O que faz uma
pessoa ser única é o fato de ela ser formada por si e por muitas partes de
outros. Assim é com todo mundo, embora isso não seja fácil de aceitar, em
decorrência do receio que temos de ser tragados pelas nossas diferenças
sociais, culturais, físicas e intelectuais. Mas, querendo ou não, só existe o
"eu" porque existe o "outro" e as relações sociais. Quanto
mais nos relacionamos, quanto mais compreendemos que o contato estabelecido entre
pessoas faz parte da constituição do si, mais nos integramos plenamente ao
contexto das transformações sociais.
A busca desse
"outro" e do seu lugar na constituição do si acaba de ganhar dois
caminhos de reflexões e análises, com o livro "Alteridade - o outro como
problema" (Ludice, 2011), organizado pelas psicólogas Fátima Vasconcelos e
Érica Atem e lançado na quinta-feira passada (3/5) no auditório da livraria
Cultura em Fortaleza. Nessa perspectiva, o caminho do lúdico e o caminho da
autobiografia são trilhados por mais de 20 autores e pesquisadores do programa
de pós-graduação em Educação Brasileira (UFC) e de outras universidades
brasileiras.
A reconstrução
de experiências vividas, como forma de colocar na roda os diversos
"outros" da nossa singularidade está na essência do primeiro e do
quarto capítulo e é oferecida pelas organizadoras como linha mestra do
trabalho. Ao tratar do fato de sermos como somos por resultarmos da interação
com outros indivíduos, grupos, comunidades e civilizações, a linguista Maria
Conceição Passeggi sintetiza a importância das narrativas (auto)biográficas nos
esforços de problematização da alteridade. Afirma que "se formar" é
levar a sério a reversibilidade do trabalho de reflexão sobre si mesmo,
realizado durante o processo de "biografização" (p. 35).
Identifiquei-me
imediatamente com essa abordagem, provavelmente porque o recurso da narrativa
(auto)biográfica está presente em todo o meu trabalho, sobretudo na construção
literária e musical para crianças. Mas o segundo e o terceiro capítulos me
atraíram repentinamente por recorrerem às práticas do brincar na busca do
entendimento das diferentes manifestações do ser-o-outro, como substância
elementar do "eu", e da crítica aos exageros da racionalidade
científica que, ao produzirem o discurso competente e incensarem os donos da
voz, acabam perdendo a experiência do contato e a sensibilidade distintiva
entre o que está no cognitivo e o que está na afetividade e nas emoções.
A ação
comunicativa na cultura da infância ocorre na liberdade que a criança tem da
aprendizagem imitativa e de evocar suposições para com elas assimilar o mundo e
a vida social. Como isso se dá nas circunstâncias de simulação em que o outro é
digital e o seu lugar de "circulação" é virtual, é o curioso e oportuno
tema abordado pelas psicólogas Márcia Duarte Medeiros e Fátima Vasconcelos.
Elas procuram depreender "como a subjetividade se organiza neste enquadre
relacional" (p. 91) de experienciação mediada pela tecnologia digital,
onde a identidade virtual (avatar) funciona como um segundo "eu" na
instabilidade do "outro" e da própria comunidade de pertencimento.
Na interface
digital das telas as autoras observam o quanto multiplicamos a nossa
heterogeneidade mutante, por meio de possibilidades oferecidas pelos programas
e aplicativos. Questionam se o faz-de-conta nos ambientes eletrônicos seria uma
situação imaginária, ao abrigo dos efeitos da realidade, e se, nesses casos, a
criança estaria apenas submetida à lógica da programação, ao contrário da sua
condição quando em estado de jogo simbólico. Particularmente, penso que a
criança sabe que é jogo e, preservada de exposições maiores do que as normais,
também sabe que jogar é diferente de brincar. Nessa pegada, o livro vai
refletindo e fazendo refletir, ora como "eu" e ora como
"outro".
A afirmação dos ambientes de virtualidade como contextos socioculturais, "descartada a ideia de considerar os mundos virtuais como não-lugares" (p. 100), é uma solução metodológica de grande valor "netnográfico". Deste modo, ficou bem mais natural a realização da pesquisa de campo com indivíduos e grupos que frequentam ambientes virtuais. O que não bateu bem com a minha percepção - e aqui mais uma vez o livro exerce o papel dialógico do "eu" e do "outro" - foi a definição da internet como um lócus. A internet é um sistema de comunicação em rede e não um lugar. Afinal, os círculos de convivência acontecem em espaços como as salas de bate-papo, nas praças de encontros disponibilizadas pelas empresas de serviços de relacionamentos e nas estações de jogos.
A afirmação dos ambientes de virtualidade como contextos socioculturais, "descartada a ideia de considerar os mundos virtuais como não-lugares" (p. 100), é uma solução metodológica de grande valor "netnográfico". Deste modo, ficou bem mais natural a realização da pesquisa de campo com indivíduos e grupos que frequentam ambientes virtuais. O que não bateu bem com a minha percepção - e aqui mais uma vez o livro exerce o papel dialógico do "eu" e do "outro" - foi a definição da internet como um lócus. A internet é um sistema de comunicação em rede e não um lugar. Afinal, os círculos de convivência acontecem em espaços como as salas de bate-papo, nas praças de encontros disponibilizadas pelas empresas de serviços de relacionamentos e nas estações de jogos.
Em
"Alteridade - o outro como problema", encontramos recortes de
pesquisas que entrelaçam o lúdico e o (auto)biográfico na produção de insights
de interpretação da condição humana. Como para mim a alteridade, mais do que
uma qualidade relacional de produção do si, é um ato virtuoso a ser perseguido
na busca de alternativas sociais e ambientais para a pós-hipermodernidade,
inclusive na aproximação da cultura com as mensagens da natureza (A consciência
ecoplanetária, DN, 26/05/2011), livros como este do Ludice (Ludicidade,
Discurso e Identidades nas Práticas Educativas), são fundamentais pelo que têm
de perscrutador e de abertura para o debate.
Toda verdade é
provisória e o bom da ciência é saber dessa verdade. Assim, Érica Atem pôde
ficar livre para investigar aspectos da "aliança científica" pela
"nova infância", organizadas no plano discursivo do enunciado
"Dar voz a criança", flagrado por vezes em recrudescimentos
adultocêntricos. A "criança cidadã", a "criança
protagonista", a "criança testemunha" e "a criança ator
social" (p. 181) são algumas das expressões decorrentes da pidginização do
pensamento especializado sobre a infância. A autora questiona os diagnósticos e
as prescrições que consideram apenas os efeitos produzidos por essa unanimidade:
"a criação de políticas para dar voz à criança" (p. 182), e a moral
racional de uma epistemologia pouco afeita à valorização do desejo, da empatia,
da afetividade e dos sentimentos (p. 191).
Os riscos da
guetificação do mundo da criança, sob apelos como "crianças por elas
mesmas" e "propiciar que as crianças falem por si", postos por
Érica Atem, abrem uma janela no ponto de alteridade em que, na sua investigação
sobre memórias de brincadeiras, realizada na praia de Guriú, a pedagoga Maria
da Glória Feitosa Freitas, constata que "as escutas das lembranças dos
idosos e dos adultos informaram sobre um papel essencial do adulto nas práticas
lúdicas infantis" (p. 79). Para enxergar outras possibilidades nesses
discursos intercorrentes e multirreferenciais Érica propõe o deslocamento do
enunciado "dar voz a criança" da sua posição de "resposta"
para a de "problema" (p. 194).
A questão da
cultura lúdica na educação, abordada pelo psicopedagogo Genivaldo Macário de
Castro, chama a brincadeira como modalidade discursiva na práxis da docência,
pela (auto)biografia dos próprios educadores, suas "experiências
fundadoras e experiências formadoras" (p. 226). Essa conversa logo chega
aos linguistas Benedito Alves e João Batista Gonçalves, que analisam as
aplicações do termo "lúdico" nos documentos oficiais e seus
significados voltados à estética, diversão, lazer e ferramenta
didático-pedagógica (p. 118). E a socióloga Celeste Cordeiro critica "o
abandono de outras dimensões humanas ligadas ao espírito da ludicidade"
(p.74), reforçando que o tema é bom e urgente.
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