sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A reforma do pensamento - Diário do Nordeste - 14/10/2010


A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura (...) A autora sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um novo humanismo

No início do século XX, salvo as traduções e adaptações dos contos e aventuras de teor fantasioso, escritas para adultos, a literatura para crianças no Brasil tinha como função transmitir valores morais, cívicos e nacionalistas no ensino primário. Era coisa de sala de aula. O valor da imaginação criadora, indispensável para o desenvolvimento da personalidade integral, era muito pouco considerado. Adulto era para dizer o que a criança deveria aprender e à criança cabia o esforço de assimilar as instruções recebidas.

Estamos no início do século XXI e a literatura infantil brasileira passa por uma ameaça de regressão, com a proliferação do chamado livro paradidático, aquele que diz o que a criança deve entender, roubando a sua liberdade de interpretação, que é o grande diferencial da literatura. As bibliotecas estão cheias dessas publicações funcionais, com seus enredos sem alma, criados especificamente para subsidiar aspectos didático-pedagógicos.

A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura. Há cem anos ainda não tínhamos a compreensão que a psicologia e a neurociência nos deram quanto à importância da leitura como meio para a organização da percepção do mundo e preparação para interferir na realidade. Insistir nesse equívoco é decretar a morte da vontade de ler e admitir a indolência da pedagogia.

Diante desse impasse de caráter cultural e educacional, a educadora mineira Angelina M. F. Castro propõe que, à luz das teorias textuais contemporâneas e das tecnologias da inteligência, a busca por saídas comece nos recursos literários e pedagógicos do Sítio do Picapau Amarelo. Em seu livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, Belo Horizonte, 2010), ela mostra as razões que a levam a acreditar nessa força de inteligência coletiva e solidária. O Sítio, neste caso, está além dos paradidáticos porque é uma literatura que atua como mediadora do processo de aprendizagem, oferecendo à criança a oportunidade de pensar por si mesma.

A autora associa a transversalidade da obra infantil lobatiana à proposta da revolucionária Escola Nova, pensada por educadores como Anísio Teixeira, que provocou uma mudança radical na educação brasileira dos anos 1920. Naquele momento, no Sítio da Dona Benta, a criança passou a ter voz ativa. Antes, meninas e meninos eram educados para obedecer e se calar diante dos adultos. Com seu livro, Angelina instiga os educadores da atualidade a enfrentarem o desafio da produção de uma nova metodologia educacional que seja também uma nova reforma do pensamento.

Chamar Monteiro Lobato para pensar o futuro mais uma vez é, dentro da abordagem de Angelina Castro, acreditar em uma estética da flexibilização de fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento, ativando novos recursos cognitivos e promovendo a interação de linguagens, de modo a levar o leitor à descoberta do que lhe parece invisível. A leitura relacional, simultânea e não linear, semelhante ao movimento da mente humana, sempre presente nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é trabalhada pela autora como uma antecipação do que nas últimas décadas convencionou-se chamar de hipertexto.

Essa vinculação do alcance da obra literária infantil de Lobato às modernas teorias de rede e suas múltiplas possibilidades de leitura, pensamento e produção de saber remete ao entendimento de que as metodologias de leitura se tornem compatíveis com o avanço das ciências humanas, sociais e tecnológicas. A autora argumenta que o Sítio guarda segredos de comunicação que somente hoje, com o computador e todo o ambiente digital, podem ser identificados. Sem contar com sua inclinação para a moderna Teoria da Complexidade, cujos conceitos se contrapõem aos princípios da especialização do conhecimento.

Por isso, e implicitamente atendendo aos perfis da nova infância, ela sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um "novo humanismo", apto a substituir, na vida pessoal e social, os antivalores do egoísmo social, da competição desmedida, do consumismo, do materialismo e do domínio sobre o outro, pelos valores voltados para o encantamento da vida. Ela lança o desafio aos educadores que, por meio da imaginação, teimem em mudar esse mundo racional e despoetizado.

Angelina Castro realça o papel de Monteiro Lobato como criador das condições para que o leitor restabeleça o elo perdido com o seu eu recôndito. "Talvez seja este o papel da educação: descobrir e trazer à tona a pérola, o potencial que está escondido nos subterrâneos do nosso ser" (p. 24). É nesse terreno fértil que brota a ação literária infantil do autor do Sítio em favor de uma educação crítico-criativa da infância leitora. A atualidade de Lobato é surpreendente. Livros como "A Reforma da Natureza" impressionam pelo que possibilitam de nodos pedagógicos sem, no entanto, cair em paradidatismos.

O caminho para uma educação da sensibilidade passa por uma literatura que torne o leitor apto a dar sentido às próprias experiências. Em vez de dar lição de moral, Monteiro Lobato dava à boneca Emília a missão de tirar o melhor das fábulas, pelo exagero da caricatura, pela reação que a inconveniência produz. Se Américo Pisca-Pisca achava que a natureza só fazia tolices e agia como agem muitos cientistas hoje, que fazem modificações genéticas apenas em nome de resultados econômicos, Emília propõe o caricato em seu plano de reforma, tal como acabar com a situação de só as fêmeas botarem e chocarem ovos.

Ao tratar da conexão dos saberes, Angelina Castro aproxima Edgar Morin de Monteiro Lobato, pelo esforço de ambos, cada qual do seu jeito e no seu tempo, para a construção de uma epistemologia na qual se articulam as diversidades e as oposições, no que apresentam de complementaridade de inter-dependência. Para cada um dos sete saberes que a teoria de Morin propõe para a educação no futuro, a autora dá exemplos de como um a um foi levado a efeito na obra infantil de Lobato.

Se o pensador francês assegura que conhecer dados isolados é insuficiente, o escritor brasileiro coloca a Dona Benta para situar seus relatos no tempo, num lugar, ligando-se ao cotidiano e abrindo espaço para as crianças vivenciarem o conhecimento adquirido por meio de sua criatividade; se Morin postula o entendimento da condição humana, Lobato fustiga essa questão filosófica com literatura transbordante como "Os doze trabalhos de Hércules" e "O Minotauro"; se a teoria de um defende a consciência da identidade terrena através do ensino do respeito ao próximo, a literatura do outro leva a meninada à reflexão e ao pensamento crítico em trabalhos como "A chave do tamanho" e sua denúncia contra a violência da guerra.

Essa parte do livro é muito empolgante. Parece uma peleja entre duas cabeças privilegiadas que resolveram se encontrar em tempos e lugares diferentes. Morin versa sobre a intensificação da imprevisibilidade e os personagens de Lobato agem preparados para o incerto e para as consequências dos seus atos; o sociólogo fala de "ensinar a compreensão" e o escritor traz no Sítio o costume do "aprender juntos"; a teoria de Edgar Morin prima pelo ensino da antropoética e as histórias infantis de Monteiro Lobato refletem em suas páginas a valorização da beleza e da poesia como atributos necessários a uma vida mais consciente, mais plena e prazerosa.




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