quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A cooperativa Pirambu Digital - 23/02/2011 - Diário do Nordeste


A 46ª Conferência Internacional da Educação, realizada pela Unesco, em Genebra, de 5 a 8 de setembro de 2001, colocou na pauta internacional a problemática da convivência no século XXI. A síntese das reflexões compartilhadas nesse evento classifica em quatro pilares as competências necessárias para isso: (a) aprender a conhecer; (b) aprender a fazer; (c) aprender a ser, e (d) aprender a viver com os outros ("Aprender a viver juntos: será que fracassamos?", p.32, Unesco, IBE, 2003, Brasília). O documento coloca esse desafio às políticas voltadas à qualidade da educação.

Encontrei essas quatro competências em prática ao contratar a Cooperativa Pirambu Digital para desenvolver o meu novo portal de internet. Embora não seja um projeto de educação formal, sua atuação está ancorada nas dimensões cognitivas, afetivas e de pertencimento, para atuar em um cenário social e econômico impulsionado pelas transformações produzidas pela evolução científica e tecnológica. Integrando aprendizado e trabalho na vida cotidiana, os jovens cooperativados desenvolvem softwares, redes e sites, dão suporte técnico, recuperam equipamentos e promovem cursos e treinamentos.

Nessa experiência com características tão afeitas às culturas juvenis, eles ocupam espacialmente o bairro, combinando atividades produtivas com ações de extensão social, a exemplo da biblioteca-lan house, onde uma hora lendo um livro vale uma hora no computador; e o Condomínio Virtual, formado por moradores que se cotizam, escolhem entre eles um síndico do ciberespaço e a Pirambu Digital cuida de viabilizar o acesso. Assim, a cooperativa gera renda para os seus cooperados e participa efetivamente da vida comunitária.

O senso do coletivo, implícito nesse tipo de ação, realça os itinerários de apropriação dos valores do bairro, identificados em estudos de sociologia do cotidiano. "É necessário considerar, na compreensão e avaliação dos coletivos juvenis, que alguns jovens, em especial aqueles que vivem em grandes cidades, articulam-se preferencialmente em redes de ´socialidades´, buscando formas mais autônomas e, por vezes, autogestionárias, de ´estar juntos´ (BORELLI, MELO ROCHA e OLIVEIRA. "Jovens na cena metropolitana", p. 42, Paulinas, 2009, São Paulo).

No próximo ano (2013) esse projeto vai fazer vinte anos do seu marco inicial (1993), quando o professor Mauro Oliveira, então diretor da Escola Técnica Federal do Ceará (ETFC), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), aproximou a escola do bairro do Pirambu, numa parceria com o Movimento Emaús, que, na ocasião desenvolvia um trabalho de proteção à infância em situação de risco, no que era uma favela estigmatizada pela violência e pela pobreza, desde a década de 1930, quando aquela área litorânea foi transformada em campo de concentração de refugiados das secas. O professor Mauro contou no evento de lançamento do site (30/01/2012) que ao ver o esforço do Emaús, tratou logo de tentar fazer alguma coisa; e a primeira ideia que lhe passou pela cabeça foi a de criar uma programação que levasse as crianças do Pirambu para tomar banho de piscina e a mexer em computador na Escola Técnica. Um dia, em uma dessas idas ao bairro ele ouviu uma conversa que perturbou a sua consciência de educador. Ao descer do ônibus, uma criança foi abordada por outra, que estava na rua, querendo saber de onde ela vinha. Informada de que era da "escola tec", reagiu dizendo assim: "Abestado, tu pensa que tu me engana, aquela escola não é pra tu não!".

O fato de uma escola pública não estar no imaginário de possibilidades daquele menino de periferia foi a fagulha que levou Mauro Oliveira a idealizar e implementar o projeto Pirambu Digital. "É um projeto relativamente barato, que tem resultado, que mexe na autoestima das pessoas. Tenho dito que educar não é dar tablets, nem lousa digital; educar é permitir o florescer da autoestima, para que esses jovens sejam felizes", desabafou. Mesmo assim, foram necessários dez anos para que fosse iniciado (2003), com o apoio da LG, o programa de formação de jovens em informática, que, criaria as condições para dois anos depois (2005) nascer a Cooperativa Pirambu Digital.

Movida pela lógica da descoberta, a Pirambu Digital passou a possibilitar em suas vertentes econômica e social um rompimento com a fadiga da rotina. "Observando-se os meandros do cotidiano juvenil de uma periferia urbana - nos usos que os jovens fazem de seus tempos, nas linguagens que utilizam para definir e expressar a reflexão que fazem de suas trajetórias e de suas aprendizagens -, é possível perceber que, mesmo naquilo que se repete todos os dias, ou seja, na rotina, ocorrem rupturas e reinvenção dos modos de viver a juventude, em geral a partir das culturas juvenis" (STECANELA, Nilda. "Jovens e Cotidiano", p.31. Educs, 2010, Caxias do Sul).

Em seis anos de atividade, a cooperativa vem acumulando uma experiência de desvio da repetição do dia a dia, aproximando os jovens do bairro entre si e com clientes, nos diversificados trabalhos que aparecem para eles realizarem. O depoimento da presidenta Josilda Ribeiro foi para mim um presente naquele dia de festa. Ela disse que a Pirambu Digital já mudou a vida de muitos jovens do bairro, inclusive a dela. Relatou que após terminar os estudos ficara sem perspectiva de futuro. A expectativa de cursar uma faculdade e de se profissionalizar nasceu com os motivos para estudar aportados pela ideia da cooperativa.

O estudo de Borelli, Melo Rocha e Oliveira trata bem essa problemática abordada por Josilda. "Entre os jovens de classes populares a continuidade dos estudos e o adiamento da entrada no mercado de trabalho formal ou informal passa a ser um horizonte de expectativas e não propriamente uma condição de vida concreta, passível de realização" (p. 55). Corrobora ainda com a sintonia da Pirambu Digital ao afirmar que os computadores e os jogos eletrônicos são atualmente os principais responsáveis pelo uso do tempo dos jovens (p.123) e que a maior parte dos jovens associa independência à autonomia financeira (p. 101).

Pensando no quão complexa é essa realidade, foi mais bonito ainda ouvir a Josilda falar com orgulho do cotidiano da Pirambu Digital: "A gente tem meninos aqui que começam sem saber nem ligar um computador. Eles recebem curso de informática básica, depois aprendem informática mais avançada, aprendem ferramentas novas e passam a devolver profissionalmente suas habilidades. E todo mundo aprende muito rápido, porque o pessoal aqui do Pirambu tem uma capacidade muito grande de aprender rápido".

O Ministério da Educação bem que poderia investigar melhor esse tipo de laboratório econômico e social. Está em linha com os esforços de "agregar os princípios e fundamentos da educação básica que articulam cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho, como direito de todos e condição de cidadania e democracia efetivas ("Políticas públicas para a educação profissional e tecnológica", p. 59, MEC, 2004, Brasília-DF)".

Com um pouco mais de atenção e fortalecimento, essa experiência, que tem testada as quatro competências definidas pela Unesco como essenciais para "aprendermos a viver juntos", poderá ser replicada em outras comunidades, através de políticas públicas de educação, no sentido pleno. Por enquanto, o bairro do Pirambu, com mais de 350 mil pessoas, ainda não tem nem um pé de universidade; mas não há razão para duvidar da qualidade da semente.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O bem-estar de segurança - 16.02.2012 – Diário do Nordeste

Diante da onda de paralisação de policiais ocorrida em vários estados brasileiros nos últimos meses fiquei a observar os fatos que evidenciam a violência atribuída ao vácuo da proteção civil por parte do Estado e os relatos que se constroem a partir da situação de risco a que a sociedade passou a ser submetida. De tudo, o que mais me chamou a atenção foi a intensidade do desassossego, ante a hipótese de perigo, manifestado de um modo geral pelas pessoas no que diz respeito à generalização do crime.


A identificação da polícia como parte dos grupos de ameaça à segurança pública perturbou o senso comum, deflagrando uma guerra psicológica que deixou a população refém do seu próprio pânico. O modo como parte dos militares grevistas conduziu o levante fez com que a narrativa da greve fosse classificada a um só tempo nos estatutos do delito comum e do crime organizado.


A fusão dessas duas dimensões, bastante apropriadas à indução ao medo, concretizou-se no receio de circulação em cidades que ficaram sem policiamento e no temor aos próprios policiais. Os casos rotineiros de violência localizada não são tão provocadores de descontrole coletivo quanto à percepção vulgarizada de ameaça. Enquanto as ruas eram evitadas, uma nova concepção de turba destilava-se pelas infovias, retroalimentando a tensão coletiva e tornando as pessoas, com rompantes de postagens compulsivas, cúmplices de um caótico estado de apreensão compartilhada.


A aposta no poder de reverência ao terror foi tão incisiva e inconsequente, que desviou o que seria o motivo principal do movimento: melhoria salarial com isonomia de policiais civis, militares e dos bombeiros em todo o País, conforme definido na Proposta de Emenda Constitucional (PEC 300/2008). O resultado foi que, atordoada com o aumento dos registros de homicídios, roubos, ataques a transportes coletivos e saques, a população ficou contra a greve; sem contar que o art. 42, paragrafo 1º, que remete ao art. 142, parágrafo 3º, inciso 4º da Constituição de 1988, não permite que façam greve os servidores que usam armas e que prestam serviços em instituições organizadas com base na hierarquia e na disciplina.


Para o psicanalista e intelectual socialista Valton Miranda, esses argumentos de desfibramento institucional acabam dispersando o foco da análise. Em seu comentário semanal, feito no dia oito passado, no programa Rádio Livre, da FM Universitária, ele pontuou categoricamente que a greve de policiais só é ilegal do ponto de vista do sistema jurídico-político que está de certo modo a serviço do capitalismo. Olhando do ponto de vista humano e das distorções desse sistema, o pensador reconhece essa greve como absolutamente correta, legítima, séria e, por isso, deve ser apoiada por toda pessoa que examine honestamente a situação.


Como tenho muito apreço pelo Valton e admiração por sua qualidade reflexiva, esforcei-me para calibrar o nosso raciocínio, mas não consegui. Não há dúvida de que os servidores de segurança pública devem ganhar salários condizentes com a importância e o risco de suas funções. Mais do que isso, não há dúvida de que para termos uma polícia mais bem preparada, é preciso que haja melhores treinamentos e equipamentos mais adequados ao trabalho do policial, acrescentando-se a isso o acesso a melhores condições de educação, saúde, cultura e lazer para si, seus filhos e familiares.

O que não consigo imaginar é como um movimento que não parece ter consistência para propor algo que possa substituir o estabelecido, deve ser encarado como agente de transformação revolucionária. O fato de ter força para promover uma desestabilização das instituições e de intensificar a insegurança social, não significa por si uma propensão política razoável. Talvez a oportunidade aberta por esse entrevero de policiais em conflito com a lei, além de colocar na pauta do País uma atenção especial aos recursos necessários para a polícia cumprir a sua função, possa ensejar considerações sobre o que tudo isso tem a ver com as tentativas de reestruturação do crime organizado e com os interesses políticos de desestabilização dos avanços democráticos vigentes.


Em tempo decorrido, no último meio século, já temos mais anos de experiência de reconstrução democrática do que tivemos de ditadura militar. Na ditadura, passamos por um quadro de violência institucional, que não devemos esquecer, mas ao qual também não devemos ficar atados. Saímos de uma situação na qual o Estado era o agente ativo do temor e não há razão para entrarmos em outra que o Estado seja omisso diante de qualquer proliferação de medo. O Brasil não está precisando de uma primavera à moda egípcia. Não temos ditadura a derrubar nem queremos correr o risco de preparar terreno para uma junta militar assumir o governo. Definitivamente a Praça Tahrir não é aqui!


Cabe à sociedade e aos governos trabalhar para que haja a descontinuidade da malfadada construção da realidade da insegurança em curso no Brasil, criando as condições para a instalação da realidade do bem-estar de segurança e cuidando apenas de inibir os delitos próprios de qualquer vida em sociedade. O bem-estar de segurança tem sido pouco focado nas políticas públicas brasileiras. As prioridades estão quase sempre voltadas para o mal-estar de insegurança, com soluções de violência que alimenta violência, como é o caso da simples multiplicação de presídios.


O bem-estar de segurança passa pela capacidade do Estado de assegurar a proteção social, pela disposição da população em negar a midiatização indiscriminada da violência, por regulações mais transparentes no mercado de segurança privada, pelo estímulo ao convívio nos espaços públicos e pela valorização de uma cultura cidadã, que possibilite à população o discernimento entre o que é delito comum e o que é crime organizado. A aversão ao crime institucionalizado se iguala no sentimento da maioria das pessoas, naquilo que cada uma tem de mais primitivo, fazendo com que a insegurança encontre eco nos cafundós do nosso instinto de sobrevivência.


Em uma palestra sobre "Sustentabilidade Social", que fiz na Academia de Polícia General Edgar Facó, para comandantes militares de diversos estados brasileiros, dentro do Curso Superior de Polícia (Turma de 2005), vários oficiais ressaltaram o quanto a ação e a imagem da polícia são prejudicados pela banalização da violência. Como a minha abordagem tinha por base os desafios da humanização da polícia na democracia, acrescentei que, além de passar a rejeitar a violência como mercadoria, a sociedade e os governos deveriam trabalhar na integração dos servidores públicos de segurança à vida social e cultural, de modo a desenvolver um sentimento recíproco de superação do estigma da corporação policial, como um mero aparelho de repressão popular a serviço de quem controla o Estado.


Vivemos um fenômeno típico de escalonagem do temor pela generalização do delito. É como se a probabilidade de poder ocorrer com qualquer um, fizesse com que qualquer um passasse a cuidar apenas de si como pode. Socialmente esse é o pior dos mundos, pois a migração irrefletida do enredo da violência para o campo da moral, da cultura, da religião e da política, tem características fraticidas. É bem provável que o estado de insegurança aumentado pela paralisação de policiais faça parte do nosso aprendizado democrático. Não sei. O certo é que ele se mostra grave, quase sociopatológico, e precisa ser tratado com diálogo e ações condizentes com o seu grau de vulnerabilidade.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A reputação da Justiça - 09/02/2012 - Diário do Nordeste


A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pela manutenção do poder do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de investigar juízes suspeitos de práticas irregulares, contrariando movimentações de tribunais estaduais, na apertada votação de seis a cinco, realizada na quinta-feira passada (2/2) em Brasília, mais do que uma sentença de foro interno da magistratura, foi uma manifestação em favor reputação da própria justiça.


Quem quer que observe esse fato de fora do contexto da evolução da democracia no Brasil, pode pensar que a crise que se estabeleceu no Judiciário terá sido apenas um grave impasse institucional, decorrente das investidas corporativas contra a autonomia do CNJ. Entretanto, o que se espera que seja salvo dos escombros desse conflito e seus traumatismos éticos é a restauração da imagem da justiça por parte dos magistrados que honram a toga.


Em meios forenses, o mal-estar com relação a uma instituição responsável pelo controle externo do Poder Judiciário vem acontecendo desde 2005, quando o CNJ entrou em operação, contando com a participação de representantes do Poder Legislativo, do Ministério Público e da sociedade civil. As associações de juízes e magistrados beneficiados de algum modo pela opacidade do Judiciário vinham travando uma guerra de ações em busca do conforto do isolamento.


Felizmente e finalmente, o STF deu um basta nessa vergonhosa postura de juízes quererem continuar controlando a si mesmos, no âmbito das corregedorias, onde podem exercer influência direta. A situação tinha chegado a pontos extremos e estava ameaçando a integridade da Corte constitucional brasileira. O que seria apenas um embate entre juízes voltados para interesses de categoria e juízes com interesses republicanos, tornara-se crítica para a credibilidade da justiça.


Denúncias de improbidade, desmandos, simulação investigativa, ganhos exorbitantes e nem sempre comprovados, nepotismo, movimentações financeiras fraudulentas, regalias e privilégios excessivos e muitas vezes inadequados ao código de conduta da profissão, de atos de corrupção, de promiscuidade, vendas de sentenças e de outros tantos comportamentos desviantes tornaram-se públicas, passando a corroer as bases da credibilidade de um Poder conhecido por seu hermetismo e impermeabilidade. E isso não é coisa nova; o que há de novo é a revelação.


Daí, o que seria um choque de teses entre magistrados, virou dilema do papel da justiça; tendo de um lado o conservadorismo fechado e, por vezes, nebuloso dos tribunais, e, do outro, o amadurecimento da sociedade civil em suas expectativas cidadãs de transparência, à medida que avança na consolidação do nosso Estado democrático de Direito. Embora malvisto pela morosidade dos processos nos tribunais, o Judiciário, dos três Poderes, ainda é aquele em que a população deposita mais confiança.

A decisão do STF leva à opinião pública um sinal de respeito e abre espaço para a construção de uma nova magistratura, mais sintonizada com as transformações políticas e sociais em curso no Brasil. Quantos dos cerca de quinze mil juízes existentes no País (dos quais, ao que se sabe, há cerca de quinze por cento sob investigação) valorizarão essa mensagem do Supremo é uma pergunta que fica para ser respondida no futuro. Uma coisa, porém, é certa: a crise serviu para a sociedade ficar mais vigilante, mais desperta e a ilibação dos responsáveis pela interpretação das leis, tornou-se um valor que ganha variados contornos em diferentes fóruns de debates.


A punição de maus juízes e magistrados, por parte do CNJ, contribui para o fortalecimento da credibilidade do Judiciário, pois dá o conforto mínimo à sociedade de que critérios mais coerentes com a virtude arbitrária da melhor consciência estão estabelecidos; não ficando no ar aquela desconfiança de quando a apuração e a punição de algum desvio é feita entre pares. Ao parar com isso, o STF fortaleceu moralmente a si, politicamente o CNJ e o conjunto dos tribunais do País, contribuindo assim para consolidar ganhos institucionais muito valiosos.


Faz bem lembrar que a criação do CNJ, como tudo no mundo do Direito, não nasceu de mero acaso. O Conselho Nacional de Justiça, como órgão de fiscalização externa do Poder Judiciário foi previsto na Constituição Cidadã de 1988 (art.92), levou mais de dezesseis anos para ser implementado (Emenda nº 45/2004) e mais outros sete anos sob ataque de corporações de juízes para, no fim das contas, se firmar na apertada decisão do Supremo, como uma desejada e indispensável instância de zelo pela justiça no País, com foco no controle administrativo e financeiro, na legalidade e na eliminação de benefícios imorais de magistrados e no cumprimento das suas responsabilidades.


A abrangência da ação do CNJ engloba todo o Judiciário, desde ministros e desembargadores, indo até o mais simples dos juízes. A qualidade democrática desse Poder ganha com isso porque faz parte do nosso aperfeiçoamento democrático como um todo. A matéria de capa "Justiça? Que Justiça?", da revista Carta Capital desta semana sugere que a decisão do STF não passa de uma ação para "melhorar um pouco a própria imagem e de toda a turma da toga" (LÍRIO, Sérgio, "O Judiciário na Penumbra", p. 20, São Paulo, 8/2/2012). E não poupa o que chama de limites impostos ao Conselho: "O CNJ é um arremedo do projeto original. Por manobras corporativas, o que era para ser um órgão de controle externo virou um conselho interno submetido ao STF (...) ele não tem poder de avaliar as decisões e os comportamentos de ministros da mais alta Corte" (idem).


A minha compreensão do que se passa no sistema judicial brasileiro não segue qualquer inclinação absoluta; se bem que é sempre prudente não esquecer do nosso passivo secular de equidade. Procuro observar o problema e a solução encontrada, não pela má fama de juízes e desembargadores envolvidos em atitudes condenáveis ou pelo fato de haver divergências num colegiado de ministros, mas pelo que a decisão representa de deslocamento progressivo da cidadania no processo democrático brasileiro. Tudo isso, repito, faz parte de uma construção social modelada por esforços de positivação coletiva que encorpam com fatos como a decisão do Supremo pela manutenção das competências essenciais do CNJ.


O chega-pra-lá na tentativa de influência de grupos de interesses de classe, colocados acima dos interesses da sociedade e da justiça, revelado em tribunais protetores de seus próprios membros, é fundamental para a boa imagem da justiça em um País ainda tão cheio de desigualdades e injustiças. Com a reabilitação do CNJ a sociedade sente-se mais segura, por ter um canal de acesso à justiça, por meio do qual possa reclamar e denunciar o comportamento dos servidores públicos do Poder Judiciário. As ouvidorias do Conselho cumprem esse papel.


O CNJ, agora definitivamente reconhecido e referendado pelo Supremo Tribunal Federal (em tese, desnecessário), amplia sua força para apurar, investigar e abrir processos contra juízes e desembargadores de conduta duvidosa, contribuindo para recompor os estragos feitos na imagem da justiça, ao passo que for capaz de produzir consequências favoráveis aos interesses da sociedade. E se os mais empenhados homens e mulheres da lei quiserem, dá para fazer; vide a atuação dos juizados especiais e das defensorias públicas nos mais variados estratos sociais.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Cavalgadas em Timote - 02/02/2012 - Diário do Nordeste

Nos nossos planos de férias para o mês de janeiro que passou estava uma cavalgada por algum lugar do interior uruguaio. Pesquisamos na internet e encontramos várias ofertas de equitação, em pacotes de turismo rural. Quando abrimos a página da estância San Pedro de Timote, tivemos empatia à primeira vista. A arquitetura, os jardins... Sei lá, aquele rancho, que foi propriedade dos jesuítas no século XVIII, perdido no meio do nada, nos atraiu. E fomos para lá.


Tomamos a rota 5, mais distante, porém de excelente pavimentação e duas vias em cada sentido, e seguimos de Montevidéu rumo ao centro-sul do país. Fomos entrando na paisagem mais típica do Uruguai, com amplas plantações e pastagens. Abrimos os vidros do carro para sentir o vento fresco que equilibrava aquele dia de sol, quando fomos surpreendidos por algumas abelhas perdidas do enxame e uma delas picou o ombro do nosso filho Lucas. Uma inflamaçãozinha, uma camada de Caladryl e tudo certo, mas, por precaução, fechamos os vidros e ligamos o ar.


Rapidamente fizemos os cem quilômetros que levam à agradável cidade de Florida, com seu parque de muitas árvores e um banho maravilhoso no rio Santa Lucía. Tomamos uma estrada secundária e pouco mais de setenta quilômetros depois chegamos ao povoado de Cerro Colorado. Impressiona logo na chegada um campanário de 36 metros de altura bem no meio do lugarejo. Com torre construída em 1954, esse campanário, fabricado na Holanda, em 1960, tem 23 sinos que, combinados com um relógio, lançam regularmente melodias ao vento por todo o dia.


Em um primeiro instante, aquela torre de sinos tão grande, incrustada em um lugar tão pequeno, foge um pouco ao nosso encadeamento lógico. Todavia, quando o povo do lugar conta que, exceto os comerciantes que se estabeleceram depois, todo mundo por ali era morador de estância, que foi incentivado a deixar as propriedades em que trabalhava, começa-se a entender o motivo de tamanha atração. A região possui várias fazendas centenárias, dentre elas a San Pedro de Timote, declarada Monumento Histórico do Uruguai.


De Cerro Colorado para San Pedro, tomamos uma estradinha carroçável de quatorze quilômetros, em corredor verde. Chegamos para o almoço e, como não poderia deixar de ser, o restaurante serviu uma parrilhada (churrasco) muito saborosa. Antes, porém, resolvemos caminhar um pouco pelo pátio e pelas instalações da estância, com suas árvores frondosas, suas flores vivas e seus bancos de azulejos espanhóis. Dividimo-nos em dois quartos, o que era o cômodo do casal proprietário do rancho, e o das suas filhas, onde até meados do século passado aconteciam as oficinas de bordado para as moças do lugar.

Naquele mesmo dia fizemos uma pequena cavalgada, para aquecer o desejo. Nos três dias que passamos em San Pedro de Timote, cavalgamos quatro vezes, conhecendo cantos que não seriam facilmente acessados por outro meio, que não à cavalo. De pequenas em pequenas trotadas fomos usufruindo de uma paisagem que nos dá a sensação de estarmos distantes da pressa e de qualquer pressão de rotina. E o que reforça isso é que nesses passeios só se ouvem os passos dos cavalos, o vento e o canto dos pássaros.



Os pássaros são mais notados naquele mundo de calmaria. O que achei formidável foi identificar uma quantidade enorme de aves que existem aqui no Ceará. Os casais de João-de-barro (hornero), que têm ninhos até nos postes de transmissão de energia, animam as copas das árvores cantando em duo, e os cabeça-vermelha (cardenal) levantam a crista ao notar nossa aproximação, enquanto o sabiá-laranjeira (zorzal) canta melodiosamente, como se tivesse acabado de inventar o mundo.


Cavalgando pelas coxilhas (cuchillas), que são pequenas colinas em campos cobertos de pastagens; e por entre blocos de árvores, preservados com o intuito de servirem de barreiras à doenças dos animais; pelas plantações de árvores destinadas à produção de madeira; e pelas matas ciliares, mantidas para protegerem os cursos das águas, é fácil ser surpreendido pelo levantamento de voo ruidoso das codornas (perdizes), pela caminhada de cabeça erguida dos carcarás (caranchos); e pelos anus-brancos (pirinchos) sempre com um sentinela em galho alto para dar o alerta se for preciso.


A lista do que vimos é grande: tem tetéu (tero), bem-te-vi (benteveo), garça (garza), golinha (gargantillo) e até bacurau (dormilón) zanzando pelos eucaliptos no crepúsculo. Foi lindo em uma das vezes que cavalgamos pradarias adentro e vimos dois bandos de emas (ñandu) com filhotes, correndo no meio do capim. Na vegetação do riacho (arroio) Timote, que dá nome ao lugar, cruzamos um ambiente sonoro de coros continuados de cigarras louvando a luz.


A presença de pássaros conhecidos é também muito grande na área interna. O periquito-maracanã (loro maracaná) domina a festa em ruidosos grupos no alto das árvores. Uma boa quantidade de pica-paus (carpinteros) se diverte nos troncos das árvores, provavelmente comendo cupim. Pertinho do chão, nas flores mais fogosas, beija-flores (picaflores verdes) encantam os jardins. O verde entra pelas portas e janelas de vidro e as crianças brincam no pátio como se fossem pássaros, em risos e trilos, grasnidos e gritos...

Em San Pedro, as horas passam, mas nem parece que chegaram, porque ali, o tempo apenas muda de roupa com as luzes e as sombras de um recanto e sua poética de permanência. No tronco de uma desengonçada anacahuita, árvore muito popular no país, encontramos a marca das horas inesquecíveis, nos versos do Dr. Alberto Gallinal, o "tio Coco", que falam de um inocente jogo de amor com sua mulher Elvira, com suspiros prolongados e olhos que dizem tudo, em uma tarde, "linda tarde", teima quase calada a voz de Coco, enquanto "Vira" responde "muito linda" em "quatro olhos que se baixam".

A estância dos Gallinal, com sua rica história integrante do mundo agropecuário e político do Uruguai, funciona como hotel de campo desde 1997. Pertence atualmente a um grupo empresarial espanhol, que mantém uma equipe de profissionais acolhedores, gentis e discretos, que mora em Cerro Colorado. Um desses profissionais é o Beto, um gaúcho de 57 anos, nascido no rancho e que comanda as cavalgadas. Seu nome de batismo é Carlo Ferreira, mas desde menino que responde pelo apelido. Beto ama os cavalos, ama a fazenda. Fala do lugar com a força de quem conhece, embora tenha sido treinado para seguir uma cronologia e isso reduz a sua magia de contador.



Tentei puxar conversa sobre ele mesmo e ele não acreditava que eu pudesse me interessar por suas particularidades. Eu queria saber como tinha sido a infância dele na fazenda e ele me respondia que a capela do rancho tinha um afresco do pintor italo-uruguaio Jorge Damiani. Forcei, forcei e num determinado momento, entre impaciente e bem-humorado, ele passou a mão na cabeça, virou para mim, e disse: "Periodistas! Periodistas! Los periodistas son muy persistentes!".


Reclamou, mas dentre outras coisas contou que gostava de cuidar do gado e das ovelhas, que brincava de esconde-esconde, que gostava de brigar e que ainda hoje é fã do Pelé, "el más grande del mundo".


Depois das cavalgadas, íamos direto ao restaurante comer doce de leite com pão, biscoito, bolacha... mousses, panquecas, crepes e pudim de doce de leite... doce de leite como recheio de tortas, churros, alfajores e empadas... O Artur, não dispensava o sorvete de creme... mas tinha sorvete de doce-de-leite. É o Uruguai e suas delícias, em plena serenidade do campo.