsiva precisam de alternativas legais. Talvez seja possível criar um selo que distinga as criações musicais controladas pelo Ecad, de modo que as demais possam construir outras trilhas.

Desta forma, muitos artistas brasileiros poderiam se livrar do recolhimento do pagamento de direitos autorais ao apresentarem suas próprias obras. Considerando que do jeito que está a certeza de não receber perde de longe para a certeza de ter que pagar, alguns recorrem a termos de "renúncia", mas é tão complicado convencer o Ecad a aceitá-los que em muitas ocasiões sai mais "barato" pagar e esquecer que se pagou. Em sua resposta, a executiva do Ecad conclui que "sem nenhuma supervisão do Governo, essa estrutura distribuiu, em 2009, R$ 318 milhões para 81.250 criadores de música". Esqueceu de informar que no mesmo ano a entidade reteve R$ 65 milhões na rubrica "taxa de administração".

Com o potencial de recolhimento de direitos autorais por parte de algumas empresas do mercado de mídias, provedores e buscadores digitais, provavelmente serão registrados aumentos na arrecadação e na distribuição. Nesse cenário surge o fantasma da falta de transparência no repasse dos recursos aos titulares. A superintendente executiva do Ecad diz que "todas as informações sobre o trabalho da entidade estão disponíveis no site http://www.ecad.org.br", porém o que de mais próximo com transparência se vê no portal da entidade é um ranking de artistas com maior rendimento.

O Ecad não teria perdido sua atração de entidade de autores, caso tivesse trocado a política de conluio com os majoritários pelo desenvolvimento de uma política de respeito aos minoritários. Tomando como base os números oficiais do próprio Ecad, "que representa atualmente os direitos autorais de execução pública de 342 mil titulares de música", menos de 24 por cento dos autores recebem qualquer repasse da entidade, numa total falta de senso de prestação de contas, de noção de equidade e de compromisso com os associados. Somente a adoção de boas práticas de governança salvaria o Ecad dessa crise de desconfiança na relação com as suas partes interessadas.

Entre os defensores do Ecad em sua forma atual é comum ouvir a queixa das dificuldades de receber o pagamento de quem tem o dever de pagar Direito Autoral e não paga. Muitos usuários já estão pagando a empresas de comércio de conteúdos pela internet para ter acesso a bens intelectuais, mas as parcelas destinadas a direitos autorais não estão chegando aos criadores. Usam essa dificuldade de arrecadar para justificar a dificuldade de "fazer justiça distribuindo migalhas, por mais sofisticado que seja o sistema de distribuição". Acontece que essas migalhas têm dono e, como não existe uma regra clara da destinação desse dinheiro alheio, o Ecad perde força entre os autores e, consequentemente, na sua luta para arrecadar.

O raciocínio de que é praticamente impossível distribuir valores extremamente insignificantes tem sentido. Todavia, esse juízo não vale para quem se sente ultrajado em seu direito. Imagino que se fosse delimitada pelo menos uma fronteira para a viabilidade dos autores receberem os repasses devidos pela execução pública de suas obras, o mal-estar da falta de transparência seria reduzido. Neste caso, a prestação de contas com os minoritários somente seria efetuada quando o interessado alcançasse um determinado valor a receber. Para isso, seria necessário que o autor de obras de baixa freqüência de execução pudesse acessar no portal do Ecad a evolução do seu ganho.

O fato de qualquer autor cadastrado em qualquer das associações que constituem o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais poder acompanhar, por um sistema de busca elementar, a movimentação financeira resultante do seu trabalho já seria um grande avanço na aproximação do Ecad com os criadores que lhe dão razão de ser.

Infelizmente o problema não é de cunho tecnológico, mas de ausência de discernimento por parte dos controladores da instituição. Enquanto a sociedade reclama a flexibilização de obras para fins de uso pessoais e educacionais (não comerciais, não publicitários, não religiosos e não políticos) a direção do Ecad fecha-se em seu despotismo e apenas diz que não é bem assim.

quinta-feira, 17 de março de 2011

A primavera de Bia Bedran - Diário do Nordeste - 17/3/2011

Tempos atrás a compositora e contadora de histórias Bia Bedran escreveu um livro intitulado "Cabeça de Vento" (Nova Fronteira, 2003). É a história de um menino que ao ser chamado assim "encasquetou" e tratou de descobrir se isso era bom ou ruim. Descobriu que a infância e o vento têm muito em comum porque ambos gostam de viver em movimento. Sem contar que, dentre outras coisas, o vento espalha sementes, plantando árvores enormes e lindas flores, boas para subir e para colorir o dia.

E não é que "Cabeça de Vento" acaba de dar nome ao novo DVD com o qual a Bia homenageia todas as pessoas que criam e que compartilham sua arte inventiva com os outros! É primavera no jardim da música e da contação de histórias porque esse trabalho tem flora e fauna nas palavras e nas notas musicais, refazendo percursos, recriando sensações e traduzindo sentimentos, emoções e sentido de ludicidade.

Gravado em 2010 no teatro do Sesi, no Rio de Janeiro, esse DVD é uma obra transetária que sai dos limites do palco e da tela para encontrar o espectador onde quer que ele esteja no tempo e no espaço. É arte testada por toda uma experiência de vida e realizações, que confere à artista a condição de saber o significado do fazer e do que faz. Embora produzido com poucos recursos, o trabalho empolga por guardar em sua essência o incrível acolhimento das obras integrais.

Bia Bedran abre as janelas do audiovisual para mostrar a poética do seu ser, cantando, contando e tocando violão, acompanhada por uma banda formada por Ricardo Pacheco (teclados e programação), Paulão Meneses (percuteria) e Guilherme Bedran (violino, bandolim e vocal). O DVD "Cabeça de Vento", produzido por Maurício Ribeiro, ainda não começou a ser distribuído, mas já pode ser adquirido pelos correios (contato@biabedran.com.br). É um bom presente para as crianças, cuja consciência musical tem sido formada por uma noção de arte como simples produto comercial utilitário.

Com um repertório cheio de composições e histórias antológicas de autoria da Bia ou adaptadas por ela, o DVD reúne temas de grande importância para a cultura da infância na atualidade.

Em "Ciranda do Anel", Bia Bedran canta a história da menina que perde o anel no mar e fica imaginando se ele foi parar no dedo da sereia, na goela da baleia ou se um pescador o encontrou e deu ao seu amor; mas o mar, generoso, dá a ela uma concha de presente. Na música "Quintal", a cantora fala do renascer de uma infância que volta a poder andar solta no mato, a procurar tesouros, a voar que nem passarinho e a brincar com saci pererê.

O movimento segue com "O Trem" que "vai por aí piuí, piuí", apitando em fantasia de café com pão, e passa por "Pedalinho", o brinquedo que leva a criança a singrar devagarinho pelos agradáveis caminhos das águas. Já "Dona Árvore" é uma construção de "Tronco, folhas, galhos tem, fruta, flor e raiz" (...) "Subir, subir, vamos subir", enquanto "Tudo azul" encerra o DVD na comunhão entre cultura e natureza: "Seremos mais, muito mais / A semear a paz / Entre plantas, homens e animais".

A arte de Bia faz festa no terreiro das palavras, dos sons e do teatro. A música "Macaquinho", inspirada em uma história do escritor mineiro Simões Coelho, comove pela forma como o boneco é manipulado e pelos recursos a que o personagem recorre para obter a atenção do pai. Riqueza cênica também realçada na história do Neco e da Neca, cheia de amor ardente, esfarrapante, "à flor do pano", como diz a canção "Flor do Mamulengo", do compositor cearense Luís Fidelis, gravada originalmente por Abidoral Jamacaru.

Cada música, cada história, cada gesto no palco, se diferencia em um espetáculo sem simplificações forçadas para impor qualquer compreensão. Quando ela canta a música "Videotinha", uma crítica aos adultos que submetem às crianças à pedagogia das telas, ela faz isso simplesmente simulando o formato da telinha numa dança de braços e mãos. É o que ocorre também na narrativa do conto popular "O Pescador, o Anel e o Rei", no qual a dramaticidade reforça naturalmente o incômodo do soberano diante da fé do pescador que gostava de cantar: "Viva Deus e ninguém mais / Quando Deus não quer / Ninguém nada faz".

E assim, o DVD "Cabeça de Vento" oferece quinze diferentes exercícios do olhar, na relação do lúdico com crianças, adultos, seres fantásticos, com o tempo e os objetos. Nesse aspecto, vale destacar ainda a música da "Boneca de lata" que bateu com a cabeça no chão e deu o maior trabalho para fazer a arrumação. "Desamassa aqui / desamassa ali/ pra ficar boa". Não posso deixar de realçar também "As Caveiras", um roque de divertido pavor, marcado pelas batidas do relógio e pela dança das caveiras em seus passeios fora das tumbas, quando elas aproveitam para pintar as unhas, imitar chinês, tirar retrato, jogar xadrez, comer biscoitos e pastéis: "Tumbalacatum tumbalacatá".

Bia Bedran é uma meticulosa artesã da cultura musical brasileira. Desperta interesse com sua narrativa bem modulada e com seu canto cheio de paisagens que têm cheiro de infância. No DVD pode-se ver e rever como seu corpo se expressa com pressa ou sem pressa, em um tempo para cada tempo das notas musicais e das palavras, conforme a força de cada história e de cada canção.

No universo da MPB Infantil ela é a artista mais querida pelas crianças. A meninada a abraça com encanto porque percebe que além da cantora e da contadora de histórias estão abraçando um coração bom, uma alma boa. O que mais distingue a personalidade cativante e o trabalho da Bia é a leveza, a pureza, o respeito ao outro, o algo a dizer e a brasilidade que ela carrega em si e no que faz. A autora do "Cabeça de Vento" tem a capacidade de querer dos que querem e têm a coragem de colocar em movimento os seus sentimentos mais sublimes, tornando-os fecundos.

Por isso ela nunca perdeu a estação das flores e das cores. Bia sempre parece atenta ao fato de que a primavera vem entre o inverno e o verão. Mesmo que no Brasil o descaso com a arte para crianças ainda balance os arbustos do direito às criações de qualidade para derrubar-lhes as pétalas mais belas, a obra de Bia Bedran permanece convidando a criança para um passeio na sua natureza interior e exterior.

O excelente repertório registrado no DVD "Cabeça de Vento" mostra bem o quanto temos de preciosidades nessas experiências que vivem perguntas e que vivem respostas, despertando perguntas e respostas em crianças e adultos. O vínculo da música com a contação de histórias é um estímulo a mais, resultante da sinergia desses dois recursos de linguagem existentes desde que o ser humano se deu por gente.

No DVD, Bia Bedran aproveita para mostrar alguns livros por onde as suas histórias e canções se mexem, olhando pelos cantos das páginas e espiando o leitor como quem não renuncia a transmissão de ensinamentos, mas não se apega a isso. Além da mensagem levada ao palco está a arte que diverte e o humor que aproxima pelo essencial. A artista entrega ao público a sua fantasia para em forma de palavra se vestir de som e, como som, mergulhar na palavra.

Tudo isso acontece no espetáculo que foi filmado. Como olhar não é o mesmo que ver, nem escutar é o mesmo que ouvir, essa "cabeça de vento" chamada Bia Bedran calibra com vivência incomum a sua proximidade com o público. Por ser uma pessoa cantando e contando para outra pessoa, todos se encontram no mesmo enredo, num envolvimento simbiótico de manifestação verbal, sonora e cênica.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Tempestade democrática - Diário do Nordeste - 10/3/2011



A onda de revoltas populares que vem desestabilizando as estruturas conservadoras de poder na África árabe e no Oriente Médio parece ter um ponto em comum: os ativistas dos protestos não querem a presença das grandes potências econômicas e bélicas envolvidas no conflito. Para eles, Europa e Estados Unidos não passam de sócios das monarquias, repúblicas e emirados que constituem uma dúzia de regimes de exceção que estão sendo derrubados pelo poder civil.

A Organização das Nações Unidas, ONU, finge que não compreende o recado e insiste em abrir "corredores humanitários" aéreos e terrestres, para levar "ajuda" às vítimas dos opressores e um pouco de "elixir" democrático. As pessoas mobilizadas rejeitam porque sabem que se permitirem a abertura desses corredores, por eles passarão toda sorte de infortúnio. A desastrosa invasão do Iraque, em nome da democracia, já tem uma década e não há o que comemorar.

A noção de que a guerra é um grande negócio para seus patrocinadores está tornando-a cada vez mais inaceitável. A luta armada é uma oportunidade de exibição de armamentos que, depois da desgraça, são postos à venda em nome da segurança. Ademais, uma guerra não destrói somente vidas; uma guerra acaba com carros, prédios, pontes, eletrodomésticos, equipamentos hospitalares, enfim, acaba com toda a infraestrutura do lugar onde ocorre. E, não por acaso, normalmente esses produtos são fabricados pelos "sócios" externos das elites nativas agregadas.

Às vezes, uma guerra precisa compensar com outras guerras os altos investimentos que não conseguem retorno imediato. Somente na guerra do Afeganistão, os EUA vêm gastando mais de cem bilhões de dólares por ano. Eles precisam de conflitos mais lucrativos, algo à base de gás e petróleo. Entretanto, os cidadãos e as organizações políticas da Tunísia, do Egito, da Líbia e dos demais países que experimentam esse fenômeno de mobilização social, esperam obter suas próprias respostas e sabem que a intrusão empobrece a experiência de construção de governos participativos.

Numa situação dessas, o discurso "humanitário" não convence mais. A demonstração de força disposta ao longo do Mar Mediterrâneo, com mísseis, fuzileiros navais e marines, destacados em navios, aviões e submarinos, somada às sanções políticas e bloqueios comerciais, também já não parecem revelar manobras confiáveis. No passado, o norte da África foi dominado pela Europa. Houve momentos de saque, de ocupação e de instituição da dependência, por meio de tutelas a governos "aliados". Essa terceira fase passou a contar com a participação dos EUA.

Na atualidade, com o neoliberalismo cambaleante e o início da configuração de um mundo multipolar, muitas das nações árabes-africanas e médio-orientais converteram a brutalidade das ditaduras "sócias" das grandes potências em movimentos de libertação que resultaram em uma tempestade de areia democrática. Como em toda tempestade de areia, a visibilidade no cenário político é muito baixa. É praticamente impossível imaginar no que tudo isso vai dar ou saber de onde partiu exatamente toda essa propulsão revolvedora.

O extremo da opressão, da pobreza e da humilhação são de certo causas internas profundas, que geraram uma vontade também extrema de mudanças. Um fator bastante observado como de alta contribuição às revoltas é a presença, mesmo vigiada, da internet e da telefonia móvel na região. Com celulares que fazem fotos e canais virtuais para fazer mais rapidamente a mobilização, as pessoas descontentes passaram a assumir o papel de fontes e emissoras locais; fato que vem sendo chamado de jornalismo comunitário.

A impressão que dá é a de que a articulação cidadã, suportada por uma nova dinâmica econômica, pela emergência de movimentos sindicais e pelas novas mídias, passou a ter tanto poder de influência no âmbito da sociedade civil quanto as forças armadas têm nas esferas tradicionais do Estado. A cibercidadania desorganiza a trama do poder baseado nos conchavos, cooptações e em armas, ensejando o nascimento de um novo tipo de comportamento de difícil controle e dominação.

Os descontentamentos, que têm muitas causas, passaram a ter muitas formas e muitas válvulas de escape. Sem saber como interagir diante da nova realidade, as velhas potências coloniais, tais como França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Bélgica e Itália unem-se aos EUA para difundir a ideia de que aquela região é incompatível com a democracia e que, por isso, necessita de "ajuda" para não entrar em incontrolável guerra civil.

Como saber disso, se nos últimos séculos os países árabes-africanos não tiveram a menor chance de provar em contrário? Sempre há um colonizador por perto querendo "ajudar", mas na verdade, dividindo nações amigas e colocando povos inimigos em um mesmo país. Foi assim durante a influência espanhola e portuguesa, foi assim no período da exploração comercial e financeira holandesa, foi assim no domínio francês, foi assim durante o auge do império britânico e foi assim com o controle do Egito e da Arábia Saudita pelos estadunidenses.

E agora? Agora, esse mundo quer tentar uma mudança sozinho. Sem discursos convincentes os ideólogos da governança global, a partir dos interesses dos EUA e da Europa, começam a dizer que as lideranças desses povos podem até conduzir uma revolução, mas não conseguirão estabelecer a ordem necessária para a governabilidade. É sempre assim; sempre um discurso de impossibilidade a desqualificar as pessoas e as organizações que estão tendo a coragem de enfrentar os regimes despóticos encorajados, patrocinados e usados por essas mesmas grandes potências.

Não existe nada mais antiquado do que essa retórica que visa diminuir os processos dos outros sem olhar para os seus próprios processos. A migração da Idade Média para a Modernidade na Europa não ocorreu assim da noite para o dia, da mesma forma que a guerra de secessão nos Estados Unidos (guerra civil) não acabou com tudo arrumadinho, pronto para começar uma experiência democrática. Só para se ter uma ideia dessa complexidade, até hoje os EUA não têm sequer um nome para designar a sua nacionalidade: como eles mesmos acham feio dizer "estadunidenses", acabam erroneamente autodenominando-se de "americanos".

Por outro lado, a controversa realidade européia não dá mais para os europeus baterem no peito e dizer que são exemplos de democracia a serem seguidos. Decretaram o fim do multiculturalismo, fecharam-se violentamente contra os imigrantes (sobretudo africanos) e vivem intensos e muitas vezes sangrentos conflitos étnico-culturais e políticos. Como a circulação internacional de notícias (inclusive pela internet) está sob o controle europeu e estadunidense, situações como a guerra de secessão entre valões e flamencos, na Bélgica, quase não aparecem e quando se tornam notícia, dificilmente recebem tratamento tão dramático e depreciativo como o caso das revoltas da África árabe e do Oriente Médio.

O que me chama a atenção no que percebo de rejeição dos árabes, africanos ou não, às aberturas de "corredores humanitários" pelas grandes potências, tem na história e nas práticas recentes da Europa e dos EUA muitos e muitos elementos que desautorizam suas falas em nome da democracia. O horizonte é turvo, inclusive porque o G-7 (EUA, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Canadá e Japão), grupo de países que manda na ONU, ainda não entendeu que a nova governança mundial passa por uma grande massa de partículas democráticas deslocadas pelos ventos da nova geopolítica mundial.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O deputado Tiririca e a educação - Diário do Nordeste - 3/3/2011 -

A educação está sempre em primeiro lugar no Brasil, quando o debate gira em torno de grandes problemas nacionais. Não há quem não demonstre preocupação com os casos, descasos e acasos das questões educacionais. A necessidade de acesso à educação está para o inconsciente coletivo brasileiro como a luta por alimentos está para o instinto de sobrevivência dos seres vivos.

A complexidade do assunto tem exigido de educadores e políticos soluções e medidas difíceis de serem identificadas e implementadas. É que embora o tema seja amplamente consensual, os interesses que o movem não são comuns. Tome-se como referência a retórica que for, mas em resumo a educação é formatação do ser social, quer para fins sobrepujantes ou libertadores.

O momento é de muita discussão. A pauta fala do Plano Nacional de Educação, da Lei de Responsabilidade Educacional, do controverso artifício das cotas, do suporte digital a professores e estudantes, dos experimentos do programa Ensino Médio Inovador e da reforma do Ensino Superior, só para citar alguns pontos. Sociedade, governos e mercado têm pela frente a definição de uma série de políticas educacionais que estabelecerão as diretrizes do ensino no País.

Em meio a essas e outras questões sensíveis, a Câmara Federal passa por um extraordinário dilema: o deputado Francisco Everardo Oliveira Silva (PR-SP), o palhaço Tiririca, demonstrou interesse de ser titular da Comissão de Educação e Cultura (CEC) do parlamento brasileiro. A reação dos especialistas foi imediatamente oposta ao que seria na visão culta uma intrusão de um indivíduo que, para assumir o cargo de deputado, foi submetido pela Justiça Eleitoral a fazer um teste provando que bem ou mal era capaz de ler e de escrever.

Os argumentos contra o pleito do deputado Tiririca tentam mostrar que ele não está preparado para contribuir com um setor historicamente tão complicado e, sendo assim, deveria deixar de lado a sua aspiração, cedendo o lugar na CEC para alguém que tenha currículo e que possa tratar o assunto com mais seriedade e competência. Dizem isso como se os especialistas em educação e os parlamentares letrados tivessem todas as respostas ou pudessem consegui-las sozinhos.

Sinceramente, acho uma mistura de tolice, soberba e falta de educação política essa tentativa de veto ao Tiririca. O Estado não pode desconhecer as relações igualitárias e universalistas que protegem os seus cidadãos. Essa atitude abre espaço para perguntas que precisamos nos fazer antes de tomarmos qualquer posição em casos assim. O que é mesmo a democracia representativa? Quem representa quem no sistema político que está aí? Por que esse tipo de distinção entre os eleitos?

A ousadia de Tiririca de querer participar da Comissão de Educação e Cultura após romper a barreira da classificação de analfabeto absoluto, saltar o estigma de baixo nível cultural, muitas vezes atribuído ao humorista popular, e escapar da sanha do preconceito contra nordestinos, coloca todo o parlamento frente a um inusitado desafio de convivência: aceitar a interrogação dentro da questão e não no final da frase. O deputado Tiririca é o sujeito de estudo em perfeita refutação ao que representa como objeto.

A Câmara Federal, as assembleias legislativas e as câmaras municipais de todas as regiões brasileiras estão cheias de parlamentares tão ou mais "analfabetos" do que o deputado de Itapipoca, eleito pelos paulistas. Muitos são formados apenas nas escolas da astúcia e da safadeza. Mas estão lá, pintando e bordando, nas mais estapafúrdias das negociatas, como regularmente se pode ver no noticiário. O afronta de Tiririca foi ter pensado que, por ser um artista, poderia muito bem fazer parte de uma comissão que trata da questão da cultura.

Acontece que a comissão é de educação também, daí o caráter disruptivo pichado na imagem de um "analfabeto" querendo cuidar do que ele não teve direito. Isso afeta os nossos padrões morais, porque vai de encontro ao questionável conceito que temos dos capazes e dos incapazes. O ponto mais delicado desse caso é a sua explícita rejeição. A condição de insuficiência escolar de Tiririca não deveria tirar dele a aptidão legal para praticar suas convicções, modeladas, não nas salas de aula, mas nos palcos e picadeiros, onde a vida se manifesta pela ruptura da fantasia.

Talvez o regurgitar de educadores ao sentirem o Tiririca goela abaixo tenha um traço de vergonha e de frustração. Afinal, ele nunca conseguiu o diploma de "doutor do ABC", mas tem o diploma de "Deputado Federal". Isso afasta do debate os motivos que levaram o humorista ao Congresso Nacional e introduz indagações desestabilizadoras e pouco simpáticas a quem vive de formular políticas de educação e se recusa a exercitar a curiosidade exploratória que fatos como esse proporcionam.

As perguntas incômodas começam a saltar à vista e os educadores falham por não quererem escutá-las. E se o Tiririca perguntar mais do que apresentar propostas? E se ele surpreender com proposições de iniciativas inovadoras? E se a sua experiência de palhaço revelar caminhos que facilitem a aproximação de educadores e estudantes? E se dos esforços que ele teve para trabalhar e sobreviver no mundo discriminado dos "analfabetos" puder fornecer novos insumos para a melhoria da qualidade na educação? Improvável? Por que?

Ao ser eleito deputado federal, Tiririca não escolheu ser outra pessoa. Pelo contrário, a prova de que optou por ser ele mesmo está na sua preferência por fazer parte da Comissão de Educação e Cultura. Essa escolha é o que me parece haver de mais lúcido em sua possível tentativa de descoberta do que faz ou poderá fazer em Brasília. Pode até não dar em nada. Pode ser um fiasco total. Entretanto, não há como saber o quanto ele pode ou não contribuir, caso lhe seja roubada a oportunidade de evidenciar suas intenções.

Com esse tipo de comportamento discriminatório, a parte ilustrada da esfera política e educacional que faz rotação e translação na Câmara Federal, parece abalada com o fato de a vontade de participar da CEC ter partido do interessado, pelo que lhe é de direito conquistado em sufrágio popular. Fosse uma experiência de privilégio que os estudiosos da educação estivessem consentindo a um pobre de um "analfabeto", a polêmica não existiria, pois as coisas estariam em seu devido lugar: de um lado, os que podem ofertar, e, do outro, o carente.

Obedecendo a essa lógica da hierarquia do saber na democracia vacilante, a Comissão de Educação e Cultura estaria aparecendo na mídia por sua grandeza de conceder a um incauto o direito de fazer parte da sua experiência, numa relação dialógica, construtiva e transdisciplinar. No entanto, quem pôs a questão no centro do debate foi um legítimo representante do descaso e dos improvisos educacionais e culturais a que sempre foi relegada a maioria dos brasileiros.

O caso Tiririca expõe a inaceitável fraqueza que domina alguns aspectos políticos da nossa educação. Por mais que se escute falar em afetividade e intuitividade como novos parâmetros educacionais, ainda estamos presos mesmos é a uma forte razão prática, que entra em contradição ao se deparar com situações como essa em que o refugo à participação de um deputado numa comissão, não se dá por conta dos mecanismos de ocupação partidária de espaços, mas em decorrência de uma lamentável noção de cidadania de primeira e de segunda classe ainda preponderante em nosso País.