sexta-feira, 29 de julho de 2011

O patrimônio do tempo humano - 28/6/2011 - Diário do Nordeste

O passado é tão imprevisível quanto o futuro. Uma boa descoberta arqueológica pode mudar a compreensão do que fomos e do que somos. Mas as descobertas que alteram as certezas da comunidade científica internacional, quando ocorridas fora do eixo dominante, necessitam de muita perspicácia para ter um lugar ao sol. É o que vem acontecendo há mais de quarenta anos com o trabalho da pesquisadora Niède Guidon, 78, na Serra da Capivara (PI), onde está a maior concentração de sítios arqueológicos e o maior acervo de pinturas rupestres das Américas.

A comprovação de vestígios humanos no interior do Piauí há pelo menos 100 mil anos contribui para a desconstrução da teoria mais comum de que o homem teria chegado ao continente até 30 mil anos atrás, em migrações pelo estreito de Bering, nas últimas glaciações. Aliás, o olhar inquieto de Niède já está atento à possibilidade de ter sido o Homo erectus, e não o Homo sapiens, o hominídeo que primeiro migrou da África para o resto do mundo, evoluindo conforme as condições regionais. E isso é conta para centenas e até milhares de anos.

Admiro o trabalho, a coragem, a garra e a firmeza de Niède Guidon porque ela não se intimida com pressões retrógradas e age dentro do tempo do humano construindo com sua equipe uma obra concreta, que pode ser vista de perto, como a preservação e a potencialização do acervo natural e cultural do Parque Nacional da Serra da Capivara. Em área com mais de 129 mil hectares, reconhecida há 20 anos pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, o parque foi estruturado e é administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), da qual ela é presidente.

Mesmo contando com o apoio possível do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e com patrocínios da Petrobrás, a Fumdham passa por constantes problemas financeiros e enfrenta a lentidão do poder público em casos como o da demorada construção do aeroporto de São Raimundo Nonato, que facilitará o acesso de visitantes nacionais e estrangeiros ao parque, contribuindo para a sua manutenção e para a economia turística e cultural da região sudeste do Piauí.


Afora a venda de ingressos para visitação, o parque conta com iniciativas complementares, como o funcionamento da lojinha de suvenir, abrigada no Centro de Visitantes, e a realização de espetáculos artísticos ocorridos na Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada e em um anfiteatro localizado logo à frente da própria Pedra Furada - cartão postal do parque - onde uma parede de casa de taipa serve de anteparo no fundo de palco composto por um cenário de monumentais encostas de arenito multicor. Dentre as atrações que movimentam os visitantes, destaca-se ainda o Congresso Internacional de Arte Rupestre e, sobretudo, o Museu do Homem Americano, uma estrutura que junta recursos de alta tecnologia digital e achados arqueológicos em um só espaço incrustado no meio da caatinga.

O Parque Nacional da Serra da Capivara foi concebido e opera dentro de uma adequada visão de longo prazo. Parte dos trabalhadores que ocupavam o local antes da desapropriação foi contratada para continuar sendo o que era; ou seja, para seguir morando no local, mantendo a atividade agrícola. A diferença é que essas pessoas, além de terem se tornado guardiãs do parque, passaram a ser responsáveis pela produção e distribuição de alimentos em pontos estratégicos da propriedade, de modo que os animais silvestres não queiram abandonar a área em períodos de estiagem. Outro exemplo incontestável dessa mentalidade de sustentação é a Cerâmica Serra da Capivara, fabricante de variadas peças decoradas com réplicas de imagens pré-históricas. O casal Carmelita e Nivaldo Coelho cedeu suas terras para integrar o parque e em compensação passou a coordenar uma comunidade ceramista, preparada para a produção de artefatos vitrificados de reconhecida qualidade artesanal.

Com a instalação do parque, os sítios arqueológicos receberam os nomes dos camponeses que ajudaram Niède Guidon e sua equipe a localizá-los. Assim, o visitante aprecia as coleções de comunicação gráfica da nossa vida social pré-histórica, deslocando-se, com guia obrigatório, pela toca do Carlindo, do João Arsena, do Brás, do Nilson e do Caldeirão dos Rodrigues, dentre outras denominações. Esse tipo de deferência também contribuiu para reduzir a vulnerabilidade do parque no que diz respeito à proteção contra a invasão de carvoeiros, caçadores de subsistência e de venda ilegal de animais. O que observei na visita que fiz à região neste mês de julho, foi que esse sentimento de pertença pode até não ser ainda unanimidade, mas é comum o senso da importância do Parque Nacional da Serra da Capivara para o desenvolvimento de São Raimundo Nonato e dos municípios do seu entorno.


Localizado na fronteira geológica que separa uma chapada (com seus paredões verticais, desfiladeiros e boqueirões) e um vale (que se estende até o rio São Francisco), o Parque da Serra da Capivara impressiona pelo conjunto de formações sedimentares, modeladas ao longo de milênios pela força das águas e dos ventos. Uma região que há dez mil anos tinha clima tropical-úmido, com megafauna composta por preguiça-gigante, tatu-gigante, mastodonte e felino dente-de-sabre, dentre outros animais de grande porte, de existência comprovada pela paleontologia, a partir de fósseis encontrados em velhas lagoas e fendas de pedras. Por ali passaram inúmeros grupos étnicos, que variando temas e técnicas deixaram seus mundos simbólicos fixados em uma evolução estilística, marcada por formas geométricas, grafismos morfológicos e pinturas narrativas.

Ao descrever a beleza desse patrimônio artístico-cultural pré-histórico, a pesquisadora Anne-Marie Pessis, professora da Universidade Federal do Pernambuco, nos instiga a observar esses painéis com um olhar que permita ir além do aparente: "O maior caracterizador do estilo Serra da Capivara é a maneira vital e dinâmica com que foram realizadas as figuras e as cenas representadas. Eclode o movimento, e a encenação transborda de alegria e ludismo. Figuras humanas e animais são mostrados em atividades lúdicas, representadas no ponto máximo de uma ação, saltando, por exemplo, com surpreendente variedade de composições e maneiras de ocupar o espaço" (PESSIS, Imagens da pré-história, p. 113, Fumdham/Petrobras, 2003).

Contemplar essas imagens nos leva a sentir a força do tempo humano e dos múltiplos significados da cotidianidade. Em acesso direto ou pelas passarelas edificadas pela equipe de Niède Guidon para nos aproximar da galeria de imagens fixadas nos paredões da Serra da Capivara podemos ver cenas de adulto brincando de jogar o filho para o alto, pessoas caçando, momentos de sexo individual e grupal, rituais em torno de árvores e outras tantas encenações de dança, luta e performances cerimoniais e de lazer. São escolhas arquetípicas que lembram o modo de vida simples e sublime manifestado nas artes visuais da cultura popular em temas de peças de barro e xilogravura. O patrimônio natural e cultural preservado no Parque Nacional da Serra da Capivara é, portanto, um tesouro geográfico continental e uma relíquia da nossa capacidade de abstração, que guarda o momento em que definimos a matriz da cultura americana.

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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Um passeio pelo sertão de dentro - 21/6/ 2011 - Diário do Nordeste


Da garagem de casa até a garagem de casa, dez dias depois, foram 2.739 quilômetros que rodamos, minha família e eu, em um novo passeio de carro pelo sertão de dentro. Mais do que saber o que está se passando no interior essa andança é uma maneira de fazer terra, de sentir o chão onde a vida acontece. Nesse ritmo, já circulamos pelos nove estados nordestinos. Desta vez aproveitamos o céu ainda nublado e a caatinga ainda esverdeada da longa estação chuvosa de 2011 e, do dia 6 ao 15, transitamos livremente por onde foi dando vontade.

Deixamos Fortaleza pela estrada de Maranguape, evitando parte do trecho precário da BR-020, passamos pelo Museu do Sertão, em Tauá (que vi nascer no sonho do saudoso Joaquim Feitosa) até a primeira parada em Picos. Mais uma vez o bispo Dom Plínio Luz nos recebeu em sua casa com muita gentileza. Tínhamos estado lá há seis anos, quando a Andréa participou do início da construção da Rádio Cultura, uma FM que hoje é líder de audiência na região picoense. Picos é um lugar que impressiona por ter feira livre todos os dias da semana. É uma cidade onde um dos meus doces favoritos, o de buriti, é vendido em montes que parecem cupinzeiros, com uma faca espetada para o freguês tirar o pedaço do tamanho do seu desejo.

De Picos fomos a Oeiras. Ficamos na Pousada do Cônego, bem na bela e expressiva praça da igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar. Batemos um papo agradável com o Sr. Zeno, fundador da fábrica de doces Lili, que fica na cidade de Ipiranga. Da outra ocasião que andamos por aquelas bandas chegamos a visita a fábrica, conhecida por suas compotas de limão, jaca e outras delícias. Ele já não administra mais a fábrica e ocupa o tempo cuidando de um mercadinho em Oeiras. Ficamos de enviar para ele sementes do pé de amora que a minha mãe plantou em Independência e que produz muito bem no sertão. Nossos filhos estão vibrando com a ideia de em mais alguns anos comerem doce de amora da Lili.

De Oeiras, enfrentamos mais de quarenta quilômetros de estrada com capeamento asfáltico deplorável, no sentido de Colônia do Piauí, e daí em diante tudo correu bem. A viagem é encantadora, com acostamentos bordados de capim seco amarelado, separando a estrada da mata de marmeleiro em sua plasticidade outonal. É lindo aquilo lá; tem folhas nas mais fascinantes tonalidades que uma folha pode ter quando em processo de secagem para se desprender dos galhos. A vegetação vira sinônimo de mutação e a paisagem assume o ar de pintura divina.

Em São Raimundo Nonato ficamos no hotel Serra da Capivara. Foi a única reserva feita com antecedência, pois conhecer o Parque Nacional da Serra da Capivara era o único destino certo desse passeio. Há um bom tempo que ele estava na rota da nossa vontade. O nosso filho Artur, de dez anos, traduziu o nosso deslumbramento com aquela obra construída ao longo de quarenta anos pela arqueóloga Niéde Guidon, classificando-o como um dos lugares mais encantadores que já visitamos. E olhe que nessa relação comparativa estão lugares como os Lençóis Maranhenses, Machu Picchu, o mar do Caribe e a Patagônia.

A professora Niéde Guidon nos recebeu de braços abertos em sua residência no Centro Cultural onde se hospedam os pesquisadores e para onde são levadas as peças retiradas das escavações. Ela está indignada com a morosidade na conclusão das obras do aeroporto de São Raimundo Nonato. E com razão. Pela importância do parque e pela demanda de pessoas do mundo inteiro que procuram um significado para as suas viagens, não se justifica o corpo mole que vem sendo feito. Guerreira como tem sido na luta por essa admirável causa Niéde busca uma saída na privatização do aeroporto.

O Brasil, por tudo o que tem conquistado de presença no cenário internacional não tem mais o direito de pensar pequeno. Foi por pensar grande que Niéde Guidon conseguiu a duras penas fazer esse parque chegar aonde chegou. Os exemplos de pensamento grande e da visão de longo prazo dessa respeitada pesquisadora, estão concretizados em trabalhos como o Museu do Homem Americano, que combina peças pré-históricas com alta tecnologia, e a Cerâmica Serra da Capivara, que vende peças desenvolvidas por ceramistas locais para visitantes e para grandes empresas como a Tok & Stok e Pão de Açúcar.

Em sua incansável batalha pela liga entre a pré-história brasileira e o futuro do País, Niéde tem dado ainda uma contribuição na estruturação do Parque da Serra das Confusões, que fica a uma centena de quilômetros de São Raimundo Nonato, com acesso principal pela cidade de Caracol. Fomos lá e, na nossa aventura entre olhos d´água, nichos arqueológicos e uma gruta com exuberante jardim, protegido pela inusitada formação de rochas de arenito, encontramos as pegadas de Niéde e de sua equipe na preservação de sítios como o Alto do Capim e a Toca do Enoque.

De São Raimundo Nonato partimos para Petrolina. Novamente optamos por um percurso alternativo para nos livrarmos das estradas esburacadas. Retornamos por São João do Piauí, aumentando cem quilômetros em um percurso de trezentos, mas chegamos com tranquilidade. Não conhecíamos essa pujante e bem gerida cidade pernambucana. Ficamos surpresos com a limpeza das ruas, os bons hospitais, os bons restaurantes, a urbanização da orla do rio São Francisco e com o crescimento imobiliário e a estrutura de serviços comerciais.

Atravessamos a ponte sobre o Velho Chico e fomos a Juazeiro da Bahia, onde para não dizer que não fizemos nada, visitamos o Museu do São Francisco. Em Petrolina lamentamos apenas a falta de melhores hotéis. Optamos pelo Costa do Rio, seguindo a sugestão de "escolha" do Guia Quatro Rodas, mas a qualidade dessa hospedagem não coincide com a recomendação do guia. Ao deixarmos a cidade fomos conhecer a vinícola ViniBrasil em Lagoa Grande. A plantação em si, irrigada com água do rio São Francisco, a intensidade e o tempo de exposição das videiras ao sol, asseguram aos produtores três safras por ano, o que é um diferencial comparativo de grande valor no mercado de vinhos.

A parada seguinte foi Exu, terra de Luiz Gonzaga. A visita ao Museu do Gonzagão é engrandecedora pelo lado da importância do rei Lua, porém é entristecedora pela precariedade com que aquele patrimônio é mantido. Não deu para demorar muito. Preferimos cruzar logo a Chapada do Araripe e fazer uma visita ao compositor Abidoral Jamacaru, no Crato. Ganhamos o livro/cd "O mistério das treze portas", de Zé Flávio Vieira, e "Segredos da Natureza, cordel ilustrado de Josenir Lacerda e João Nicodemos. À noite fomos ver o show do Abidoral no pavilhão da Universidade Regional do Cariri (Urca), na ExpoCrato.

Hospedamo-nos no hotel Verdes Vales em Juazeiro do Padre Cícero e não gostamos do serviço. As toalhas cheiram mal e o dono do hotel fica no restaurante mudando a programação da tevê sem qualquer respeito aos hóspedes. A notícia boa é que sentimos um ar positivo no meio artístico com a chegada da nova reitora da Urca, professora Otonite Cortez. Na Lira Nordestina, estava todo mundo animado com os sinais que ela vem dando de retomada do papel de editora da mais importante gráfica de cordel e xilogravura da região. E entre uma subida ao Horto e uma conversa de calçada dos nossos filhos com o Seu Lunga, deu para curtirmos um pouco de Juazeiro na acanhada festa do seu centenário. E voltamos para casa conversando sobre essas e outras impressões.

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sexta-feira, 15 de julho de 2011

A república feminina II - 14 / 07/ 2011 - Diário do Nordeste


Diante do esgotamento dos recursos naturais do planeta e da crise de significados a que a humanidade se entregou, só consigo enxergar três opções de destino: (a) seguirmos com a supremacia do pensamento masculino até desaparecermos enquanto experiência humana; (b) esperarmos que as catástrofes naturais promovam uma apavorante redução demográfica, levando-nos a tomar consciência e a agir pelo medo extremo; e (c) alternarmos a matriz predominante do poder para o feminino.

A minha opção é a terceira. O padrão masculino exauriu-se em si mesmo. No livro "As 100 maiores personalidades da história" (Difel, 2001, Rio de Janeiro), o pesquisador estadunidense Michael H. Hart classifica e resenha líderes religiosos, políticos, inventores, escritores, filósofos, exploradores, artistas e inovadores do mundo, que conduziram a vida de milhões de seres humanos e que influenciaram a ascensão e a queda de civilizações. Mas em uma centena de nomes, apenas dois são de mulheres: Isabel I, em 65º lugar, e Elizabeth I em 94ª posição. O que revela uma realidade de determinação masculina.

Nesse emaranhado histórico não podemos esquecer de que homem ou mulher, todos somos seres humanos, com nossas qualidades e defeitos masculinos e femininos. A pesquisadora colombiana Susana Castellanos de Zubiría, em seu livro "Mujeres perversas de la historia" (Norma, 2008, Bogotá) biografa personalidades cujas memórias contradizem a tradicional ideia que relaciona a mulher com a bondade, a ternura, a vida e o amor maternal. Ela mostra, entretanto, que o ícone da mulher malvada está associado a personalidades que inspiraram esse imaginário, mas que boa parte dessa percepção não passa de fantasmas masculinos.

Com ambição política e paixão religiosa, em 25 anos no poder a rainha Isabel I estabeleceu a Inquisição espanhola - condenando milhares de pessoas à fogueira -, expulsou judeus e muçulmanos da Espanha, financiou Cristóvão Colombo e iniciou a destruição dos povos nativos do continente americano. A importância das suas decisões foram relativizadas por Michael Hart porque ela reinou em dobradinha com o marido Fernando de Aragão (p. 372). Já Elizabeth I foi considerada a mais notável das rainhas inglesas, em um reinado de 45 anos, marcado pela prosperidade da pirataria econômica e pela conquista da posição de maior potencia naval do mundo (p. 518).

Exemplos como esses revelam que não deve haver tanta diferença de gênero quando o assunto é mentalidade ardilosa e abuso de poder. Nos relatos que faz de mulheres lendárias, bíblicas, governantes e cortesãs, Susana expõe imagens de ambições, ressentimentos, vinganças e brutalidades por trás de lágrimas, sorrisos e perfumes. Para cada Nero, Calígula, Átila e Hitler há sempre um paralelo de Teodora, Lucrecia, María Tudor e Ilse Koch. Além disso, há as mulheres que, quando governantes, fazem questão de manter a simbologia do masculino, como foi o caso de Santa Irene, conhecida também por ter furado os olhos do filho, herdeiro natural do trono de Constantinopla (797 d.C), e, ao assumir o poder absoluto se fazer canonizar como "a piedosa".

Susane Castellanos ressalta que ao confrontarem os padrões masculinos as mulheres "tendem a ser julgadas mais ferozmente porque a despeito das crueldades que tenham cometido são acusadas de transgredir os limites do seu gênero" (p. 356). Pois é exatamente nesse ponto de transgressão dos limites da capacidade da mulher de governar que se atualiza o discurso masculino que tenta desqualificar o exercício da autoridade pública feminina, liderado pela presidenta Dilma Rousseff no Brasil. O que antes, desde Eva, vinculava o feminino ao mal, passa a associar a mulher à incompetência administrativa.

Mulheres como Indira Gandhi (Índia), Golda Meir (Israel) e Margaret Thatcher (Reino Unido) sofreram na segunda metade do século passado, cada qual a seu modo, por seus motivos e circunstâncias, essa pressão do masculino. Angela Merkel (Alemanha), Cristina Kirchner (Argentina) e Christine Lagarde (FMI) passam por isso na atualidade. Projetam-se muitas vezes sobre os ombros da mulher que assume o poder algumas expectativas fora de cogitação imediata, tal como evitar a volta do nacionalismo tribal alemão, para salvar mercados comuns, frear repentinamente o declínio econômico argentino e fazer milagres financeiros para socorrer gregos e troianos da bolha especulativa em que se meteram.

Pouco se comentam episódios em que a mulher, mesmo em situações de grande precariedade igualitária, conseguiu feitos impensáveis. Na revista História Viva (Duetto, julho de 2011, São Paulo), tem o relato do sequestro de moças pelos pioneiros de Roma, como recurso para garantir a sobrevivência da cidade que é emblemático. A atitude romana, contra os vizinhos latinos e sabinos, resultou em um conflito que só foi resolvido porque "as novas senhoras de Roma se colocaram entre seus maridos e seus pais para negociar a paz" (Anne Logeay, p. 29). Esse exemplo de negociação de paz ilustra bem uma habilidade emocional e política decorrente da necessidade de quem primeiro vivenciou a intimidade de outros mundos.

Embora com abordagem limitada ao ponto de vista francês a revista apresenta um painel de recortes voltado para a noção de como os interesses políticos, econômicos e religiosos definiram o papel dos sexos na sociedade. Mostra por exemplo como a mulher romana, mesmo considerada menor de idade perante a lei, participava de manifestações políticas; como os povos alemães valorizavam a virgindade como garantia da conservação das suas características étnicas; como os movimentos revolucionários franceses do século XVIII passaram a reconhecer o casamento "não como uma união sagrada e indissolúvel, mas como um contrato civil, firmado entre pessoas livres perante a lei e que, portanto, poderia ser rompido pelas partes envolvidas (Alain Pigeard, p. 42).

Quem deu uma grande contribuição para que a mulher não fosse mais engessada ainda aos interesses masculinos foram os camponeses que, diferentemente dos aristocratas do século V e VI não faziam alianças familiares (Jean Verdon, p. 35). A ascensão dos pequenos burgueses encheu a vida dos casais de disciplinas apoiadas em arranjos sociais. E foram os operários que dispensaram a legalidade do casamento para viverem juntos. Ou seja, independentemente de causas e contextos, a mulher foi (e talvez ainda seja) mais livre nas classes populares. Esse é um outro elemento a ser acrescido como experiência feminina de constante reinvenção no jogo da funcionalidade dos sexos que a afastou a mulher dos negócios, para ocupá-la exclusivamente das funções domésticas (Scarlett Beauvalet, p. 39).

Da mesma forma que foram criadas tantas barreiras simbólicas e tantas regras de conduta relativas à imagem da mulher, nunca ninguém pôde proibi-la de sentir e de desejar. Claro que ao ocupar espaços tradicionalmente masculinos ela inseriu a sedução na zona de competição do bélico. Pelas opções de destino postas não há mais como insistir na argumentação de que a virtude é sempre um atributo masculino e que o papel de assegurar a descendência continue sendo a única atribuição feminina. Tudo isso torna a missão de Dilma, Gleisi, Ideli, Miriam e de todas as mulheres que estão em qualquer instância de poder na formação da república feminina do Brasil, um desafio não só com relação à gestão, mas com a afirmação da própria alternativa do poder feminino.


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