Augusto Rocha optou pelo recorte do fascínio que pode haver no cotidiano de uma longa viagem (...) Em "Eu vou no bombo", o autor faz-se também personagem, ao traçar engraçadas caricaturas de si mesmo.
A publicação de relatos de viagens vem ganhando expressão nas prateleiras das livrarias. Encontra-se de tudo: jornadas familiares a lugares inóspitos, narrativas solitárias por regiões inexploradas, momentos de inusitadas descobertas culturais, registros de passeios encantadores e aventuras ecoturísticas. Enfim, experiências de deslocamentos a pé, em veleiros, carros, bicicletas, motos e aviões, por motivos profissionais, diletantes, recreativos e de superação de limites pessoais.
O livro "Eu vou no bombo - apontamentos de um motonauta", de Augusto Rocha (Relevo, 2010), lançado no último dia 26 de dezembro, por ocasião das comemorações dos 293 anos de emancipação do município piauiense de Oeiras, traz uma divertida aventura focada no enredo de um oieirense radicado em Fortaleza, que resolveu com espírito prático e positivo ir de moto a Ushuaia, no extremo sul da América do Sul, em um trajeto de cerca de 22 mil quilômetros, ida e volta.
Em tom pessoal, o autor descreve toda a preparação para a viagem e tudo o que surgiu de bom e ruim pelo caminho. Ser e indivíduo comungam de um mesmo fim, que é fazer a aventura em si. Essa é uma distinção do livro de Augusto Rocha, que poupa o leitor de proselitismos espirituais, com pensamentos, ensinamentos e lições, embora sua precisão narrativa dê muitas vezes a sensação de que faltam mais enxertos de referências culturais.
Augusto Rocha optou pelo recorte do fascínio que pode haver no cotidiano de uma longa viagem. Evitou degringolar para o mito da solidão, ao sair logo de partida acompanhado, ou melhor, acompanhando o amigo Everardo Luz, o Verô, que já havia trilhado o mesmo percurso.
É interessante observar como Verô não interfere na viagem interna do autor. Ele aparece nas crônicas como um personagem elevado ao plano da admiração, que está sempre rodando à frente, observado em sua trajetória e comportamento quase sempre irreparáveis.
"Meu comparte é um verdadeiro motociclista na acepção plena da palavra. Disciplinado, tenaz, é capaz de pilotar horas a fio, sem demonstrar cansaço ou impaciência (...) Reparo o cuidado que tem a cada abastecimento (...) jamais negligencia a lubrificação da corrente (...) verifica o estado do óleo do motor" (p. 139). Além dessa figura de guia exemplar, ele entra no relato em casos especiais, como nos instantes de recordação da viagem que fez anteriormente com outro motociclista, chamado Domingos Damasceno.
Domingos é o presidente honorário do moto clube "Companheiros do Asfalto", que havia feito essa viagem a Ushuaia com Verô. Na história contada por Augusto Rocha ele aparece como um terceiro companheiro da viagem, como o amigo que foi, mesmo tendo ficado.
Várias paradas e fotos são feitas durante a viagem com o intuito claro de levar a imagem para o Domingos conferir, na volta a Oeiras. Ao avistar a placa anunciando a chegada a Ushuaia, o autor sentencia a si mesmo:"Se eu não tirar um foto aqui, o Domingos não me perdoa" (p. 164). Esse misto de satisfação e cobrança aparece pontualmente ao longo do texto.
As fotos, os lugares, não parecem tão importantes para Augusto Rocha quanto as mudanças no tempo, os problemas mecânicos, os acidentes na estrada, a tensão do abastecimento em estradas de poucos postos, os riscos das lombadas sem sinalização, o gelo fino escorregadio, a pavimentação marcada por pedras miúdas, as dúvidas, os medos e os fortes e constantes ventos patagônicos.
Dentre as poucas exceções, está a foto da Mão do Deserto, em Antofagasta. "A visão insólita, uma mão enorme de concreto, espalmada, surgindo de dentro da areia do deserto. Está sozinha, no meio do mundo, longe de tudo e perto de lugar algum" (p. 101).
A imagem emblemática está entre os seus troféus de viagem, como o relato do dia em que ele perdeu a chave da moto nas areias do deserto de Atacama e uma mulher a encontrou. É que o metabolismo aventureiro de Augusto Rocha é cheio de ponderações bem particulares.
"Não posso, nem tampouco pretendo, vencer meus medos. Se assim o fizesse poderia pôr em risco minha sobrevivência, mas é possível conviver com eles sem me deixar subjugar" (p. 107), escreve após lembrar-se da frase gravada no Brasão das Armas do Estado do Piauí ("O corajoso não teme as desgraças"), como ato heroico nos momentos difíceis.
Em "Eu vou no bombo", o autor faz-se também personagem, ao traçar engraçadas caricaturas de si mesmo. Embora filho de Oeiras, a capital cultural do Piauí, Augusto Rocha sente-se adotado por Fortaleza, onde fez Economia na UFC, trabalha como Auditor Fiscal, mora com a família e é confundido com cearense por ter, digamos, uma cabeça avantajada: "Acho que reconheceu meu sotaque ou reparou no tamanho da minha cabeça" (p. 71), denota ao ser abordado por uma garçonete no interior de São Paulo. "Minha cabeça enorme tornou a criar problemas, nenhum capacete era suficientemente grande para mim" (p. 119), relata em sua frustrada escalada ao vulcão Villa Rica.
Pelo que dá a entender, não há modelagem conceitual do autor nessa questão. Ele é assim mesmo. Que o diga o bom humor com que conta da dificuldade de argentinos e chilenos de entenderem o seu sofrido portunhol: "Buenas noches! Ustedes sabe adonde posso encontrar um hotel?" (p. 81).
Tiradas como essa aparecem naturalmente ao longo das páginas de "Eu vou no bombo". Em um determinado momento ele compara o cheiro nada agradável do seu corpo, ao tirar a jaqueta depois de um longo trecho sem tomar banho, com o fedor de quem tira o gesso depois de alguns dias imobilizado.
Há sempre uma associação lúdica no "pensamento alto" de Augusto Rocha. Quando ele jogar bola de neve em personagens imaginários, afirma que está "lembrando as guerras de neve que conhecia dos desenhos animados" (p. 119). Ao se deparar com situações de mochileiros, recorda do tempo em que, estudante, tentou se aventurar de mochila nas costas e "terminou em grande fiasco minha aventura como carona" (p. 100). Diante da demora em atravessar um longo túnel, faz o cruzamento de sensações claustrofóbicas. "Comecei a ficar agoniado. Certa vez fiz uma ressonância magnética (...) não resisti e enfiei com ânsia o dedo no biloto do bastão" (p. 110 e 111).
A narrativa de "Eu vou no bombo" tem essa característica de recriação, o que provavelmente reforçou o desejo do autor de compartilhar sua aventura. Tanto que depois de chegar a Ushuaia, tratou logo de pedir ao Verô que traçasse o caminho mais curto para chegar o mais rápido possível ao Brasil: "Nada de fotos, nada de parar" (p. 177).
Ao retornar, porém, notou que todo mundo queria saber como tinha sido a viagem ao "Fin del Mundo", mas no fundo ninguém parava para ouvir. A saída foi fazer um livro como uma forma de contar sem ser interrompido, sobretudo por aqueles que sempre procuravam narrar uma história parecida de alguma aventura realizada antes da dele.
O título do livro de Augusto Rocha é bem oreiense. Ele conta que certa vez o velho Tomáz, tocador de bumbo na banda da cidade, brincou com Péricles Portela, que era conhecido por carregar a cruz nos enterros. Tomáz teria brincado com Péricles, dizendo que quando este morresse, ele cuidaria de levar a sua cruz. No que Péricles respondeu de pronto: "Pois eu vou no bombo!".
O autor explica que a expressão passou a significar popularmente "a vontade intempestiva de fazer algo". Explica também que no finalzinho da viagem, após receber uma resposta afirmativa à pergunta se o amigo Verô voltaria a Ushuaia, replicou com convicção: "Pois eu vou no bombo!".
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