quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Narrativas do brincar (I) - 2/9/2010 - Diário do Nordeste

A brinquedoteca da cidade de Cruz fica em uma agradável praça, com ladrilhos que têm forma de macaca e jogo da velha (...) Construir um "Espaço de Referência do Brincar" é uma questão de compreensão, de compromisso sincero com o sentido público

Brincar é uma situação encantatória por meio da qual nos preparamos para tomar consciência da nossa humanidade e do mundo que nos cerca. Particularmente, trabalho com duas narrativas do brincar em seu ato concreto, que é a brincadeira: a narrativa do calor táctil e a narrativa que acontece pelo ouvido da mente. Uma, está associada aos jogos para os quais utilizamos os tradicionais cinco sentidos; a outra faz parte do conjunto de sensações resultantes da combinação de sentidos e da força reveladora das palavras. Ambas constituem-se, portanto, um direito humano, o direito à brincadeira do corpo, das palavras e do pensamento.

Tomei essas narrativas do brincar como base para a palestra que proferi sobre "A criança nos planos de desenvolvimento do Estado", na última segunda-feira (30), no Plenário 13 de Maio da Assembleia Legislativa, a convite da Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Estado do Ceará - APDM.CE e do Unicef. Presidida pelo deputado Artur Bruno, a Sessão Solene, que tratou da certificação dos educadores sociais (brinquedistas), do programa "O Ceará cresce brincando", me deu a oportunidade e a satisfação de compartilhar o que penso e o que proponho sobre esse tema tão instigante, necessário e urgente.

Na nova realidade mundial, agitada pelas transformações de significados decorrentes dos arranjos da multipolaridade, da virtualidade, da biotecnologia, da transgenia, da nanotecnologia e da sustentabilidade, o brincar e a brincadeira começam a aparecer, ainda que bastante incipientes, como indispensáveis na reconstrução do mundo. Por sua natureza espontânea e sua incomensurável liberdade de experimentação, brincar é uma das mais claras alternativas de busca de equilíbrio psicossocial diante do emaranhado de crenças e descrenças que rondam os tempos atuais, ainda marcados pela supremacia do economicismo, da vulnerabilidade do pensamento e da palavra, do uso da religião como suposto recurso de cidadania (o sagrado está ficando perto demais), da crise da política, da neutralização da infância readultizada e da escola (pública ou privada) como ponto de venda cativo do mercado de consumo.

O determinismo dos fatos é outro aspecto de entrave à evolução de uma mentalidade favorável à infância como elemento de mudança positiva. Sabemos que é uma dureza promover o desenvolvimento em um país colonizado e em um estado perversamente estigmatizado como pobre. Mas o Brasil e o Ceará não cabem mais no reducionismo desses estereótipos. Provamos nos últimos anos o sabor da impossibilidade, ao nos reposicionarmos com autonomia no diálogo interno e externo. Temos uma nova elite em formação, embora ainda confusa do seu papel; temos uma nova cultura se pronunciando, embora ainda em estágio conflituoso de afirmação; temos anseios por uma nova educação... e tudo isso requer novas formas de intervenção pública. Nesse contexto, pensar a criança é pensar no traçado de uma nova rota; é optar pelo brincar e pela brincadeira em sua dimensão estruturante.

Na quinta-feira passada (26) fui ver de perto um dos 14 espaços de referência do brincar, do programa "O Ceará cresce brincando". A brinquedoteca da cidade de Cruz, a pouco menos de 300 quilômetros de Fortaleza, pelo litoral oeste, fica em uma agradável praça, com ladrilhos que têm forma de macaca (amarelinha) e jogo da velha, adornados pela plasticidade cosmológica das carnaúbas copérnicas, típicas da região. Vi crianças e adultos entrando e saindo nos espaços de contação e de jogos, como o vento e a luz que passavam pelos cobogós da simples e funcional arquitetura do pequeno prédio. As brinquedistas atentas e comprometidas me falaram de cultura e cidadania, ao mostrar a diversidade de opções de jogos e brincadeiras e ao contar do cotidiano do seu trabalho, extensivo aos distritos e à interação com os mais velhos.

Quando vejo essas coisas encho-me de esperança. Penso em quantos parabéns merecem os gestores públicos que são capazes de ver grandeza nas pequenas realizações. Construir um "Espaço de Referência do Brincar" não custa tanto. É uma questão de compreensão, de compromisso sincero com o sentido público da política. A infância precisa desse tipo de atenção e de espaço. As crianças já não suportam mais a pressão do agendamento das obrigações diárias, as tentações do consumismo, a pouca clarificação dos novos arranjos familiares, a desconstrução das referências de proteção espetacularizadas no noticiário de casais que se matam e pais que matam os filhos e o abandono ao mundo virtual dos games de violência e do cyberbulling ao sabor comercial das quatro telas (cinema, televisão, computador e celular).

O currículo escolar está cada vez mais impraticável. A grade de cinco disciplinas básicas (Português, Matemática, História, Geografia e Ciências) vem sendo inchada com o acréscimo de Filosofia, Sociologia, Artes, Música, Cultura Afro-brasileira, Cultura Indígena... sem contar com a introdução de temas obrigatórios, tais como os Direitos da Criança e do Adolescente, Direitos dos Idosos, Meio Ambiente, Consumo Consciente e Educação para o Trânsito. A criança fica desencorajada de ir à escola e a evasão aumenta. Por que ao invés disso, não se fazem interações didáticas, evitando o estresse escolar? As novas tecnologias estão aí para facilitar esse tipo de adequação. Sinceramente, não há mais do que a necessidade de uma nova disciplina, que poderia ser "Ética e Estética", englobando filosofia, artes, música, cultura popular, culinária, religiosidade, modas e modos. Se em História não cabe cultura afro-brasileira, cultura Indígena e até sociologia é porque nossas fontes escolares precisam sair das deformações herdadas da história única.

Precisamos aliviar a escola, deixar de jogar para a responsabilidade escolar tudo o que a sociedade e o estado não conseguem resolver. Precisamos distinguir o que é eixo, do que é transversal e do que é satélite. Para completar, temos ainda ruídos pedagógicos como o "politicamente correto", que ao camuflar o mal deixa de fazer um bem do ponto de vista educacional; a onda das "oficinas de reciclados", que no anseio de reprocessar e reutilizar o lixo troca muitas vezes a exceção pela regra e deixa de reforçar a denúncia contundente ao desperdício; as publicações de preços baixos, sem qualidade de texto e ilustrações ruins, que abarrotam as feiras de livros e as calçadas das escolas em nome do acesso à leitura, e temos o paradidatismo, essa praga de produção de livros, apostilas, CDs e DVDs, nos quais a racionalidade burra do adulto acaba sufocando a sabedoria da imaginação.

Os efeitos colaterais decorrentes dessas situações repercutem diretamente na saúde, na vida social e no meio ambiente. Na saúde, afeta o campo psicológico (depressão, intolerância...) e o campo físico (distúrbios nutricionais e metabólicos...). Estudos do IBGE (2008 - 2009) revelam que um terço das crianças brasileiras, entre 5 e 9 anos, está acima do peso, e que muitas delas são obesas famintas, com diabetes adquirida. Na vida social, é notório o aumento da busca de satisfação, por meio do consumo de drogas, e o crescimento da violência, em casa, nas escolas, nos shoppings e nas ruas. Na relação com a natureza, é visível o desrespeito, a destruição e a desarborização crescente das cidades, vide o exemplo triste do que vem acontecendo com Fortaleza. (Continua na próxima quinta-feira, 09/09/2010).



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