quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Reencontro com Anna Torres - 30/08/2012


Há pessoas que temos a alegria de conhecer e que, mesmo vivendo longe, não deixam de fazer parte da nossa vida. A cantora Anna Torres é uma dessas pessoas que eu conheci e que fiquei com a certeza de que havia conhecido alguém. Fizemos muitas coisas juntos, desde parcerias musicais até um disco peterpanamericano, intitulado "Terra do Nunca", com arranjos do Paulo Lepetit, o baixista da Isca de Polícia, a banda do lendário Itamar Assumpção.

Mas ela, como a tartaruga Manuelita, de Maria Elena Walsh, foi embora para Paris. Correspondência vai, correspondência vem, até que um dia deu certo o nosso reencontro. Depois de quinze anos, Anna está em Fortaleza novamente, cumprindo uma série de shows da sua turnê de lançamento do CD "Divas", no qual reverencia grandes cantoras do jazz e da música brasileira, gravado no "Petit Journal Montparnasse", um destacado clube de jazz parisiense.

Tenho acompanhado o trabalho da Anna Torres no seu esforço de construção de uma carreira internacional. Vez por outra ela me atualiza das apresentações que faz constantemente na França, mas também em países como o Marrocos, a Tunísia, nos Emirados Árabes, na Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Recordo de um dos e-mails que ela me enviou em 2009, quando estava grávida da Marianna: com figurino branco, descalça e umbigo de fora, ela estreava a filha no teatro da Universidade Sorbonne (Paris V), com participação especial de batuque e capoeira, num espetáculo que se chamou "noite branca com Anna Torres".

No primeiro momento do nosso reencontro em Fortaleza ela me mostrou com ternura as fotos da Marianna, com quase três aninhos, na casa da avó, com quem está passando as férias na Itália. Como boa nordestina, Anna deu à filha um nome composto pelo nome do pai, Mário, e pelo seu, Anna. Como bom "tio" posso dizer que tenho uma responsabilidade nisso também, pois antes de fazermos o disco "Terra do Nunca", a Anna assinava apenas "Ana", com uma só letra "ene". Foi na construção do projeto, no desenrolar das nossas conversas, que ela decidiu colocar dois "enes" entre os dois "as".

Anna Torres segue uma trajetória que se aproxima da que foi construída por sua conterrânea, a cantora e pianista Tânia Maria, diva do jazz internacional, que foi para Paris em 1974, depois morou mais de quinze anos nos Estados Unidos e, em 1996, voltou à capital francesa. Ambas cantam emocionadas, com todo o corpo, com a alma, com o dom do improviso, com instinto e técnica. Tânia Maria é inclusive uma das grandes intérpretes reverenciadas por Anna no CD "Divas", ao lado de Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Edith Piaf, Elis Regina, Sarah Vaughan e Janis Joplin.

Em junho passado ela me falou por telefone que faria Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, com o repertório do "Divas". Ficou aquela indagação no ar: "E por que não o Ceará?" Sei que Anna Torres é uma cantora eclética, capaz de brilhar com um baião ou um samba, mas fiquei curioso com o conceito desse novo disco, onde ela canta músicas como "Night and day" (Cole Porter), "Fever" (Otis Blackwell), "Upa Neguinho" (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri), "Bala com bala" (Aldir Blanc / João Bosco), "Yatra Ta" (Tânia Maria), Summertime (George Gershwin) e "Ilha dos Amores" (Anna Torres / Saul Gutman), uma espécie de soul-bumbá que ela compôs para a festa de 400 anos da cidade de São Luís do Maranhão, fundada pelos franceses em oito de setembro de 1612.

Provoquei o poeta Alan Mendonça e ele aceitou assumir a produção dos shows da Anna no Ceará, juntamente com Lilian Alves e Jô Sousa, da Radiadora Cultural. O chef Faustino, que há quinze anos apoiou a turnê "Terra do Nunca", recebeu a Anna com acolhimento de bom cearense em seu novo restaurante, da rua Bauxita, no Mucuripe. A realização ficou aos cuidados da Diz, empresa da musicista Izaíra Silvino.

Assim, e com o acompanhamento de músicos locais, a cantora maranhense abriu os dias de Ceará ontem (29/08), no bar Novos Poetas, e continua hoje e amanhã (30 e 31/08) no Sesc-Iracema. No sábado (01/09) sobe a serra e canta no restaurante Basílico, em Guaramiranga, e encerra sua circulação pelo território musical cearense, participando domingo (02/09) de um descontraído sarau com o coletivo "Bora! Ceará Autoral Criativo", no Passeio Público. Ela demorou a voltar, mas chegou com várias opções de datas para o público rever e reouvir seu canto poderoso e suingado.

Conheci a Anna Torres em 1995, em São Luís, por ocasião do Festival Canta Nordeste, que era realizado pela Rede Globo na região, quando o Ricardo Black ganhou o prêmio de melhor intérprete, com a música "Latitude", parceria minha com Tato Fischer. Fiquei impressionado com a biomusicalidade da Anna Torres, com voz potente e seu gosto pelo cantar. Consegui o contato dela com o amigo e compositor Josias Sobrinho, autor de "Engenho de Flores" e outros tantos sucessos da música maranhense. Daí, surgiu a ideia de fazermos um trabalho experimental (Terra do Nunca), no qual pudéssemos expressar o que havia de convergência estética urbana entre um compositor do sertão do Ceará, uma cantora da faixa amazônica do Maranhão e um músico do interior de São Paulo.

Foi uma farra de liberdade criativa e desobrigada, esse ensaio de Música Plural Brasileira. O disco, que teve produção executiva da cantora Mona Gadêlha e de Rosely Lordello, contou com a participação de figuras especialmente agregadoras em sensibilidade, emoção e qualidade artística, como o trombonista Bocato, o guitarrista Lanny Gordin, o percussionista Gigante Brazil, o pianista Daniel Szafran, o rapper Rica Cavemam, o físico indo-paquistanês Harbans lal Arora e a iogue indiana Ved Kumari Arora. No meio das feras ela mostrou que era uma delas e topou gravar a voz no nível da banda e não com a banda servindo à intérprete. O resultado foi uma boa surpresa para mim, pela garra e pelo potencial artístico da Anna.

Em vários momentos pude constatar que ela era cantora de estúdio e de palco, de técnica e de emoção. Por ocasião dos shows que fizemos, lançando o "Terra do Nunca", eu sempre ficava admirado com a desenvoltura dela. Foi assim nas ruas do bairro Aerolândia, no bar The Wall; no aconchego do Sindbar, do Sindicato dos Jornalistas; no salão animado do Domínio Público, na Praia de Iracema; no ruge-ruge do projeto "BEC Seis e Meia", no anexo do Theatro José de Alencar; e na quadra de esportes da "Broadway", na praia de Canoa Quebrada, show que contou com a participação da cantora paulistana Vange Milliet.

Não estou contando tudo isso por saudosismo, a minha intenção com esse rápido flashback é juntar as pontas de dois momentos unidos por quinze anos de duas passagens de uma artista pelo mesmo lugar e fazer a devida saudação ao que em Anna Torres me parece permanecer entre o experimentalismo pop do "Terra do Nunca" e a predominância jazzística do "Divas", que é o valor artístico e o espírito indomável dessa guerreira cafuza; a menininha Ana Maria Lopes Torres, que nasceu em Lago da Pedra, nos confins do Maranhão, que um dia sonhou ser cantora e fez por onde merecer o seu sonho.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Samba do Criolo safo - 23/08/2012

Foi mais de um ano de espera para ver uma apresentação do Criolo em Fortaleza, depois que passei a ouvir com frequência e admiração o seu disco "Nó na orelha" (Matilha, 2011). Fico imaginando o quanto não foi demorado para ele só poder se apresentar na terra dos seus pais, depois de mais de duas décadas de atuação como artista de rap. Fato injustificável à parte, quem foi assistir ao show "Na batida do Criolo", na sexta-feira passada (17), na Guarderia Brasil, Praia do Futuro, viu que a espera não foi em vão.

Criolo naturaliza o rap como fator cultural no Brasil, inserindo-o no campo da música plural brasileira pelo sentido de pertencimento, sem perder as características que o universalizaram como estética dos apartados, marcada por batidas de refrão e embolada-urbana, que desconsertam (com "s") e concertam (com "c") expectativas de ritmo e narrativa de uma sociedade positivamente mestiça e negativamente desigual. Criolo é fruto dessa trama da mistura na sua diversidade singular; é filho do Brasil real.

O CD "Nó na orelha" representa a materialização do processo de amadurecimento antropofágico do rap brasileiro; a música como plataforma ética e poética da adversidade, seus aspectos psicológicos e filosóficos, pela força do significado da palavra e não pela agressividade da entonação. Criolo conseguiu essa reversão sem somatizações ou atitudes antissociais. Em seu trabalho, a arte se pronuncia em um campo de significados de atitudes, a partir do seu núcleo crítico comunitário e da sua memória cultural. Ele foi a letra "C" do abecedário da música plural brasileira que publiquei neste Diário (8/3/2012), como síntese das trilhas sonoras do meu cotidiano.

A propósito, as músicas do filho do casal Cleon e Vilani têm sido intensamente escutadas na nossa casa também pelos nossos filhos. Tanto que, mesmo a apresentação tendo sido bem tarde da noite, fomos todos, levando máquina fotográfica e a capa do disco para ser autografada. Valeu a pena. No palco, vimos um artista sensível, com sua dança de corpo jogado em gestos firmes e amorosos; um jeito especial de interpretar o mundo e de se ver dentro dele. No camarim, vimos de perto a grandeza da sua humildade, ora com o espanto de um passarinho que percebe ser observado e, ora, abraçando os manos com a graça de quem está transmitindo a segurança de que essa pegada tem valor.
A denúncia na arte de Criolo veste-se da vontade de embelezar o mundo. Tem estética poderosa, narrativa sincera. Quando ele tem coragem de falar no palco que usar drogas é uma roubada está dizendo que não tem receio de patrulhamento. No bolero "Freguês da meia noite" conta a história de um usuário de drogas que espera "a confeiteira e seus doces" para comprar "furta-cor de prazer", mas depois de conseguir meditar decide que "Dessa vez não serei seu freguês". E no rap misto de maracatu, "Sucrilhos", passa nova mensagem: "Cocaína desgraça a vida de um bom rapaz". Ele sabe que é na favela que essa história repercute de forma mais trágica e sabe que nada pode ser mais careta hoje do que fazer parte dos financiadores da violência por meio do consumo de drogas.

Criolo outorga à juventude uma perspectiva mais digna e oferece seu som, sua voz, sua poesia em nome de um outro olhar, de outro estilo de vida menos consumista, menos mentiroso. Com isso, ele dá um chega para lá na desesperança e na fantasmagoria daqueles que insistem em perturbar a juventude, para se aproveitarem do seu coração utópico. Não tem essa de vida paralela para quem chegou ao mundo com tantas limitações sociais e econômicas. Como dizia o Henfil, ele tem mãe e quem tem mãe não tem medo. E tem pai, amigos, uma relação familiar e uma vida comunitária modesta, mas intensa.

Deixa claro na letra do afrobeat-funkeado, "Bogotá" que desde pequeno sabe o que é "brincar no precipício", que aprendeu que "quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto, fique atento, irmão". O grito de indignação de Criolo é macio, porque ele tem a compreensão de que "cada um sabe o preço do papel que tem", e profundo, para poder encarar as frustrações da insanidade do egoísmo social com poesia e bombardear a desigualdade com valores. Sabe da "força do verso" e da "rima que espanca", como rasga no rap "Mariô", parceria com Kiko Dinucci, letra que faz coro com a "Roda Viva" de Chico Buarque no esforço de ir contra a corrente.

Esse recurso de metacanção aparece bem utilizado também no rap "Sucrilhos", como uma caricatura vigorosa da canção "Índio", de Caetano Veloso: "Cartola virá que eu vi / tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali / cantar rap nunca foi pra homem fraco". Como o "abraço pra ti / pequenina" que Caetano dá em "Terra", aludindo ao baião "Paraíba", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Criolo canta o orgulho da cor, do cabelo, do nariz e a felicidade de ser "índio, caboclo, cafuso, crioulo", de ser brasileiro; o que Caetano vaticinara em seus versos: "Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante (...) em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro / em sombra, em luz, em som magnífico".
Criolo tem luz própria, mas nem por isso quer clarear sozinho. É um poeta, um MC, com ideais de juventude e uma narrativa voltada ao que chamo de "cidadania orgânica". Atento às motivações da espiritualidade - apresentou-se com vestes brancas de candomblé - e foi além dessas fronteiras, como no soul-canção "Não existe amor em SP", no qual afirma que "Não precisa morrer pra ver Deus / Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você". Criolo não é gueto, Criolo é Mandela, Gandhi..., alguém aberto às vozes que combatem desigualdades e injustiças. Sua poética vocal tem um "criolês" de pregação de paz, direitos iguais e orgulho dos ancestrais e pede para que ninguém baixe a guarda porque "a luta ainda não acabou", conforme convoca no reggae "Samba Sambei".

"Grajauex" é um rap de ilustração com imagens faladas do "x" da questão: "Duas laje é triplex / No morro os moleques (...) o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex / Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max / Os canela cinzenta que não tem nem cotonets (...) Os irmão que tão com fome desce três marmitex / Sabão de coco não é Pompom com Protex / E se jogo do bicho é contravenção, Mega Sena é ilusão pra colar com durex (...) Atrás de um verdix pra mandar por Sedex / Zona sul é o universo e os vagabundo é belezex"... Um dialeto de sons do inconsciente, como diria Nise da Silveira.

O trabalho do Criolo recicla, reutiliza e reprocessa aspectos culturais que, segundo Tom Zé, caíram do córtex (zona mais rica e sofisticada de processamento dos neurônios) para o hipotálamo; deslocamento que ele inventou de chamar de "lixo lógico" (Revista Bravo! nº 179, p. 24, São Paulo, junho 2012). Tom Zé explica que o "lixo lógico" é tudo aquilo que vai ficando de lado porque não parece inteligente de ser utilizado, como ideia de valor social e cultural. Esse conceito aplica-se bem ao trabalho de Criolo. Nele o rapper resgata e dinamiza o aprendizado das suas raízes da música plural brasileira e a herança nordestina, combinando tudo com o rap estadunidense, devolvendo o "lixo lógico" ao córtex, produzindo originalidade, gerando o novo.

Por não ser um instrumentista, ele compõe como Patativa do Assaré, João do Vale e Dona Ivone Lara compuseram, o que facilita para que sua música seja um ato de liberdade de um saber oral e de uma compreensão de mundo que ecoa compaixão, aflora identificações e suscita reflexões, contribuindo para alargar a percepção de quem o escuta. Nesse samba do Criolo safo, o "samba" é uma velha festa da cearensidade e o "safo" uma mistura de espírito descolado com talento recitativo de Safo, a emblemática poeta grega do século VII, abrigados na paródia de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), que ironizava a pressão em cima dos sambistas para fazerem enredos com fatos históricos.

http://www.flaviopaiva.com.br

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Na Dinamarca de Andersen e da Lego – 16/08/2012



Fui com a minha família à Dinamarca com a intenção de celebrar a infância dos nossos filhos, o Lucas com 13 anos e o Artur com 11. Queríamos vivenciar com eles um lugar com reconhecida experiência de civilidade e que essa experiência tivesse base no lúdico, como essência do humano. Assim, fizemos de carro alugado um corte horizontal de leste a oeste no mapa dinamarquês, cruzando cenários maravilhosos, numa viagem que durou do dia 30 de julho ao dia seis deste mês de agosto, nas três principais regiões do país: as ilhas de Sjaelland e Fyn e a península de Jutlândia.

Embora tenhamos feito paradas rápidas em lugares como Roskilde, para conhecer a cidade do rock, ver o museu de barcos vikings (Vikingskibhallen), com embarcações dos séculos X e XI, e visitar a catedral gótica de tijolinhos vermelhos, onde estão enterrados os reis e as rainhas da Dinamarca desde a Idade Média, nos concentramos na capital Copenhagen (Sjaelland), em Odense (Fyn), a cidade natal do escritor Hans Christian Andersen (1805 - 1875), e em Billund (Jutlândia), onde nasceu a indústria da Lego e onde está localizada a sua fábrica sede, o hotel e o parque Legoland.

Copenhagen é uma cidade na qual dá gosto pedalar. As ciclovias têm paralelepípedo duplo, com separação da calçada de pedestres e da via de automóveis. Circulamos de bicicleta por quase toda a cidade, desde a estátua da Pequena Sereia, em um canal de mar (Langelinje) até o bairro Nørrebro, onde fica o cemitério em que está sepultado o corpo de Andersen, passando por Nyhaun, antigo porto transformado em área de turismo, com restaurantes e saídas para passeios de barco, onde Andersen morou durante vários períodos de sua vida, inclusive quando se mudou para a capital com 14 anos.

É uma cidade muito bonita, agradável, movimentada, com uma arquitetura espetacular, na qual se destacam prédios como o "diamento negro" da Biblioteca Real (Kongelige Bibliotek) e a Casa da Ópera (Operaen). O respeito às áreas públicas é uma marca que se soma ao seu caráter de importante centro urbano, com pouco mais de meio milhão de habitantes (próximo de dois milhões na região metropolitana). Nela, é comum a presença de lojas da Lego e de espaços com a figura e a obra de Andersen. Bem em frente ao Tivoli, um dos parques temáticos mais antigos do mundo, há uma grande estátua do escritor. Encontramos crianças brincando com lego até na visita que fizemos à reserva Christiania, uma antiga área militar de 30 hectares, ocupada pelos hippies em 1971, que tem autonomia econômica, regras próprias.

Na estrada de Copenhagen para Odense passamos por duas pontes, uma delas (Storebæltsbroen) com 18 quilômetros de extensão, com torres de energia eólica construídas dentro do mar. Odense é a terceira maior cidade da Dinamarca. Seu nome é uma homenagem a Odin, um dos principais deuses da mitologia nórdica, o pai do poderoso Thor. O dia estava chuvoso e chegamos a cidade contemplados por um belo arco-íris, como se entrássemos no temperamento poético de um conto de Andersen. Adoramos a cidade, sobretudo a Casa de Andersen (H. C. Andersens Hus), o museu, o lago e a grama que a circunda, onde assistimos um teatro de histórias do célebre autor.

Andersen conseguiu com sua ampla e consistente obra entrar para a galeria dos escritores mais importantes de todos os tempos. Autor de 156 contos que se tornaram clássicos por encantar crianças e adultos e que foram traduzidos em 160 idiomas diferentes, dentre eles, A Pequena Sereia, O Soldadinho de Chumbo, O Patinho Feio, O Pequeno Polegar, O Rouxinol do Imperador. Vimos em sua casa-museu, que ele escreveu 14 novelas, uma 50 obras dramáticas, cerca de mil poemas, além de biografias (inclusive a autobiografia O conto da minha vida), artigos e pequenas peças humorísticas.

O museu de Andersen foi inaugurado em 1908, na casa em que o escritor nasceu. Em mais de um século passou por muitas ampliações e hoje é um lugar com espaço de referência cultural e turística da Dinamarca. Andersen viveu sua infância naquela casa em uma época em que o rei era a lei, quando a maioria dos dinamarqueses era pobre e analfabeta, numa Europa sofrida pelos efeitos das guerras. Ele enfrentou tudo isso produzindo uma literatura de desconstrução do materialismo, com humor poético e caricatural, em favor dos mais humildes, dos mais humilhados e mais injustiçados.

Como pessoa, pode-se dizer que ele foi o próprio patinho feio, aquele personagem que um dia descobriu ser um lindo cisne, depois de amargar o preconceito resultante da circunstância de ter sido chocado por uma pata. Andersen era grandão (tinha 1,85m), nariz enorme, olhos fundos e papudos, totalmente fora dos ideais de beleza tradicionais. Mas com o êxito internacional da sua obra, foi convidado para almoçar com o rei da Dinamarca, com a rainha da Inglaterra e a ser paparicado pela nobreza européia, passando a ser visto de perto, com seu verdadeiro rosto, cheio de vida, de olhar sem malícia, e com sua figura altiva e elegante.

De Odense, na ilha de Fyn, tocamos o carro para a península de Jutlândia, onde fica Billund, a cidade onde foi fundada e onde está a sede da Lego, a mais admirável indústria de brinquedos do mundo. A Lego é uma empresa símbolo do respeito à criança, da inovação e da capacidade de se reinventar. No jogo da competição tem feito alianças com outras organizações e marcas respeitáveis, como a Toyota (em atividades no parque), a Nitendo (no desenvolvimento de robôs) e com o diretor George Lucas, na transformação em brinquedo dos temas e personagens da série Star Wars.

Os brinquedos da Lego inspiram as crianças, tornando-se universais por falar a linguagem da infância, que é o brincar e a brincadeira. Mesmo utilizando antigos bloquinhos de construção não são brinquedos do passado; mas brinquedos para a criança que vem de longe em cada um de nós e que tem no passado um valor a agregar ao presente. Essa filosofia é visível também no arborizado parque Legoland, onde tudo é integrado e espaçoso, com o funcionamento das cidades em miniatura, das ofertas de diversão e suas montanhas-russas. No meio de tudo, uma estátua de Andersen com um livro e uma criança, em um banco de praça, onde sentamos para fazer fotos.

A hospedagem no hotel Legoland deixa a meninada enlouquecida. As instalações são temáticas e há uma ponte de acesso direto ao parque. O hotel é todo pensado para a infância, com áreas de jogos, panelões cheios de peças de lego para montagem a qualquer hora, zonas de videogames de lego e decoração com temas dos brinquedos. Tudo bem harmonizado com obras de arte. É impressionante o cuidado com os detalhes. No restaurante, os alimentos estão ao alcance das crianças em mesas baixinhas facilmente acessíveis.

Essa história toda começou em 1916, quando Ole Kirk Kristiansen, o fundador da Lego, comprou uma oficina de construção de casas e móveis de madeira e colocou na parede a seguinte frase: "Só o melhor é suficiente". Queria que os funcionários não esquecessem nunca a importância da qualidade no que faziam. E ainda hoje esta é a mensagem motivadora da Lego. Digo isso porque temos em casa vários brinquedos com muitas e variadas peças e nunca tivemos que reclamar porque faltou um só bloquinho para a montagem do que está prometido na embalagem.

A Lego é uma empresa familiar que já está na terceira geração. Por conta da grande depressão européia no início do século passado, em 1932 o fundador decidiu deixar de fazer casas e móveis e passou a orientar a carpintaria para a produção de brinquedos de madeira: ioiô, carrinhos, tratores, trens, aves e animais, blocos de madeira com números e letras e, inclusive, um boneco de madeira de H. C. Andersen, montado em um animal com rodinhas. Dois anos depois criou a marca Lego, a partir da expressão "LEg GOdt", que significa "brinque bem".

A segunda geração assumiu em 1954, quando a fábrica já produzia os bloquinhos de encaixe com injeção de plástico. O filho de Ole, Godtfred, organizou a filosofia da empresa em dez princípios, algo como: 1) brincar com ilimitadas possibilidades; 2) para meninas e meninos; 3) entusiasmar todas as idades; 4) para brincar o ano todo; 5) saudável e sem fazer barulho; 6) brincadeira que não se esgota; 7) imaginação, criatividade e desenvolvimento; 8) cada novo produto deve multiplicar o valor da brincadeira; 9) brinquedos contextualizados; 10) segurança e qualidade. A partir de 1979, Kjeld, neto do fundador, assume a presidência e a Lego passa a desenvolver brinquedos com linhas para faixas etárias específicas.

http://www.flaviopaiva.com.br

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Estocolmo é tudo de bom!


Estocolmo tem oito séculos e é uma cidade que surpreende por estar à frente do nosso tempo. É uma cidade com admirável cultura urbana, na relação com o verde, no sistema integrado de transporte público e serviços de barco, no design, no lazer e até no tratamento novo que dá à sua Cidade Velha (Gamla Stan). As 14 ilhas interligadas por pontes, que formam o seu território, tornaram-se tão orgânicas ao longo do tempo que a cidade parece flutuar como se fosse formada por uma rede de folhas de plantas aquáticas.

A leste, espalha-se entre as águas do mar Báltico e, a oeste, distribui-se harmoniosamente pelas águas do lago Mälaren. Percebi bem essa relação estruturada com a água, na quinta-feira passada (26) ao fazer um passeio de barco, cruzando as pontes por baixo e passando por uma eclusa, construída para facilitar o tráfego de barcos no desnível entre as águas do mar e do lago. Mesmo já tendo circulado separadamente pelas ilhas, de dentro dos canais deu para apreciar melhor a beleza do conjunto ajardinado, com arquitetura diversificada e encantadora, as altas torres das igrejas e os balões coloridos no céu.

Durante a semana fui acumulando uma série de experiências, próprias de quem está em um lugar diferenciado em muitos e muitos aspectos. Muita água, muito verde, canais e parques, pontes e praças.

Nas ruas, a servidora pública sai do carro para aguar e cuidar das flores; de outro carro de apoio, um rapaz desce para fazer a reposição de bicicletas de aluguel; nas paradas dos trens, funcionárias uniformizadas ajudam pessoas com dificuldade de locomoção. Isso, sem contar que os transportes coletivos têm batente de acesso no mesmo nível da calçada.

Embora com placas e letreiros somente em sueco (o que vejo com bons olhos), Estocolmo é tão bem sinalizada que dá para circular sem problemas pela cidade.

Estávamos em um grupo de seis: além de mim, da Andréa e dos nossos filhos, Lucas e Artur, viajamos também com o meu sobrinho Pedro, que mora na Alemanha, e a sua namorada Vanessa, com quem vive em Colônia (Köln). Ao chegarmos no aeroporto Arlanda, adquirimos um passe para usar o sistema de transporte coletivo e somos todos testemunhas da sua eficácia. Assim, pudemos ir e vir livre e agilmente pelas ilhas da cidade. Sem contar que andamos muito à pé. É incrível caminhar pelas ruas de Estocolmo; cada quadra que se descortina tem uma composição visual diferente; cada qual a mais bela.

E o impressionante em tudo isso é que, mesmo com tanta diversidade, o lugar mantém uma formidável unidade urbanística. Há em Estocolmo uma invejável cultura de respeito ao que é comum; os transportes coletivos respeitam os automóveis, que respeitam as bicicletas, que respeitam o pedestre... e todos respeitam as normas de trânsito.

O respeito à criança também chama a atenção. Em toda a cidade há lugar para a cultura da infância, para o brincar e para a brincadeira. Alguns são prioritariamente dedicados a isso, como é o caso do Junibacken, um ambiente lúdico e literário, que tem como tema central a obra da escritora sueca Astrid Lindgren (1907 - 2002). As crianças usufruem integralmente desse espaço, entrando literalmente em uma história e saindo em outra. A viagem no trem dos contos de Lindgren é fantástica, com sua caracterização de relatos em narrativa lenta, subindo e descendo suavemente, num encontro com personagens e cenários da imaginação.

O Junibacken fica na ilha Djugarden, que é uma agradável e diversificada zona de lazer. O sentido pleno de parque aplica-se muito bem a esse lugar onde a memória e a história misturam-se ao verde na preservação da convivência comunitária sadia. Logo que descemos do trem deparamo-nos com um dos monumentos da cidade, que é o prédio do Museu da Cultura Nórdica (Nordiska Museet). São vários andares de encontro magistral com a forma de viver das tribos, sua indumentária, seu canto, enfim, com a cultura popular nórdica. Tudo com o apoio de um sistema de guia eletrônico, conduzido e controlado pelo visitante.

Não é minha intenção sair aqui descrevendo museus dessa ilha, mas não posso deixar de mencionar o Museu Vasa (Vasamuseet), pelo que ele significa para a compreensão da própria Suécia. É o museu de um barco de guerra, com 68 metros e 32 canhões de cada lado, que afundou em 1628, na ocasião da sua viagem inaugural, devido a seu peso excessivo e à sua altura desproporcional. Resgatado mais de trezentos anos depois, esse barco deixa qualquer um perplexo por ser uma joia gigante de madeira, um tesouro artístico e bélico, construído com a finalidade de ostentar o poder do rei Gustav Vasa, fundador das bases do estado nacional sueco.

A demonstração desse poder estava na força dos canhões e na qualidade artística das esculturas que adornam a embarcação, em pinturas que vão do dourado ao vermelho, passando pelo verde, amarelo, azul e violeta. O barco, que vimos em cada parte dos seus mais de cinquenta metros de altura, foi apresentado como uma máquina de guerra e uma obra de arte. Vasa iniciou seu reinado em 1523 e ao morrer, em 1560, deixou uma dinastia que durou mais de um século no poder. É uma figura emblemática, cuja síntese pode ser simbolizada nessa relíquia que leva o seu nome e que se encontra exposta desde 1990.

Das sabedorias do povo sueco, uma que também encontramos em Estocolmo está organizada no Skansen, o museu ao ar livre mais antigo do mundo (1891), com 300 hectares de área urbana. Com o início da era industrial os suecos tiveram a feliz ideia de documentar a vida da sociedade camponesa; casas, granjas, oficinas, igrejas, mercados e moinhos de vento, incluindo zoológico com animais nórdicos (ursos, alces, renas, focas etc). São mais de 150 edificações transplantadas ou construídas, que funcionam normalmente nesse espaço com "moradores" que se vestem e atuam como um testemunho vivo do seu passado.

No dia que fomos à ilha Skeppsholmen, concentramos nossa experienciação na caminhada pelo parque e na visita a dois museus. No Museu da Arquitetura (Arkitekturmuseet) vimos maquetes de diversas épocas e lugares do mundo e alguns comparativos em recortes específicos de tempo, como é o caso da arquitetura no Peru e no Cambodja, no início do segundo milênio. No Museu de Arte Moderna (Moderna Museet) curtimos salas e salas de obras instigantes, sobretudo aquelas relacionadas aos artistas participantes da mostra intitulada "Explosão", onde a pintura é tratada como ação, e a instalação "Grapefruits", de Yoko Ono, inspirada no seu livro homônimo, de desenhos e instruções para a vida e para a arte.

Estávamos cruzando a praça Real e nos deparamos com um show realizado por um movimento musical chamado "Lilith*Eve", que reúne mais de quinze compositoras e cantoras da Suécia. Pegada boa a dessa gente, inspirada na relação de Lilith e Eva com Adão, e movida a rock tradicional sueco, baladas dramáticas, pop existencial, jazz, blues, sons bem-humorados e reflexivos, poesia, música performática e canções de metrô.

O que me intriga nessa riqueza cultural e ambiental de Estocolmo é a sensação de que a cidade chegou ao futuro, com aproximadamente um milhão de habitantes, ótima gastronomia de frutos do mar, uma beleza arquitetônica impressionante e uma vida social marcada pela qualidade dos serviços públicos, em um país com território ocupado por florestas e lagos. E pensar que há menos de dois séculos a Suécia era um dos lugares considerados mais pobres da Europa. Parece que deu certo. É possível. Estocolmo é tudo de bom.