quinta-feira, 20 de maio de 2010

Menos sanções e mais diálogo - Coluna – 20/05/2010 - Flávio Paiva


A intenção do Brasil é abrir uma passagem interdimensional entre a cultura da guerra e uma cultura de paz (...) O bloqueio político, o isolamento cultural e os embargos comerciais só instigam desavenças

O encontro do presidente Lula com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad e com o primeiro-ministro da Turquia, Tayyip Erdogan, no qual foi assinado o acordo de atuação do Irã na área nuclear, para fins pacíficos, é um marco da geopolítica contemporânea. Ocorrido no início da semana em Teerã, foi bom para arrefecer a possibilidade de um novo conflito armado no Oriente Médio. Foi bom também para dar um basta na pouca grandeza que ainda predomina nas mentes colonizadas das elites brasileiras. E foi bom, acima de tudo, para sinalizar ao mundo que a nova ordem em construção tem mais a ver com diálogo do que com boicotes.

A consideração de um segundo argumento quando o assunto é bomba atômica parecia improvável. Os países que fizeram o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), em 1968, deixaram apenas para quem já tinha armas nucleares o direito de continuar enriquecendo urânio ao ponto de poder produzir bomba. O pequeno grupo formado por Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China costuma falar em nome da comunidade internacional. Mas Coréia do Norte, Índia, Israel e Paquistão não são signatários do TNP, embora tenham também armas nucleares.

O Irã não tem bomba, mas tem urânio e assegura que pretende usar seu potencial para fins civis. O Conselho de Segurança das Nações Unidas não acredita e tem publicado várias resoluções na tentativa de impedir que o país persa evolua nessa tecnologia. Os iranianos recusam tais acusações. Em discurso proferido dia 3/5/2010 no plenário da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, o presidente Ahmadinejad retrucou, argumentando que os países que atemorizam os demais com ameaças de usar bomba atômica é que deveriam ser repreendidos.

A fala do presidente iraniano encontra eco no pensamento do presidente brasileiro, que vê pouca autoridade moral em quem têm bomba atômica e fica criticando os outros que supostamente querem ter. O Brasil está confortável para assumir esse tipo de posição porque, mesmo estando entre os países com condições de produção de combustível nuclear, tem se empenhado em defender o desarmamento atômico mundial. Para a diplomacia brasileira o mundo precisa de um Tratado Antinuclear, que elimine as armas, que desarme quem tem bomba atômica.

Os esforços brasileiros para um acordo com o Irã causaram todo surto de julgamento extravagante à política externa brasileira. Ao invés de torcermos pelo sucesso de uma missão tão complexa quanto necessária, parte significativa das elites brasileiras reduziu essa oportunidade histórica a alegações da existência de problemas de direitos humanos no país persa, numa demonstração de dificuldade de colocar as coisas em seu tempo e lugar, recaindo na velha ideia do maléfico, tão maquiavelicamente utilizada para justificar imposições sobre oponentes.

O que o Brasil está tentando fazer é abrir uma passagem interdimensional entre a cultura da guerra e uma cultura de paz. Esse processo exige habilidades incomuns para que as leis do preconceito e da supremacia sejam substituídas pela compreensão do outro, sem prejulgamentos e sem subestimação. O apoio para que o Irã seja readmitido na comunidade internacional é um exercício de convicção no diálogo e um ato de vontade de consciência planetária, que cabe a quem aprendeu a ter domínio sobre as adversidades, como o presidente Lula.

Vivemos um ciclo especial de evolução civilizatória. Não dá para deixar para depois. O ritmo das ameaças à Terra e à Humanidade está muito intenso. As sanções muitas vezes não passam de artifícios para justificar intervenções militares. O bloqueio político, o isolamento cultural e os embargos comerciais só servem para instigar desavenças. Não funcionou no passado nem funcionará no futuro. Trilhar novos rumos passa necessariamente pela coragem de assumirmos a interdependência e a complementaridade.

À medida que o mundo se mexe em busca de bases energéticas livres de emissões tóxicas, não tem sentido fecharmos o debate a respeito do enriquecimento de urânio. Sabe-se que a utilização de energia nuclear ainda é bastante questionada, sobretudo quanto ao destino do lixo radioativo. Mas a expectativa é que isso seja resolvido com novos projetos de reatores e novas técnicas de reciclagem. O papel fundamental dessa tecnologia, como oferta de energia limpa, em tempos de aceleradas mudanças climáticas, é que precisa estar na agenda internacional.

Ao defender o desarmamento e o melhor uso dos combustíveis nucleares, o Brasil não deve ter sua posição vista como uma provocação indevida à ordem internacional. Pelo contrário, por meio da desconstrução do conceito de civilizações superiores e inferiores, o Brasil quer influir para a construção de um consentimento mundial em favor da diversidade e da pluralidade. O desafio é evitar que as normas institucionais fetichizantes continuem servindo apenas para consagrar privilégios e legitimar manipulações em favor dos interesses lucrativos da guerra.

As reações dos brasileiros de modelo mental de colonizado demonstram claramente um atávico e lamentável complexo de inferioridade. O símbolo mais notório e intragável dessa mentalidade de subordinação é uma triste lembrança do ano de 2002, quando o então chanceler Celso Lafer, em missão oficial, se submeteu a tirar os sapatos para passar no controle de segurança dos aeroportos estadunidenses. Essa é a cena aceita pelos que acham que a diplomacia brasileira está sendo ingênua, que o País não tem estatura para se meter em questões milenares do Oriente Médio e que essa "política de arco-íris" está chegando ao fim.

Em entrevista ao jornal espanhol El País (9/5/2010), Lula se definiu como "multi-ideológico". Imediatamente irromperam diversas reações no Brasil submisso, tripudiando o neologismo criado pelo presidente da República, classificando-o de pretexto para levar a cabo acordos duvidosos. Entretanto, o chefe do Executivo brasileiro esclareceu que só quis informar o quanto procura se dar com todos os chefes de estado, independente de serem de esquerda ou de direita. No que ele tem toda razão, pois são os interesses do Brasil e do mundo que devem prevalecer nessas questões.

Ainda que o acordo venha a ser ignorado por uma arrogância qualquer, ele já cumpriu parte dos seus fundamentos, por ter levado os EUA à afirmação de que não arcariam com um novo blefe do tipo que tramou à Guerra do Iraque. O apoio brasileiro ao direito do Irã de não ser mais um mero alvo de campanhas militares das máquinas de guerra das megapotências bélicas, contribuiu também para o presidente Barack Obama declarar sua intenção de reduzir o arsenal atômico estadunidense e de parar com as intimidações de destruição aos países que querem fazer beneficiamento de urânio. A armadilha está desmascarada, se bem que continua o alarde de novas sanções.

O mundo que o Brasil defende passa por uma mudança profunda nos modos das relações internacionais, porque é um mundo de nações soberanas, com instituições multilaterais, flexíveis e plurais. Um mundo que possa compartilhar responsabilidades e benefícios, considerando as diferentes perspectivas e circunstâncias na construção do interesse comum. A cultura brasileira é uma cultura de alteridade plena e não do invariante egocentrismo primário que tem norteado as relações de intolerância no universo das potências bélicas. Menos sanções e mais diálogo é o que permite reformular essas relações e fazer com que uns povos cresçam com as diferenças dos outros em negociações de boa-fé.


Nenhum comentário:

Postar um comentário