quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Itamar, hein?, é outra coisa - Diário do Nordeste - 9/12/2010


Foram de apenas cinco artistas da música, produtores de obras extensas, consistentes e de qualidade, que eu colecionei quase a totalidade dos discos nos meus anos de estudante, quando defini minhas preferências musicais:Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, Elomar Figueira de Melo, Mercedes Sosa e Itamar Assumpção. Segui e sigo adquirindo novos gostos em música, mas toda vez que escuto o som dessa gente tendo a me emocionar de forma especial.

Eu nunca havia pensado sobre isso, até o domingo passado (5), quando assisti ao show da banda Isca de Polícia, no auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. As cantoras Vange Milliet e Suzana Salles, os guitarras Luiz Chagas e Jean Trad, o batera Marco da Costa e o baixo Paulo Lepetit, também responsável pela direção artística e musical do espetáculo, apresentaram naquele dia alguns dos primeiros sucessos e uma dezena de composições inéditas deixadas pelo saudoso Itamar Assumpção.

Fiquei emocionado como se naquele momento abrisse com atenção e zelo um álbum no qual eu tivesse guardado decisivas recordações. O show da Isca me fez lembrar dos discos do Nego Dito, Beleléu, de como eu os conseguia, ora na Baratos Afins, em São Paulo, ora na Francinet Discos, em Fortaleza e uma vez, no Theatro José de Alencar, por ocasião de um Projeto Pixinguinha, com autógrafo do Itamar dizendo: “além de som, gosto também de orquídeas”.

Desde outubro passado, quando se iniciaram os shows de lançamento da “Caixa Preta” (Selo Sesc), estojo que traz dez discos remasterizados e dois com inéditas de Itamar Assumpção, produzidos por Beto Villares e Paulo Lepetit, que eu esperava por uma oportunidade para encaixar algum deles na minha agenda. Teve show com Naná Vasconcelos, Arnaldo Antunes, Elza Soares, Arrigo Barnabé, Denise Assunção, Alzira e Tetê Espíndola, Macalé, Zezé Motta, Zélia Duncan, Lenine, BNegão, Chico César, Kiko Dinucci, Karina Buhr, Anelis e Serena (filhas do Itamar).

Todos certamente muito bacanas, mas digo que dei sorte porque vi exatamente o que eu não gostaria de perder: o show da Isca de Polícia. Da plateia pude ler e reler as novas leituras e releituras que Vange Milliet e Suzana Salles fizeram dessa interseção entre o meu desejo de fã e um som que espontaneamente adquiri, ouvi, acompanhei e organizei como parte da minha experiência envolvente com a música. Ouvir Itamar Assumpção não é apenas ouvir suas canções, não é simplesmente apreciar seu repertório, mas sentir seu som, sentir a performance vocal e gestual de quem o interpreta.

A banda, sob o comando do Paulinho, preserva o som cheio e entrecortado, característico do Itamar, com modulações tonais e poéticas e irreverentes transposições literomusicais na extraordinária experiência de pulsão e beleza da sua obra. No início, fiquei um pouco apreensivo, achando que sentiria falta do grave da voz do Itamar em equilíbrio com o agudo das Orquídeas, o áspero e o delicado, o preto e as brancas, o colorido tonal de suas vibrações. No entanto, logo percebi que a Vange e a Suzana conseguiram cantar as mesmas notas, com sofisticada distinção de timbres, fazendo o tempo passar mais rápido em nossos corações do que no relógio.

As primeiras composições gravadas por Itamar saltam da Isca como se fossem criadas hoje: “Olha aqui beleléu, tá limpo coisíssima nenhuma meu (...) que black navalha é você, beleléu? tá mais é parecendo chamariz de turista e isca de polícia” (Luzia); “Espero ver você curtindo o reggae desse rock comigo (...) grite forte, dê um jeito, cante, permaneça comigo” (Fico louco); “Baby nada existe resguardando nossa vida, duvido que me chamem para sentar naquela mesa (...) e a grande família já não é tão grande” (Baby); “Tudo que eu podia fazer eu já fiz, no entanto você nem se toca, ainda diz que a vida não é nada mais que um beijo na boca” (Beijo na boca); e “Meu nome é benedito joão dos santos silva beleléu, vulgo nego dito cascavé” (Nego Dito).

Das inéditas, a música “Persigo São Paulo” traduz o território do Nego Dito e sua desassossegada urbanidade: “São Paulo é uma outra coisa / não é amor exatamente / é identificação absoluta / Sou eu / Eu não me amo, mas me persigo / Eu persigo São Paulo”. No momento que o Brasil vive uma emersão de sua cultura periférica do rap e do funk, essas movimentações revolvedoras da obra de Itamar, que chegam com a “Caixa Preta”, incendeiam as expectativas de possibilidades de acesso para quem está disposto a curtir mais do melhor do Brasil.

Seria maravilhoso ver a obra de Itamar Assumpção descoberta pela parte da juventude que está cheia de vontade de criar e de agitar, mas quase sempre sem condições de acessar as mais bem elaboradas referências do seu tempo. Edgard Varèse (1883 – 1965), compositor franco-estadunidense, dizia contrariando o senso comum, que os artistas não estão à frente do seu tempo, os outros é que estão atrás deles. É por essa angulação que me animo a observar a discografia de Itamar, pois o momento está propício para a música popular urbana chegar realmente aos nossos dias.

O abandono a que foi relegada cultural e educacionalmente parte significativa da população brasileira, somado ao inchaço das metrópoles, fez florescer o rap e o funk como estética oficial da periferia, cujo som pulou o muro dos condomínios fechados; o primeiro como discurso antissistema e o segundo como válvula de escape. A liga entre a base e o topo da pirâmide social e econômica é o vazio do “eu” extremado, na busca da felicidade no consumismo, e a falsa ideia de liberdade, expressa em fobias, ressentimentos e impulsos de segregação.

A música de Itamar pode perfeitamente “chegar chegando” à crônica dos rappers e funkeiros porque é música irmã, é brother, embora bastante diferenciada por sua consistência estilística e destacada criatividade literária e musical. Como Marcel Proust (1871 – 1922), a Isca de Polícia corre na recuperação de um presente que se não for bem fisgado pode ficar injustificadamente preso ao passado. A entrada em cena dos conteúdos da “Caixa Preta” atualiza a interação da nova música urbana, colocando a arte como experiência de construção.

Os dez álbuns publicados com Itamar ainda em vida foram: “Beleléu, Leléu, Eu” (1980), “Às próprias custas S/A” (1982), “Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim” (1983), “Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!” (1988), “Bicho de Sete Cabeças”, volumes I, II e III (1993), “Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora” (1996), “PRETObrás I – Por que não pensei nisso antes” (1998) e “Naná Vasconcelos e Itamar Assumpção – Isso vai dar repercussão” (2004). Os dois CDs de inéditas (“PRETObrás II – maldito, vírgula” e PRETObrás III – devia ser proibido”) foram feitos em 2010 com músicas que Itamar estava trabalhando antes de morrer prematuramente de câncer em 2003, aos 53 anos.

Se a “Caixa Preta” é uma relíquia, a banda Isca de Polícia também. O show que assisti no Auditório Ibirapuera não teve convidados. No palco, a formação da Isca foi a mesma do final dos anos 1980. Vange Milliet conta que quando o Itamar Assumpção conheceu o Paulo Lepetit, profetizou que eles tocariam juntos por toda a vida. Lá se foram 30 anos, o Itamar já partiu e o Paulinho continua tocando com ele. O converseiro no palco é assim, cheio de graciosidades e histórias para contar. Vange foi vocal das Orquídeas e da Isca, enquanto Suzana Salles antes de ser Isca foi Sabor de Veneno, com Arrigo Barnabé. Só pode mesmo é dar em coisa boa, hein, hein, hein???



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