quinta-feira, 21 de junho de 2012

São João em Maracanaú - 21/06/2012

Andei por um bom tempo meio desencantado com a descaracterização provocada pelos exageros dos figurinos, dos passos das danças e dos autos das quadrilhas juninas e com a homogeneidade e o empobrecimento artístico dos shows incorporados às festas de São João. Isso vinha me inquietando porque sei da importância desses eventos para a cearensidade e do tanto que eles têm de alma nordestina e de potencial turístico.

As festas juninas estão direta ou indiretamente entre os traços culturais mais presentes no Ceará. Constituídas e organizadas simbolicamente como decorrência do nosso sistema de relações sociais, formatado a partir da influência histórica da colonização, modificaram-se ao longo dos anos e continuam em franco processo de alteração, enquanto festejos oscilantes entre manifestação popular espontânea e produto da cultura de massa.

Resolvi tomar pé de como se dá uma grande festa junina atualmente e, sábado passado (16), fui ver de perto a de Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, considerada a Capital Junina do Ceará. Adianto que fiquei positivamente impressionado com a estrutura de aproximadamente quatro hectares, circundada por tapumes de madeira e divida em três ambientes: quadrilhódromo, praça de shows e uma cidade cenográfica em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. Tudo bem organizado pela municipalidade, com entrada gratuita e bem-estar de segurança.

A concepção de três ambientes em um só espaço destaca-se por sua configuração integrada do sentido atual das festas juninas, dando novos significados a uma diversão antes orientada principalmente por intenções pastorais. O deslocamento do cunho religioso para o cultural estava coloridamente caracterizado na cidade cenográfica, onde a representação da capela apresentava a mesma distinção do xilindró, da radiadora, do engenho moendo cana e do cabaré da luz vermelha.

A presença desses elementos tradicionalizados na vida interiorana, conjugados e conjurados na mesma área, abre diversas possibilidades de conotações, analogias e permutações porque se resumem apenas a um ordenamento festivo e não a qualquer prescrição social. A simples combinação de réplicas abre passagem para validades particulares e suas compreensões relativas, muitas vezes guardadas no íntimo de cada pessoa como algo apagado de sua cultura.

Convém lembrar que Maracanaú é uma cidade industrial habitada praticamente por desterrados. Para seus moradores, aquele espaço público deve reacender uma via de identificação cultural profunda, elevada pelo sentimento atávico de quermesse, misturado em fantasias de clubes e de praças de igreja e de mercado. Nessas festas de São João, que a cidade realiza há oito anos, as pessoas têm a oportunidade de receber, por quase um mês, centenas de visitantes, provenientes de municípios vizinhos, além dos integrantes dos cerca de oitenta grupos de quadrilha que se deslocam para lá em busca de diversão e dos títulos dos festivais que acontecem no quadrilhódromo.

Tenho consciência de que as festas juninas, como toda invenção social coletiva, precisam mesmo ser repensadas a partir das mudanças ocorridas na sociedade e, por conseguinte, no nosso olhar sobre a cultura. Na dinâmica da vida urbana talvez seja de pouca razoabilidade querer um folguedo nos moldes dos mais isolados recantos do mundo rural. O que me embaraça a mente quando fico matutando sobre isso é a sensação de carência de estímulo ao prazer da apreciação, acentuada especialmente na praça de shows. Minha expectativa é que o encontro e a dispersão que essas festas produzem estiquem o alfenim da sabedoria popular até libertar a sua consistência e o seu sabor mais puro de melado com goma.

O que me pareceu mais relevante na ida ao São João em Maracanaú com a minha família foi não ficar preso ao claro e escuro, até porque no fundo, no fundo, o preto e o branco são policromáticos. Procurei fazer o exercício de dar prioridade aos fatos na minha experiência perceptual. Transitamos descontraídos na plasticidade da cidade cenográfica, do quadrilhódromo e da praça de shows, entre bandeirolas e balões no efeito recíproco de saturação e brilho das cores estouradas da decoração, sem cobrar o que poderia ser claridade e escuridão.

No percurso evolutivo das festas juninas, muitos altos e baixos já foram deixados para trás. O mais importante de tudo é que a essência dessa tradição ainda não desapareceu; o que era não é mais, contudo, segue com vigor em busca de renovação e sentido. A estética das quadrilhas perdeu as nuanças intuitivas da cultura popular e, salvo exceções, se perdeu na distração de um público difuso, aparentemente conformado com suas necessidades de escape da rotina e dependente da relação direta do mercado com as massas.

Qualquer dia desses, quando o Brasil e o Ceará perceberem que não dá para se desenvolverem de verdade sem um ministério da cultura e sem uma secretaria de cultura pra valer, certamente esse tipo de manifestação ganhará os cuidados devidos. Não defendo com isso que se gaste o menor tempo sendo contra o que está estabelecido. Assim como em alguns bairros e povoados as pessoas continuam fazendo festa junina orgânica para o viver comunitário e o comércio de shows domina as arenas de bandas, espera-se que um dia os governos venham a dar apoio sistemático ao que faz a diferença em qualidade e liberdade criativa.

A festa de Maracanaú é uma síntese bem estruturada do que somos na atualidade em termos de considerações à cultura. A estrutura "três em um" desse evento mostra-se valiosa por permitir a distinção do que há de músculo nos grupos de quadrilha, de voz nos animadores de palco, e de semblante no campo social coletivo da cidade cenográfica, criando as condições de despertar nas pessoas o que elas ainda podem ser, enquanto parte dessa manifestação viva do nosso calendário cultural (e que deveria ser turístico também).

Em que pese a beleza das nossas praias, não há melhor forma de dar sustentação ao turismo do que pelas revelações das nossas práticas culturais. Se o que temos ainda não está totalmente pronto, a pressão da difusão ajuda a melhorar. Neste aspecto, as quadrilhas juninas fazem parte do nosso acervo simbólico, tanto no tocante à sua expressão social quanto em relação à economia que movimenta a tecnologia utilizada, as linguagens a que recorre e os conceitos que traduz.

Infelizmente temos, tradicionalmente, um turismo com ideia limitada de cultura e, por isso mesmo, pobre em ofertas culturais. É provável que a falta de atenção às festas juninas encontre justificativa na ideia de que esse tipo de evento existe em outros estados nordestinos, portanto, não haveria muita razão para um visitante querer pagar para apreciar ou participar desse tipo de atração. Ledo engano; é o modo como se apresenta uma manifestação cultural que a torna atraente. Neste caso específico, a Capital Junina do Ceará está a apenas 25 quilômetros da avenida Beira-Mar, onde ficam os principais hotéis de Fortaleza.

O modelo tríplice adotado por Maracanaú ainda levará um bom tempo para ser o tal, mas já está preparado para receber turistas. Embora seja um espaço provisório de interações, ele desenvolve-se subjacente a uma manifestação cultural de grande valor para o Ceará. Gostei de ter ido ao São João em Maracanaú. Lá me diverti, encontrei amigos e refleti sobre o que essa festa pode representar para além do evento no nosso horizonte cultural e turístico.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Raul Seixas não morreu - 14/06/2012

Nunca duvidei da lenda de que, assim como o rei do rock estadunidense, Elvis Presley, o rei do rock-baião brasileiro, Raul Seixas, também não morreu. Ambos têm datas oficiais de nascimento e morte: Elvis (1935 - 1977) e Raul (1945 - 1989). Os dois foram considerados falecidos com pouco mais de quarenta anos, mas os sósias e os imitadores de um e de outro são tantos que eles seguem vivos entre rumores e aparições.

Raul entrou para a vida artística recorrendo a características e trejeitos do ídolo Elvis, tipo a gola da camisa levantada e o modo estilizado de andar. Não virou cópia porque tinha uma experiência cultural muito rica, sintetizada na arte de outro mito da música que não morreu: Luiz Gonzaga (1912 - 1989). Com este, não apresenta a semelhança de viver pouco anos, mas a de morrer no mesmo ano de 1989.

Talvez um dos segredos de Raul Seixas não ter morrido esteja na consideração que ele sempre teve pela morte. "Oh, morte, tu que és tão forte / que matas o gato, o rato e o homem/ vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar" - "Canto para a minha morte" (Raul Seixas / Paulo Coelho). E ele foi ouvido e sua prece considerada, pois pouco antes de encerrar a autonomia dos movimentos do corpo, foi ovacionado num show em Brasília, ao lado do parceiro de última turnê, Marcelo Nova.

Há tempos que eu não dedicava atenção especial à obra de Raul Seixas. Aqui acolá ouvia meus filhos escutando "o meu egoísmo é tão egoísta/ que o auge do meu egoísmo é querer ajudar" - Carpinteiro do universo (Raul Seixas / Marcelo Nova). Foi então que fomos ver juntos o emocionante documentário "O início, o fim e o meio", de Walter Carvalho, contando com imagens de arquivo, depoimentos de familiares, amigos, parceiros, produtores e pesquisadores, a saga existencial do "maluco beleza".

A música e a alma inquieta de Raul Seixas fizeram parte da minha adolescência. Mais que isso, foram dez anos de intensa presença entre as minhas preferências de som. Começou com o lançamento do disco "Krig-ha, Bandolo" (1973), quando eu ainda morava no interior e o acompanhei em tempo presente, e entrou em fase de distanciamento logo após o episódio de quebra-quebra ocorrido no ginásio Aécio de Borba, em Fortaleza (1983), quando ele saiu do palco carregado por não conseguir se apresentar.

Naquele ano, o sucesso era "Pluct Plact Zum/ não vai a lugar nenhum (...) Mas ora vejam só/ já estou gostando de vocês/ aventura como essa eu nunca experimentei/ o que queria mesmo era ir com vocês/ mas já que eu não posso/ boa viagem" - "O carimbador maluco" (Raul Seixas). Sai frustrado por não ter podido ver o show e fui me desinteressando... me desinteressando, até o interesse ficar reduzido a lembranças.

Diante da tela de cinema do Pátio Dom Luís, percebi que em mim Raul também não morreu. Aliás, pensando bem, ele não morreu porque conseguiu ser e sintetizar em sua música a aversão aos exageros de uma sociedade que continua hipócrita e consumista. O seu primeiro grande sucesso é de uma atualidade assustadora: "Eu devia estar contente / porque tenho um emprego (...) Eu devia agradecer ao Senhor / por ter tido sucesso (...) Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73 (...) Eu devia estar sorrindo e orgulhoso / por ter finalmente vencido na vida / mas acho isso uma grande piada / e um tanto quanto perigosa" - "Ouro de tolo" (Raul Seixas).

A pressão da modelagem social o inspirava. Quanto mais ele estrebuchava dentro do sistema, mais revertia a situação de angústia a um estado de criação. Buscar alternativas parecia uma predestinação. Ele girava e pirava na luta enlouquecedora, ora entre o afastar-se de si e abrir-se ao mundo e ora afastar-se do mundo e abrir-se para si. Irreverente, contestador e mítico, Raul conseguia ter poder sobre a sua indomável genialidade, mas não conseguia ter controle de si. É difícil cantar o caos sem ser parte dele.

Raul Seixas bebia e fumava muito, mas passou a ser cliente fiel do mercado de drogas por insistência de Paulo Coelho. Quem afirma isso no filme é o próprio escritor de autoajuda, que foi seu parceiro expressivo. Sempre medindo as palavras e performando o arqueiro zen, Coelho aparece no documentário com o cuidado de quem não quer emprestar prestígio ao parceiro. O incrível dessa parte é que mesmo tendo sido o seu depoimento gravado na Suíça, onde normalmente não há moscas, a fala de Paulo Coelho foi perturbada por uma mosca.

Nesse momento fiquei pensando se aquela mosca não poderia ser o Raul Seixas tirando onda com o Paulo Coelho. "Eu sou a mosca que perturba o seu sono (...) Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar (...) Quem, quem é? / A mosca, meu irmão" - Mosca na sopa (Raul Seixas). Se ele não morreu, não terá custado nada essa irônica diversãozinha zoomórfica. Depois que trocou um só corpo para estar presente em cada fã, Raul virou também o que pode virar a imaginação.

Tomara que a incorporação da lenda no cotidiano dos seus admiradores mais fervorosos guarde alguns limites que o "maluco beleza" tanto prezava. "Minha mãe me disse tempo atrás/ onde você for Deus vai atrás/ Deus vê sempre tudo que cê faz/ mas eu não via Deus/ achava assombração/ eu tinha medo (...) Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro/ com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo/ vendo tudo que se faz dentro dum banheiro (...) Eu tinha medo" - "Paranoia" (Raul Seixas).

Não deve ter sido nada fácil produzir esse documentário. O mundo de Raul Seixas era e é naturalmente cheio de conturbações, feridas malcuradas e pessoas com temperamentos difíceis. O lado bom é que o seu valor como ícone dos contrastes sociais e a consistência da sua obra são incontestáveis. O filme mostra bem como ele catalisa as buscas por liberdade, os ímpetos emocionais e afetivos do amor, os anseios da espiritualidade e vários outros conflitos da condição humana.

Das muitas pessoas ouvidas, as declarações das ex-esposas e ex-amantes aparecem bem costuradas em suas idiossincrasias. Em duas parcerias com Paulo Coelho, "Medo da Chuva" e "A Maçã", deixou claro para elas o que pensava sobre o assunto: "É pena que você pense que sou seu escravo / dizendo que sou seu marido e não posso partir / Como as pedras imóveis na praia / eu fico ao seu lado sem saber / dos amores que a vida me trouxe / e eu não pude saber" (...) "Se esse amor / ficar entre nós dois / vai ser tão pobre amor / vai se gastar".

Dos relatos de parceiros, o que mais demonstra leveza e amizade sincera é o do compositor Cláudio Roberto, que, dentre outras, fez com Raul a música que virou sua marca. "Enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal / e fazer tudo igual / eu do meu lado / aprendendo a ser louco / um maluco total / na loucura real (...) vou ficar com certeza / maluco beleza (...) E esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão fácil seguir / por não ter onde ir". Cláudio cantou e contou bem-humorado da aventura do "raulseixismo", que contestava sem precisar ser música de protesto.

Conta que quando Raul inseria trechos de rock estrangeiro em suas composições, argumentava que estava fazendo desapropriação. Eles fizeram juntos "Aluga-se", música que sugeria com sarcasmo que a solução para os brasileiros era alugar o Brasil para os gringos. "Eles vão gostar / tem o Atlântico / tem vista para o mar / a Amazônia / é o jardim do quintal". Por essas e outras, o filme de Walter Carvalho impõe referências, num momento em que corre solta a falsa ideia de que tudo é igual... a mesma coisa.

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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Delicadezas da caatinga - Diário do Nordeste

O bioma caatinga e seus admiradores ganharam um presente muito especial nesta Semana do Meio Ambiente. Em angulações que apontam especialmente para a beleza e para a riqueza de um lugar historicamente marcado pelos estereótipos da estiagem, o "Guia de plantas visitadas por abelhas na caatinga" (Fundação Brasil Cidadão, 2012), editado com apoio da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), da Universidade de São Paulo (USP) e Petrobrás, reúne em suas páginas um importante conteúdo visual e científico.

A graciosidade das plantas, flores e abelhas, capturadas em fotografias e estudos de coevolução, desabrocha em espetaculares encantos que sacralizam a vida e enchem os olhos de quem ama a natureza. Muitas dessas preciosidades brilham no anonimato da mata branca porque, como elementos da biodiversidade de uma região histórica e politicamente atrelada ao subdesenvolvimento, nunca estão nas prioridades de catalogação, de referência estética e de aproveitamento dos seus princípios ativos.

Felizmente isso está mudando, lentamente e a duras penas, mas está mudando. Este guia, com seus textos e fotos sobre árvores, arbustos, subarbustos, trepadeiras e herbáceas, realçados em formas, tamanhos, cores e época de florescimento das flores observadas, é uma prova da existência de novos olhares valorizando a caatinga. As biólogas Camila Maia-Silva, Cláudia Inês da Silva, Vera Lúcia Imperatriz-Fonseca e os biólogos Michael Hrncir e Rubens Teixeira de Queiroz, autores do livro, colheram toda essa maravilha em trabalhos de campo realizados no Ceará e no Rio Grande do Norte, com financiamento da Capes e do CNPq.

Em atraente projeto gráfico de Mauri de Sousa, o livro mostra o galanteio das flores e dos insetos que as polinizam, em consagração à luz e à delicadeza da força botânica no fantástico campo vital do planeta. Mas a jandaíra, a jati, a irapuã e as abelhas que forçaram um processo de mestiçagem como a italiana e a africana, não estão ali somente para cumprir essa tarefa e fazer o mel (fonte de geração de renda de muitas famílias), elas fazem parte da paz silenciosa dos prazeres universais. E as flores não se embelezam apenas para tornar a natureza mais bonita, mas para serem amadas pelas abelhas, loucas pelo néctar açucarado do qual se alimentam.

As flores são os aparelhos reprodutores das plantas (angiospermas) e se exibem nas mais variadas cores e formas: são triangulares, na carnaubeira; vulvárias, no pau d´árco, jucazeiro, jequitirana, catingueira e palma-do-campo; agarradinhas, na umburana, no juazeiro e no pega-pinto; clitórides, no faveleiro, matapasto, jurubeba, na melosa e no fedegoso; cone-vaginais, na sete-patacas, salsa e jetirana; pubianas, no pacoté (algodão brabo) e na vassourinha-de-botão; pirotécnicas, no feijão-brabo, na malícia e no angico; estrelinhas, no umbuzeiro, e evolução estelar, no marmeleiro; só para citar algumas.

À medida que nos damos a oportunidade de apreciar e de sentir a grandeza de vidas assim, tão livres e integrais, tão belas e produtivas, bem que poderíamos reduzir as ambições que nos levam a desprezar a natureza e para as quais muitas vezes empenhamos os melhores momentos de nosso ciclo de existência. Publicações como o "Guia de plantas visitadas por abelhas na caatinga" podem funcionar como espelhos purificadores do nosso olhar e como fontes de negação da opacidade que impede o desenvolvimento da necessária e urgente formação da nossa ecoconsciência planetária.

A apreciação desse guia foi para mim para mim uma experiência gratificante. Ele fala especificamente do mundo onde eu nasci. Observei cada árvore, cada flor e cada abelha com o respeito e a reverência de quem folheia detalhadamente álbuns de amigos de infância. Os botões florais da meninice, as influorescências das brincadeiras e as pétalas vivas e variadas que nos aproximam, surgiram página a página, enquanto eu ia dando sons às fotos e sentindo cores, cheiros e sabores de tudo isso que, incrivelmente, permanece tão forte em mim.

Meses atrás tive sensação semelhante ao ler o livro "Flores da Caatinga" (Instituto Nacional do Semiárido, Campina Grande, 2010), dos botânicos Antônio Sérgio Castro e Arnóbio Cavalcante, editado com o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Entre fotos e textos ricos da flora regional, esse livro oferece uma imensa expressão de delicadeza das flores em plena rudeza da caatinga. Impossível passar indiferente diante de tamanha lembrança da experiência de sentir-me presente naquele cenário.

Trabalhos de grande relevância como o "Guia de plantas visitadas por abelhas" e o "Flores da Caatinga", não servem somente para quem tem valor afetivo por essas plantas e suas flores. A natureza está dentro até mesmo do mais citadino dos seres, mesmo aquelas pessoas que, quando diante de flores naturais, dizem que são tão perfeitas que parecem de plástico. Querendo ou não, o indivíduo urbano está nas árvores das ruas, das praças e dos jardins. O fato de, na cidade, o mundo botânico estar dividido e repartido por construções de concreto presas em cintas de asfalto, pode até nos embrutecer, mas não há como tirar totalmente de nós o vínculo original com a natureza.

Imagens como as das abelhas nas flores podem polinizar esse entendimento na mais urbanizada das pessoas, mesmo que seja apenas pela boniteza, pelo exótico, pela memória ancestral. A fotografia não é a natureza, mas pode sugerir a vastidão do que não é percebido no desencontro da cultura com o meio ambiente. As imagens de livros como esses servem para nos tirar da passividade, da inércia, chamando a atenção à pobreza do nosso modelo de vida contemporâneo, que precisa ser redirecionado, inclinando-se preferencialmente a um estado de maior inteireza e de um sentir continuado.

As fotos de flores são diferentes dos buquês. Os buquês antecipam o tempo de vida das flores, matando-as antes do tempo. As fotos eternizam sem antecipar ciclos. Não gosto de dar flores de presente; parece-me uma demonstração de fraqueza da relação. O maior presente que se pode dar com flores é levar a pessoa querida ao jardim, ao lugar onde as flores estão vivas, onde os insetos fazem a brincadeira do gozo da polinização. Nessas circunstâncias, tirar uma flor espontaneamente, quer pelo cheiro, quer pela beleza, para dar à pessoa amada, faz parte da função da flor e do amor. É diferente.

Tenho pena também dos bonsais. Em nome do charme decorativo, essas plantinhas são privadas da liberdade de viver na natureza para sobreviverem inanidas por torturas, que vão desde a poda de raízes até a sede controlada, passando por apertados vasos que impedem que cresçam. São fáceis de cuidar, sujam pouco, eu sei, mas não é bom para abelhas, borboletas e beija-flores. É diferente da poda feita com respeito ao espreguiçar dos galhos. Acho horríveis também aqueles jardins geométricos, que tiram a liberdade dos galhos, das folhas e das flores vadiarem.

Um livro de fotos ou um livro de pinturas e de textos sobre flores é para mim mais bem-vindo do que buquês ou bonsais. Uma boa foto de natureza não deixa o leitor somente no livro; ele passa a ter vontade de ver de perto o original, saindo consequentemente do plano mental para os planos vital e espiritual. E quando fazemos isso é porque nos identificarmos com o voo das abelhas, com a firmeza das árvores, a flexibilidade dos arbustos, a trama das trepadeiras e com a atração das flores.