quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Continuidade e rupturas - Diário do Nordeste - 4/11/2010


O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas da moral religiosa, fragilizando o imaginário democrático (...) Abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação"

A eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República, no domingo passado (31/10), apresenta dois sentidos curiosos: o de continuidade, se observada como consagradora do plano de sucessão do presidente Lula; e o de ruptura, se considerado como referência o processo político brasileiro como um todo. Foi na conjunção desses aspectos que a população tomou a sábia decisão de oferecer maioria no Congresso Nacional à nova governante, mas forçando um segundo turno e mantendo o equilíbrio entre situação e oposição nos estados.

No Brasil a intuição popular parece mais bem preparada do que a razão da elite intelectual. Antes de ser um Estado-Nação, o Brasil é um estado de espírito. Daí, a vontade da população de participar da construção de uma democracia ainda empírica por que estranha às luzes das ciências sociais. Seja como for, a desconstrução da hierarquia das aspirações nacionais está confirmada nas urnas em uma repetida prática de liberdade de escolha que se consolida como despertar de inclinação transformadora.

Em mais de cinco séculos de representação política de orientação colonial, Luís Inácio Lula da Silva foi o primeiro presidente do País (2002 - 2010), com cabeça eminentemente brasileira, além de ser um trabalhador de chão de fábrica. Lula é um "Silva" legítimo. Fez o que fez para o Brasil deixar de se ver como uma nação de segunda e se afirmar no diálogo global pelo limite das possibilidades. O eleitor satisfeito disse sim ao projeto de Lula e assegurou o seu prosseguimento abrindo as portas do Palácio do Planalto para uma mulher, descendente de búlgaro (imigrante invulgar) e, como se não bastasse, ex-guerrilheira.

É natural que os representantes da tradicional política brasileira se coloquem contrários às novas forças que se estabelecem. No mundo da política é normal a quem está no poder rejeitar as crias que não são suas. O nível tenso do embate eleitoral revelou o quanto essa questão é complexa e cheia de sensibilidades. As cidadãs e os cidadãos tiveram inclusive que se submeter a circunstâncias estapafúrdias enquanto alvos da caça ao voto. O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas de moral religiosa, fragilizando e despolitizando o imaginário democrático.

No meio dessa inflexão ocorrida na estrutura do poder real no Brasil surge um personagem que rouba a cena da brasilidade, o "Silva Rousseff". Quem é ele? Qualquer um e todos os que não tendo sido jogador de futebol ou modelo nunca tiveram condições para explorar as suas potencialidades. Se antes ele fazia parte da massa invisível, agora é filho da dialética entre o que está sendo herdado de Lula e o que será a gestão de Dilma. Sua existência parte do pressuposto de que Lula elegeu Dilma, mas que Dilma será a presidente.

Antes de Dilma Rousseff somente uma mulher tinha assumido o posto máximo da administração pública do Brasil, a Princesa Isabel. Filha do imperador Pedro II, na última vez que interinamente ela subiu ao trono assinou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil em 1888. Na República, Dilma é o 40ª presidente, mas é a primeira mulher, depois de 33 presidentes homens. Qual o ato que assinará para marcar seu nome na história brasileira? É difícil imaginar. O bom sinal é saber que ela não representa um projeto pessoal. Tudo leva a crer que sua disposição é estar a serviço da melhoria das condições de vida dos brasileiros e da inserção positiva do Brasil na comunidade internacional.

O Brasil é um lugar historicamente cobiçado pelas grandes potências. Devassado por vários séculos, acumulou muitos gargalos estruturais. Em sua fala, logo após a apuração final das urnas, Dilma comprometeu-se a manter a estabilidade econômica, a aplicar a meritocracia no serviço público, a concluir o processo de erradicação da miséria iniciado por Lula, a garantir a liberdade de expressão, a lutar para que as forças conservadoras não tumultuem a vida democrática do país e a honrar as mulheres brasileiras. Não falou sobre o acordo que assumiu com Lula, mas disse que "conviver com ele me deu a exata dimensão do governante justo e do líder apaixonado"... E, numa revelação pouco comum do seu jeito racional, se emocionou para todo mundo ver.

Lula rompeu com a lógica de que o governante se resume a um executivo das políticas dos grandes centros econômicos. Conquistou a estabilidade no Brasil em uma combinação de atitudes ousadas no âmbito do mercado doméstico e na diversificação comercial nas relações exteriores. Foi hábil em não cair em aventuras militares financiadas por interesses extracontinentais. Conhece bem a piada que explica o fato de não haver golpe de estado nem guerra dentro dos Estados Unidos: "É por que lá não tem embaixada norte-americana". Também não deve ter recebido como novidade a declaração da chanceler Angela Merkel, decretando no mês passado que o multiculturalismo fracassou na Alemanha.

Além de dar continuidade à condução do Brasil entre essas e outras contradições do mundo globalizado, em tempo de rearranjos multipolares, a presidenta eleita Dilma Rousseff tem uma série de grandes temas e desafios que não se limitam a fazer apenas mais do mesmo em seu governo. São na verdade rupturas que ela precisará promover para não desmerecer sua biografia, nem trair a confiança que o povo brasileiro depositou na sua honestidade política e na sua determinada capacidade de realização.

Na condição de filha da classe média mineira e de militante política, Dilma Vana Rousseff, 63 anos, é uma legítima representante da nova elite que ascendeu ao poder, utilizando-se dos instrumentos tradicionais da democracia burguesa. Tem todas as características de quem saberá valorizar o papel modelo que a partir de primeiro de janeiro de 2011 passará a assumir no mais elevado posto do País. E a primeira das rupturas que precisará fazer é dar um basta na banda podre do PT, não cedendo espaço à ação marginal dos aloprados, muitos deles de triste notoriedade.

As rupturas com as políticas segregacionistas, responsáveis pela formação de guetos étnicos, etários, de gênero, de classes e religiosos, também precisam ser feitas para abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação" tão bem conhecido de petistas limpos como o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Isso significaria desestimular os movimentos que contrariam a cidadania republicana, quer pela desvalorização da lei, quer pela marginalização arbitrária das oportunidades de indivíduos e grupos.

No plano das rupturas econômicas, estão as ações predatórias físicas e virtuais que comprometem a integridade do mercado comum brasileiro, inclusive na extensão do seu idioma comum. Dilma poderá priorizar os investimentos em ciência e tecnologia voltados para os interesses nacionais e inibir a ciência de resultados, que se limitam aos interesses das grandes corporações que atuam no País, muitas vezes em detrimento da saúde pública.

A ruptura com os esquemas que tiram valor da biodiversidade natural e cultural brasileiras dará ao Brasil as condições para desenvolver uma criativa educação para a sustentabilidade, a necessária qualificação para o trabalho, inclusive com atenção especial ao trabalho de educador, e, consequentemente, a consciência de si, do que pode e como deve se comportar em um mundo em acelerada transformação. O certo é que temos muitas estradas a serem abertas, desde que persistamos em ter desejos e pensamentos próprios.


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