quinta-feira, 26 de abril de 2012

McCartney na janela do tempo - 26.04.2012 – Diário do Nordeste


Fiquei com a impressão de ter visto o tempo pela janela dos olhos do público, enquanto assistia ao show de Paul McCartney, sábado passado (21) no estádio do Arruda, em Recife. Para todo lado que eu me virava, fãs e apreciadores do som e da trajetória do ex-Beatles atestavam um estado psicológico de atemporalidades: o garoto de vinte e poucos anos estaria vendo Paul com 70? E o senhor de 70, via em Paul um garoto de vinte e poucos anos?

A aproximação de gerações pela dilatação do tempo no ritmo da vida de uma obra que se fez clássica tem em si a velocidade da convergência do romancear histórias diferentes, embaladas pela força lírica de conhecidas melodias e inspiradas interpretações. Cada um sente e mede o que passa e o que passou, ouvindo ao vivo, cantando junto, vendo o autor em ação, a cantar e a tocar vários instrumentos, na experiência de sentir de perto suas canções em liga com a plateia.

Dos integrantes dos Beatles, sempre tive mais empatia pelo George Harrison - o mais quieto, a guitarra gentil, o "Concerto para Bangladesh" - embora Paul, Lennon e Ringo, cada qual a seu modo nunca tenham saído do meu radar. Mais recentemente eles voltaram a ter presença assídua lá em casa. Meus filhos gostam de tocar suas canções, como estudantes de violão. Para mim, a descoberta dos Beatles por eles é motivo de grande contentamento. Curtindo repertórios de qualidade como o dos garotos de Liverpool é natural que não se deixem pegar pelas produções caça-níqueis dirigidas a crianças e adolescentes.

Em 18 de junho deste ano, James Paul McCartney completará 70 anos. Meus filhos, de 12 e de 10 anos, cantam as suas músicas e cantaram no estádio do Arruda, onde havia muitas outras crianças fazendo o mesmo. Paul McCartney é o compositor e coautor de várias das melhores e mais perenes músicas da história da canção de massa de qualidade e que os Beatles continuam como referência de banda mais influente do pop-rock de todos os tempos. Em quarenta anos de estrada ele pode ser visto na janela do tempo como um dos maiores fenômenos da música mundial.

Somando o repertório dos Beatles e da sua carreira solo, com Wings, The Fireman e nos últimos dez anos com uma excepcional banda de turnê, formada por Brian Ray (baixo e guitarra), Rusty Anderson (guitarra), Paul Wickens (teclados) e o baterista Abe Laboriel Jr, ele tem canções para fazer naturalmente shows honestos como esse, com 35 músicas e quase três horas duração. E ele toca tudo isso de forma relaxada, espontânea, condescendente e na simplicidade das grandes estrelas de verdade, inclusive quando se diverte fazendo cola de termos e frases em português, para animar mais ainda a galera: "Povo arretado!".

A recepção na arena pernambucana foi calorosa. Parece que só quem não percebeu isso foi o enviado especial do jornal Folha de São Paulo, Rodrigo Levino, que fez uma patética crítica ao que chamou de "plateia dispersa e pouco reverente" ("Ex-beatle sua para sacudir o público em Recife", p. E12, FSP, 23/04/2012). A começar pelo medíocre trocadilho do título, no qual recorre ao verbo suar, no sentido de transpirar (e isso é verdade, Paul ficou com a camisa molhada de suor) e no sentido de esforço extra para conseguir algo de alguém; no dizer do dito enviado: "Paulo venceu o round contra o público". Fazer o quê? Mesmo em espetáculos maravilhosos como esse no Recife, tem sempre um mala culturalmente deslocado e incomodado com o que não é espelho.

A viseira do preconceito desse "enviado" calculou em 40 mil um público de mais de 50 mil, disse que o show teve poucas novidades e desdenhou do que chamou de "frases de efeito pronunciadas em algo próximo do português". Escreveu que "o show demorou um pouco a engrenar" e que "o cantor se mostrou distraído no primeiro terço da apresentação". Ao destacar particularidades do show, como um medley de canções dos Beatles, alfinetou: "Mas essas particularidades passaram quase despercebidas pelo público". Ao comparar o entusiasmo da plateia com "bingo de quermesse", o "enviado" valeu-se de sua mediocridade para afirmar que a plateia só se conectou quando ouviu os fogos que ornamentaram "Live And Let Die" e ao acompanhar "Hey Jude", por que "é fácil cantar o nanananá".

Depois de ler o comentário do "enviado", lembrei primeiro de "Let it be" ("Deixe estar / deixe estar / haverá uma resposta") e logo em seguida me ocorreu a indagação de "Eleanor Rigby" ("De onde vêm as pessoas solitárias? / De onde elas são?"). E deixei para lá. É melhor deixar para lá. Paul McCartney não saiu de St. John´s Wood ou do condado de East Sussex, nas cercanias de Londres, para dar cartaz a esse tipo de futilidade. Em Pernambuco, ficou hospedado no Nannai Beach Resort Hotel, na bela praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca, com ponto de apoio no Golden Tulip, de Jaboatão dos Guararapes.

No sábado (21), quando chegou ao estádio do Arruda no início da noite, baixou o vidro do carro e agradeceu aos fãs que abriram a fila para o seu carro entrar ao lado do portão 5, que dava acesso à arquibancada superior. O aceno teve sabor de retribuição pelo acolhimento. Recife abriu a parte brasileira da turnê "On the run", que já passou também por Montevidéu, Assunção e Bogotá, encerrada ontem, na Ressacada, em Florianópolis. No bis, ele voltou ao palco agitando a bonita bandeira de Pernambuco, para cantar "Lady Madonna", "Day Tripper" e "Get Back". Estava empolgado e empolgava o público; tanto que após ouvir o "Paul, Paul, Paul..." dos fãs, retornou outra vez e encerrou com "Yesterday" e um pot-pourri de sucessos.

Teve de tudo nesse show. Foi espetáculo completo. Logo no início, os dois painéis de alta definição, com 48 metros de altura, dispostos nas laterais do palco, exibiram colagens, algumas em movimento, contando da trajetória de Paul McCartney. Esses arquivos visuais foram expressando sentimentos sonoros, puxando a memória afetiva de uns e aguçando a curiosidade de outros, aquecendo os milhares de espectadores para a chegada do som ao vivo. E a festa começou com "Magical Mystery Tours", "Junior´s Farm" e "All My Loving". No céu, as Três Marias faziam parte das estrelas que viram o show lá de cima.

McCartney tocou violão, guitarra, piano, bandolim e cavaquinho, além do seu emblemático baixo Hofner, modelo violino, leve, simétrico e de som encorpado. Psicodelizou a cena com uma guitarra e um piano que pareciam as pinturas em acrílica do Dim. Quando cantou a sutil "Blackbird", inspirada no desejo de liberdade da mulher negra, a imagem de uma lua maravilhosa invadiu o cenário, fluiu pelos telões laterais e encheu o estádio de poesia. Escolhidos pela produção, fãs de diversas regiões do Brasil subiram ao palco. Uma moça pernambucana virou as costas para Paul, levantou o cabelo e pediu um autógrafo no pescoço, no que ele espirituosamente perguntou: "O que sua mãe vai achar disso?". E autografou.

Na janela do tempo, o show teve composições novas, como "Only our Hearts", e também homenagens. Paul ofereceu "Here Today" a John Lennon, "Something", a George Harrison, "Yellow Submarine" a Ringo Starr, "My Valentine", a Nancy Shevell (51), com quem casou no ano passado, e "Maybe I´m Amazed", para a ex-mulher Linda Eastman (1941 - 1998). E para o público que foi ao estádio do Arruda naquela "noite que me lembrará você", dedicou "The Night Before" tocada por ele pela primeira vez no Brasil.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Imprensa de insurgência - Diário do Nordeste - 19/04/2012


Numa época em que grandes revistas semanais de alcance nacional circulavam com cerca de 40 mil exemplares, a imprensa alternativa teve jornais com grandes tiragens, como o Opinião (1971), que em seis anos chegou a picos de 38.400 exemplares, e o Pasquim (1969), que saiu de 20 mil para 200 mil exemplares em duas décadas de circulação. O período entre o golpe militar de 1964 e a Anistia, em 1979, foi marcado por um mundo espelhado pelos blocos ideológicos do capitalismo/liberalismo e do comunismo/socialismo.

A vida política brasileira seguia submetida a essas duas perspectivas e a palavra "resistência" passou, então, a sintetizar a mentalidade dos que fizeram jornalismo de oposição ao regime militar. Daí o título do projeto "Resistir é preciso", que o Instituto Vladimir Herzog está lançando, tendo como primeiros produtos dois álbuns de memória; um, "Os protagonistas desta história", com 60 dos muitos fazedores dessa imprensa insurgente, e outro, "As capas desta história", com primeiras páginas de centenas de jornais de circulação perseguida.

Em "Os protagonistas", trechos de mais de 100 horas de gravação em 12 DVDs, com coordenação de Clarice e Ivo Herzog e pesquisa de Vladimir Sacchetta, pode-se apreciar falas de ativistas e militantes da imprensa alternativa, clandestina e de exílio, que influenciaram no processo de redemocratização do Brasil. Para adquirir a íntegra de cada depoimento o caminho é o e-mail protagonistas@vladimirherzog.org do Instituto Vladimir Herzog. Nas 188 páginas de "As capas", 300 delas ilustram o livro organizado por Ricardo Carvalho, José Luiz del Roio, Vladimir Sacchetta e José Maurício de Oliveira.

Embora centrado no contexto dos fatos e versões desse período da história recente do Brasil e suas restrições ao acesso à informação, o projeto "Resistir é preciso" faz um apanhado geral de publicações que precedem o recorte histórico abordado. E dentre os que vieram antes estão jornais como o Tiphis Pernambucano (1823), feito por Frei Caneca no calor da Confederação do Equador, e um muito especial, pela genialidade e irreverência, que foi o Jornal Subiroff (1920), de Nereu Pestana, filho de Nestor Pestana, então diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo. Ele inventou o delegado russo Ivan Subiroff para dinamizar um jornal considerado de boa qualidade de opinião.

A lista é grande e atraente. O pesquisador Vladimir Sacchetta ressalta a importância da referência e reverência aos que vieram antes, como base para os jornais que "não hesitaram em criticar a violência, os abusos e o conservadorismo impostos pela ditadura" no Brasil. E o primeiro deles foi o Pif-paf (1964), criado pelo humor inteligente e cáustico de Millôr Fernandes, com a colaboração do Jaguar, Ziraldo, Fortuna, Claudius e Sérgio Porto. A capa reproduzida é a da edição número 3, na qual aparece um general em carta de baralho e a seguinte nota de rodapé: "Esta é a nossa capa. Aliás, capa e espada".

O maior, o mais influente, o mais criativo e o que durou mais dentre todos, O Pasquim (de 1969 a 1991), é um dos poucos a ter a sabedoria de recorrer à cultura, veiculando uma mescla de pensamento de artistas, intelectuais, jornalistas, estudantes e militantes políticos, em sua luta pela desmoralização em tempos de ditadura. A interação rendeu citações como a de Roberto e Erasmo Carlos na música Coqueiro verde: "Mas eu vou embora / vou ler meu Pasquim". Ziraldo conta que era preciso fazer de três a quatro colunas para escapar dos censores e assegurar a publicação do jornal. Relata o fato sem pose: "Não tem heroísmo nisso. É da natureza da profissão".

 Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Cidade do Rio de Janeiro, é de opinião que O Pasquim é um exemplo de como esse tipo de imprensa poderia ter dado certo, caso existisse nos protagonistas da "resistência" um espírito empreendedor empresarial. Ela tem razão, tanto que o outro exemplo de publicação sólida e mais duradoura do que o normal no mundo da imprensa alternativa, é o jornal Opinião, de Fernando Gasparian, empresário da indústria têxtil que bancou a sua publicação. Editado por Raimundo Pereira, pernambucano de Exu, o Opinião posicionava-se claramente contra a ditadura e, para ter asas soltas, contava com uma equipe de colaboradores que ia de Celso Furtado a Antônio Cândido.

Assistindo aos depoimentos disponibilizados nos DVDs foi que me dei conta de algo que sempre me inquietou: por que havia tanto racha no meio dessa imprensa marginal? Raimundo Pereira explica: "O sujeito quer um jornal para expressar os seus pontos de vista", quando não dava, não havia o que tolerar; o comum era sair para fazer o próprio jornal. Foi assim que, a partir do Opinião surgiu o Movimento, depois o Amanhã, em seguida o Em Tempo, que se vangloriava de ser um jornal de jornalistas, sem direção de partidos ou facções políticas. Maria Rita Kehl atribui as assembleias intermináveis às tentativas constantes das tendências de dominar o jornal.

Um jornal que ganhou muita importância também por recorrer à cultura em sua dimensão de transformação política, foi o Versus (1976). O livro do projeto "Resistir é preciso" mostra uma capa do Versus com uma plêiade de personagens lendários, acentuados pela força estética que os acompanhava, a exemplo de Emiliano Zapata e Virgulino Ferreira, o Lampião. Outra estratégia maravilhosa desse jornal era a recorrência a abordagens latino-americanas para dizer do Brasil, sem precisar dizer. Osmar de Barros Filho (Matico), velho gaúcho de guerra, esclarece que, por exemplo, "quando falávamos da morte de um índio peruano, falávamos também do índio brasileiro".
  
Muito boa também é a história do jornal O Sol (1967), cantado por Caetano Veloso em Alegria, Alegria: "O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça". Encarte do Jornal de Sports, O Sol inovou na parte gráfica, colocando um artista diferente para fazer cada uma das suas edições. A biógrafa Ana Arruda Callado lembra que esse jornal pretendia ser uma escola de formação prática de jornalistas, em contraponto às escolas teóricas e seus "jornais de mentirinha". Reynaldo Jardim, poeta e editor, queria um jornal que apostasse na boa notícia, que fosse um jornal jovem e para jovens. E adverte: "Jovem é aquele velho Bertrand Russel e não aquele estudante desatento da realidade que o cerca".

É muito divertida a história dos dois casamentos de Bernardo (que tinha codinome José Ricardo) e Olívia Joffily, casal que de 1974 a 1979 foi responsável pelas transmissões em português da Rádio Tirana, da Albânia, sabendo do Brasil apenas pelas ondas da BBC de Londres e das rádios da Suécia, de Moscou e de Pequim. Entre os relatos mais emocionantes está o de Bia Cannabrava sobre sua relação com a música para suportar o exílio. Um pouco de "Pátria Amada" (Vandré e Manduka), vencedora do Festival de Aguadulce, no Peru (1972), cantada por Soledad Bravo: "Se é para dizer adeus / pra não te ver jamais / eu, que dos filhos teus / fui te querer demais...". E virou hino dos exilados. E para descontrair, o genial cartunista Laerte esclarece que passou a andar vestido de mulher por "inconformidade com os padrões de gênero" e por "desejo profundo de se aproximar do mundo feminino". E por aí vai...

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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Espadas de carnaúba - 12/04/2012 - Diário do Nordeste

Havia contado aos meus filhos que quando eu era criança usávamos espadas de haste da palha de carnaúba para as nossas brincadeiras de luta no meio dos matos. Fazíamos as próprias armas e inventávamos combates inspirados nas revistas e filmes do Zorro. Usávamos máscaras confeccionadas com tiras de câmara de ar de pneu de bicicleta e as nossas espadas eram flexíveis e tinham tampa de lata de leite adaptadas como proteção de mão. Era uma das minhas diversões favoritas. Eles quiseram ver como era isso e aproveitamos o feriadão da Semana Santa para essa aventura.

Confirmamos com o meu pai e ele disse que no terreno onde ele mora, em Independência, ainda existiam pés de carnaúba. Descansamos um pouco depois do almoço no sábado (7/4) e ficamos esperando o sol dar uma trégua. Mesmo com a escassez de chuvas e com o calor intenso do sertão em ciclo de seca, como agora, a nossa casa conta com uma significativa área verde permanente, cujo sombreado facilitou a caminhada. Cruzamos o leito seco do rio Cupim, passamos ao lado do pé de canafístula, onde os meninos têm uma casa na árvore, galgamos uma pinguela, abrimos e fechamos cancelas e no fim do denso algarobal, encontramos as carnaubeiras.

O chão estava cheio de palhas caídas. Poucas em bom estado original. Deu, contudo, para escolher quatro delas em tamanhos e formatos diferentes, sem que fosse necessário fazer qualquer corte novo. Meu pai ensinou os netos a retirarem os espinhos dispostos ao longo da haste que liga cada palma ao talo e retornamos para casa, a fim de preparar as espadas. Pelas veredas, eles revelaram que pensavam ser preciso tirar lascas do tronco para fazer o brinquedo. Estavam contentes porque as espadas seriam produzidas com aquele material que tinha cumprido a sua função natural e estética, a mais de dez metros de altura nas copas dessas palmeiras cosmogônicas.

Em um converseiro animado, eles começam a imaginar o quanto naquele bosque daria para fazer de filmes de ficção. O ambiente permite o elemento surpresa medonho, o que ninguém sabe de onde vem nem do que é capaz. Falam no tempo e espaço fantástico da série "Senhor dos Anéis", da fantasia medieval "Game of Thrones", do terror apocalíptico "The walking dead" e dos episódios kitsch da "Saga Crepúsculo". E o cenário tranquilo da fazenda Manchete vai ganhando contornos cinematográficos com suas árvores contorcidas, sombreados temerosos e feixes de luz esvoaçante.

Das minhas referências infantis de seriado de capa e espada observo o arrastar das palhas de carnaúba, com as quais também fazíamos cavalinhos com cabresto de embira, e vejo nelas o potencial dos sabres de luz de "Star Wars", de George Lucas. Mostro ao Lucas e ao Artur os filetes que podem ser retirados ao longo da haste e conto que com estas varetas montávamos a armação para a fixação do papel para fazer arraia (pipa) e empinar ao vento, num outro tipo de guerra nas estrelas. Essas varetas serviam também para fazer gaiolas, uma espécie de cela da "estrela da morte", onde muitos meninos costumavam aprisionar aves, situação que sempre me incomodou; tanto que por muitas vezes eu quebrei essas clausuras para libertar passarinhos.
 
Contei todas essas coisas a eles sem a preocupação de querer resgatar nada. Não falo do passado com saudade do "meu tempo", nem para insinuar que "naquele tempo" isso ou aquilo era mais ou melhor do que isso ou aquilo. Falo do que passou como algo que se tornou o que somos. E para isso, sempre que as circunstâncias são favoráveis, procuro fazer uso de atividades lúdicas com os meus filhos, como essa em que fizemos espadas de carnaúba, que podem ser partilhadas entre adulto e criança, netos e avô.

A percepção do brinquedo espada mudou muito ao longo dos anos. As referências dos combates históricos e das telas dos cinemas, tablets, computadores, celulares e televisões também mudaram. Quanto à infância, em situação normal esta continua tratando o brinquedo no campo da fantasia consciente. Acho esse fenômeno maravilhoso. O grande benefício dessa relação com o objeto em estado de ilusão é o próprio processo de construir, combinar, comparar e produzir efeitos de convivência, equilíbrio aos impulsos agressivos e liberdade de assumir um papel que tem significação própria no ato de brincar.

São inúmeras as possibilidades de uso de uma simples haste de palha de carnaúba. A experiência da criação é mágica. Novamente parei para olhar o meu pai, Toinzinho, demonstrando como os meninos poderiam separar o talo e as palhas da haste. Sobre um cepo bem firme, eles seguraram cada peça e foram cortando com a minha ajuda, já que envolvia um facão nessa história toda. O passo seguinte seria preparar as ligas de apoio às mãos. Pegamos uma velha câmara de ar de pneu de carro e, como ela estava suja como nós, fomos tomar banho na "bica do vovô", um chuveiro com água puxada a bomba, diretamente de um poço profundo.

Na gaveta superior esquerda da máquina de costura da minha mãe, Socorro, ainda tem uma tesoura com a qual eu cortava essas coisas que tiram gume. Foi com ela que, entre um esfregado de bucha de maxixe e a tirada de espinhos presos nos chinelos, fizemos as tiras de borracha para as espadas. Enquanto os filetes secavam, nos enxugamos e partimos para preparar as proteções de mãos. A minha mãe conseguiu duas latas de leite, mas as tampas eram de plástico. Tivemos que cortar o tampo do fundo da lata, cujas bordas cortantes foram bem amassadas com um martelo. Deu certo, com todos os materiais prontos, era a hora de montar as espadas.

Cada um fez dois modelos de espada. O Lucas optou por uma cimitarra, com lâmina curva, e por um bastão de artes marciais; o Artur fez uma katana, a arma branca dos samurais e dos ninjas, também com lâmina ligeiramente curva, e por uma espada de duas mãos, do tipo usado em tempos medievais no enfrentamento dos cavaleiros de armaduras. A aplicação da liga de borracha em cada uma deu o detalhe definidor dessas características. O bastão, por exemplo, tem pontos de suporte nas extremidades e no meio; à medida que a espada de duas mãos foi enrolada de preto em quase metade da sua extensão de um metro. Para diferenciar a sua katana da cimitarra do irmão, o Artur acabou colocando também as tampas de plástico na proteção da mão.

A tarde chegava ao fim e o sol começava a pintar tudo de luz amarelada. O muncunzá salgado, feito com milho, feijão e caldo grosso de nata, já começava a cheirar na panela. Indo para a mesa, a coalhada com rapadura ralada, batata doce com leite e outras iguarias do sertão. Tudo parecia calmo até ouvirmos uns gritos e uns sons de pulo no terreiro da frente da casa. Corremos todos para o alpendre e estava lá o meu filho Artur de dez anos lutando de espadas com o meu pai de noventa anos. Plact! Tec! Ai! Ui! Ai!
Ambos só de calção e cheios marcas avermelhadas pelo corpo. Foi a prévia do Artur, antes de desafiar o Lucas, seu irmão mais velho, com o qual passou a travar vários combates que duraram até o cair da noite.



sexta-feira, 6 de abril de 2012

A educação com música - 05/04/2012 - Diário do Nordeste

O som vem de antes dos humanos; é um fenômeno natural abundante e atemporal. A combinação de sons com intervalos foi aprimorada e virou música. Numa perspectiva histórica e social, a fala dos sons e os sons da fala estão na base da nossa comunicação. Assim, a contribuição da música na formação humana vem de épocas pré-linguísticas. Depois vieram os instrumentos musicais e as festas da espiritualidade, da cultura e da criatividade nunca mais acabaram.
No Brasil, as referências musicais nativas foram ofuscadas com a chegada dos padres Jesuítas a partir de meados do século XVI. Os padres da Companhia de Jesus se valiam da música para a catequese e para o ensino da leitura e da matemática. Também nesse período, a globalização econômica do mercado da escravidão passou a trazer para o que viria a ser o Brasil os irmãos negros e, estes, trouxeram consigo a sua cultura musical.
No século XVII o ensino do canto foi oficializado nas aldeias e, no século XIX, a noção de música e os exercícios de canto foram formalizados no currículo escolar brasileiro. A nossa música ganhou uma rica contribuição dos imigrantes europeus e asiáticos, que se tornaram brasileiros no final do século XIX e início do século XX. Mas foi na primeira metade do século XX que o projeto de Educação Musical de Villa-Lobos ganhou dimensões de política de governo. E, na segunda metade, o País passou a ser novamente colonizado pela formação musical da comunicação de massa.
Nesse vaivém de sons, sentidos e multiculturalismo, das sonoridades locais e daquelas vindas com as caravelas ou nas antenas de radiodifusão, nasceram a diversidade e a pluralidade da música brasileira. Em meio a povoamentos, trocas e antropofagias reverberantes, ganhamos até um musicólogo alemão, naturalizado brasileiro, o professor Koellreutter, que trabalhou a música como instrumento de formação integral, desenvolvimento corporal e socialização. E quando parecia que potencializaríamos esses vínculos e reafirmação da música no cotidiano escolar, a ditadura militar afastou a educação musical das escolas.
Somente no final da primeira década deste século XXI, a música voltou a ser oficialmente conteúdo obrigatório no currículo escolar brasileiro. No artigo "A música na educação" (DN, 18/11/2010), manifestei a minha convicção do quanto essa decisão do governo federal tem de importância "para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica - Infantil e Fundamental - nas escolas brasileiras". Estávamos naquele momento prestes a chegar aos três anos determinados pela Lei 11.769/2008 como limite para a adaptação dos sistemas de ensino do País à educação com música.
Quatro décadas de tempo perdido (1971 - 2011) suscitaram muitas indagações de como fazer isso e até prováveis dúvidas da sua importância. Mas a Ordem dos Advogados do Brasil - Secional Ceará, que tem na sua Comissão de Direitos Culturais o advogado e músico Ricardo Bacelar (ex-Hanói Hanói), está cobrando a aplicação da lei. A repórter Mozarly Almeida cobriu a coletiva realizada na semana passada, na qual a OAB-CE "anunciou a decisão da instituição de enviar ofício a oito mil escolas cearenses, da rede pública e privada, e também aos secretários de educação municipais do Estado cobrando a aplicação da norma" (DN, p. 5, 29/03/2012).

O tema é de grande interesse social. Requer ser intensamente discutido ao passo que vai sendo implementado. Não é a situação ideal, mas é a que está posta. E foi pensando na escassez de material de apoio que duas produtoras culturais paulistas, Gisele Jordão e Renata Allucci, se uniram ao músico Sérgio Molina e à psicóloga educacional Adriana Terahata, para editar, com patrocínio da Vale, o livro "A Música na Escola" (Allucci, 288 pág. São Paulo, 2012). A publicação, que tem edição digital acessada pelo site "www.amusicanaescola.com.br" é uma excelente contribuição do Sudeste ao debate nacional.
O livro explicita a complexidade da questão, mas encara os fatos com simplicidade. Com a colaboração de educadores, músicos e especialistas, abrange desde referências históricas até propostas de exercícios, passando por informações e pontos de vista. São 22 artigos inéditos, 39 práticas de educação musical - nenhuma delas voltada para aula de instrumento -, dez abordagens de conteúdos e dez rodas de conversas, reunidas em quatro grandes blocos: (1) Justificativas de por que música na escola; (2) Fundamentos da educação musical; (3) A música do Brasil e do mundo; e (4) A educação com música.
Muitas das perguntas que todo educador se faz com relação à introdução de conteúdos da linguagem musical na escola estão contempladas nesse trabalho: "O que significa ensinar música?", "O que deve ser ensinado?", "Qual o papel do educador de música?", "Quem é esse educador?", "Qual deve ser a sua formação?". O livro não traz respostas, ele apresenta pensamentos sobre tudo isso. Iramar Rodrigues, professor de sensorialidade, argumenta por exemplo, que se o professor de música "tiver princípios pedagógicos de base claros e precisos, e souber o porquê do trabalho a ser desenvolvido, ele não precisará ser um especialista" (p. 91).
 Dentro desse recorte focado na compreensão do educador musical e considerando as variações de repertório, métodos, tempo de acontecer e condições objetivas de realização, Adriana Terahata defende um projeto educacional capaz de romper com a "aplicação" dos guias para educadores: "A educação é, antes de qualquer coisa, uma atitude ética, não sob a arrogância acadêmica, cientificamente correta (...), mas com o compromisso de pensar sobre, uma ciência engajada, comprometida" (p. 12). Em linha com esse pensamento, o musicólogo Carlos Kater propõe "uma educação musical capaz de oferecer estímulos ricos e significativos aos alunos, despertando atitudes curiosas e aumentando, por consequência, a disponibilidade para a aprendizagem" (p. 43).
O violonista Fabio Zanon chama a atenção para o tratamento diferenciado que deve ser dado a cada região do País e para o envolvimento dos pais nesse processo (p. 128). Carlos Sandroni, compositor e professor de etnomusicologia, recorre ao saudoso educador Paulo Freire (p.133) e ao músico Maurício Pereira (p. 143) para propor o aproveitamento dos canais de trocas entre analfabetos e letrados em música, comportamento referendado pelo músico e psicólogo social Ivan Vilela, em seus argumentos de que o mais relevante nesse aprendizado acaba sendo a crônica que "a maior expressão de música popular do mundo" (p. 141) faz dos anseios e acontecimentos ocorridos com as pessoas "que não tiveram a sua história registrada pelas vias comuns da escrita" (p. 135). Para ele, até mesmo por uma questão de finalidade histórica, deveríamos criar a nossa própria metodologia (p. 141).
Lucilene Silva, educadora musical da Casa Redonda, de Carapicuíba, onde a musicalização não está ligada a expectativa de resultados, que não o de suas qualidades transversais em todo o processo educacional, propõe que "diante da riqueza e diversidade da música tradicional da infância, é inegável a importância de tê-la como substrato principal na educação musical das crianças brasileiras" (p. 151). A música infantil realmente deve ter um lugar especial de sensibilidade na escola. Afinal, a cultura da infância é tão universal e atemporal quanto a música.