quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A autoridade metropolitana - Diário do Nordeste - 25/11/2010

A existência de autoridades metropolitanas vem sendo discutida e praticada de forma relativa em vários centros urbanos (...) Seja como for, está na hora de colocar em pauta a viabilidade ou não de uma autoridade metropolitana

A complexidade dos problemas das regiões metropolitanas é tão grande que às vezes tentar encará-las dá a sensação de que estamos diante de um destino inescapável. É como se vivêssemos em cidades que não existem mais, em aglomerações urbanas, cujos modelos administrativos não mais atendessem às demandas da cidade real.

Será que o crescimento desordenado e desigual dessas regiões não se ajusta mais a estrutura vigente de gestão pública? O que efetivamente deve ser feito para que as metrópoles e suas cidades satélites consigam o equilíbrio dinâmico necessário a um funcionamento aceitável? Como fazer alguma coisa de modo que o caos estabelecido não continue em expansão?

Em que pese a autonomia jurídica das prefeituras, a trama territorial reciprocamente cruzada entre os municípios, sem uma preocupação estratégica com o bem comum do todo, exige uma revisão constitucional que crie as condições institucionais para o funcionamento de uma autoridade metropolitana, com orçamento próprio e metas transmunicipais claramente definidas.

A existência de autoridades metropolitanas vem sendo discutida e praticada de forma relativa em vários centros urbanos, tais como Nova Iorque, Londres, Bogotá, Curitiba, Belo Horizonte, Madri e Barcelona. Soluções voltadas para o tráfego envolvendo diferentes modalidades de transporte e flexibilizações tarifarias, combinadas com ações que priorizam a locomoção em transportes coletivos e ciclovias, demonstram que são bem-vindas, mas insuficientes.

A existência de alguns instrumentos jurídicos, como a Lei Federal 11.107/2005, que "dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos", são igualmente importantes, mas também não o bastante. Até permitem a constituição de associações de entes federativos com uma certa independência para receber contribuições e subvenções econômicas de outras entidades e órgãos governamentais, porém não possibilitam uma adequada autonomia política, administrativa e financeira.

Para ter força de planejamento e gestão de sistemas integrados nas grandes cidades e suas regiões metropolitanas, a saída parece ser mesmo pela via da autoridade metropolitana. O ideal seria que juntamente com a reforma política se fizesse uma reforma das regiões metropolitanas. Algo que pudesse abranger não somente as áreas urbanas estranguladas, mas que considerasse os entroncamentos de consumo, as cidades-polo culturais, religiosas e econômicas, em torno das quais gravitam dezenas de municípios.

Basta ver as fotos noturnas dos satélites para identificar pela nebulosa de luzes onde estão essas aglomerações constituídas por ajuntamentos de municípios. A saturação desses territórios decorre de um modelo insustentável de ocupação urbana, baseada no inchaço das cidades e esvaziamento do campo. Se o problema é de modelo, temos que pensar em alternativas a esse modelo. E isso pode significar em mexidas no pacto federativo, o que torna o assunto ainda mais sensível, necessário e urgente.

Fiz um rápido exercício para tentar visualizar quais seriam os pontos mais críticos de uma gestão metropolitana integrada. Na minha visão, encontrei cinco dimensões de indiscutível transversalidade: 1) a dimensão das "vivências e convivências culturais"; 2) a "relação com o meio ambiente"; 3) o "bem-estar de segurança pública"; 4) a "mobilidade espontânea"; e 5) a dimensão das "condições básicas de vida e desenvolvimento".

Procurei escapar das abordagens setoriais e dos determinismos econômicos como norteadores das políticas públicas, quando o tema é fazer valer a integração e a potencialização individual e sistêmica das metrópoles e seus municípios periféricos. Passando de um escopo setorial para um olhar de movimentações essenciais e saindo do foco em coisas para enxergar pessoas, pude notar com mais nitidez o quanto é possível sair do parâmetro do crescimento a qualquer custo para o de convivência decente da coletividade.

Então, pensei nas "vivências e convivências culturais" como o estabelecimento de um fundo de pertencimento comum em realidades sociológicas distintas. O uso dos logradouros públicos e dos espaços privados para a circulação permanente de manifestações artísticas, para a difusão do patrimônio histórico e para atividades de lazer são exemplos de oportunidades para novas opções de vida. De igual maneira, pensei no estreitamento da "relação com o meio ambiente", por meio da revitalização das praças e dos parques, do cuidado com a sombra, da valorização do paisagismo, da redução sistemática de poluentes, da reciclagem do lixo e o estímulo à priorização das energias limpas.

O "bem-estar de segurança pública" estaria para a autoridade metropolitana como um compromisso de evitar aberrações anunciadas como a consolidação do tráfico de drogas, o confinamento da infância sem-rua, das fobias sociais e religiosas, do assalto ao voto nos períodos eleitorais, enfim, da chamada violência urbana como um todo, sobretudo com relação a impunidade a indivíduos que se divertem com a miséria dos outros. Ao lado dessa dimensão está a "mobilidade espontânea", o direito de ir e vir sem ser tangido por qualquer tipo de especulação. A acessibilidade, a desobstrução de passagens reservadas, a liberação das calçadas, o direito de andar de bicicleta e as políticas de inibição do uso do automóvel.

A quinta dimensão que imaginei como recurso de ilustração do meu pensamento a respeito da necessidade de institucionalização de uma autoridade metropolitana é o que intitulei de "condições básicas de vida e desenvolvimento". Aqui se coadunam desde as políticas de proteção social até as de ampliação da produtividade econômica. Saúde, saneamento, farmacopeia, habitação, respeito à cultura da infância e todas as práticas sociais e econômicas que nos dicionários podem ser sintetizadas na palavra habitat, no que o termo diz com relação às circunstâncias físicas e geográficas que oferecem condições favoráveis à cidadã e ao cidadão sentirem-se em seu ambiente ideal.

Tomando como referência o caos que se tornou Fortaleza em si e em sua falta de conectividade com os municípios do seu entorno, vê-se que é inadmissível continuar fazendo de conta que a situação não é grave. O problema tomou proporções tão agigantadas que a questão da competência ou incompetência dos gestores parece não bastar para justificá-lo. Fortaleza, uma cidade cuja região metropolitana tem quase a metade da população do Ceará, não pode ser administrada como se fosse apenas uma grande cidade interiorana. Sem um compartilhamento estruturado, dificilmente superaremos o quadro de ineficiência que caracteriza a nossa realidade conurbana.

A autoridade metropolitana poderia ser constituída por um Conselho de Gestão Estratégica, composto pelo governador, pelos prefeitos da região metropolitana e pelo presidente do que seria uma Câmara Legislativa Metropolitana, instância que poderia muito bem dispensar as atuais e controversas câmaras municipais dessas cidades. A organização política de cada local seria assumida pelas entidades da sociedade civil, tornando o sistema um misto de democracia representativa com democracia participativa.

Além desse conselho, a autoridade metropolitana dessa minha idealização exemplificativa, teria ainda um Comitê Executivo, de caráter eminentemente técnico e operacional. Teria orçamento próprio e nessas cinco dimensões ou em outras melhor formuladas agiria com efetividade pela força institucional de atuação sistêmica. Seja como for, está na hora de colocar em pauta a viabilidade ou não de uma autoridade metropolitana.



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A música na educação - Diário do Nordeste - 18/11/2010

A rigor, todos somos música. Não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música e os que ouvem (...) Por ser bem distribuída em todas as áreas do cérebro a música tem importância inquestionável em nossas vidas

O ano que vem será um ano muito importante para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica (Infantil e Fundamental) nas escolas brasileiras. Os sistemas de ensino do País têm até agosto de 2011 para se adaptarem a obrigatoriedade do exercício da música nas escolas, conforme determinado no texto da lei federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008.

A criação de condições para a formação artística, voltada para a cognição, a sensibilidade e a socialização estudantil, coaduna-se com as ações de reflorestamento cultural que vêm sendo implementadas pelo Ministério da Cultura em todo o País. A opção pela experiência envolvente da música é fundamental como componente intrínseco do cotidiano a um processo educativo inspirado na diversidade da cultura brasileira.

Em toda a história da humanidade a música esteve presente de alguma forma. Mesmo em épocas pré-linguísticas são evidentes os sinais da música como parte do dia a dia das pessoas e das comunidades. É comum vermos nas escavações arqueológicas a descoberta de instrumentos musicais que atestam a capacidade dos nossos ancestrais de lidar com padrões sonoros complexos.

A rigor, todos somos música. Alguns aprendem teoria musical ou a tocar instrumentos, mas não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música, os que cantam, os que tocam e os que ouvem, dançam, cantarolam e sentem sua presença no corpo e na mente. O que há, pode-se dizer, são pessoas inibidas de praticar suas habilidades musicais e pessoas que, ao se refinarem, refinam a música, merecendo assim manejo especial de madeira de lei na biodiversidade cultural.

O ato de cantar é mais natural do que falar. Para falar nós precisamos necessariamente usar um código reconhecido de comunicação, quer saibamos escrevê-lo ou não. Entretanto, para cantar basta deixar os sentimentos fluírem, agudo como o agudo dos pássaros e graves como o tom grave dos mamíferos. Em linhas gerais, inventar a canção foi mais simples do que inventar a fala. Contudo, fixar uma ou outra por meio de sinais adequados de transmissão talvez tenha grau semelhante de dificuldade e prazer.

Desde criança que gosto de inventar música. Com o saudoso amigo Pandé, fizemos o hino do nosso time de futebol; com o amigo Félix, costumava musicar romances de cordel. Fazia isso como uma movimentação espontânea da vontade, seguindo uma característica da musicalidade das sociedades nativas e africanas que se fundiram com o canto nômade dos aventureiros que povoaram o sertão. Dos aboios às cantigas de campo, a cognição musical está presente em minha vida por sincronia histórica do lugar onde nasci.

Na busca incessante de entender como pensamentos, sentimentos, esperanças, desejos e manifestações estéticas se originam, muitos estudiosos atribuem à música o poder de desencadeá-los. No livro "A música no seu cérebro" (Civilização Brasileira, RJ, 2010), o músico e neurocientista canadense Daniel J. Levitin, afirma que "a música pode ser a atividade que preparou nossos antepassados pré-humanos para a comunicação, por meio da fala, e para a flexibilidade eminentemente representativa e cognitiva necessária para que nos tornássemos humanos" (p. 294).

Afirmações como essa respaldam a decisão do Ministério da Educação e reforçam a ideia de que a música na escola não deve ter como objetivo preparar instrumentistas e cantores, nem transmitir gosto. Nada impede, porém, que essa prática estimule o talento daqueles inclinados a serem refinadores. Minha expectativa é que essa política abra espaço para que o estudante marque um encontro de caráter sugestivo com o que há de mais vibrante e desejante na essência humana.

Sempre tive comigo a sensação de que o modelo mental de um povo pode ser compreendido a partir da sua música. Uma mente germânica tem a sofisticação da música de Bach, Wagner e Beethoven, dentre outros compositores excepcionais, e os limites de conservadorismo que essa sofisticação impõe. Uma mente brasileira vive a se reinventar à flor dos neurônios, mas em geral ainda se desconhece no requinte das obras dos seus refinadores mais geniais como Villa-Lobos, Severino Araújo e Elomar Figueira de Melo.

A entrega do patrimônio musical brasileiro ao bel-prazer do mercado fonográfico, especialmente nos anos de neoliberalismo, causou danos extremamente graves no tocante à contribuição da música na atualização do desenho do nosso modelo mental. Por ser distribuída em todo o cérebro, e não apenas no hemisfério direito como se acreditava antigamente, a música tem importância inquestionável em nossas vidas. "O ato de ouvir, tocar e compor música mobiliza quase todas as áreas do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os subsistemas neurais" (LEVITIN, 2010, p.15).

Venho há uma década fazendo a experiência de associação da música à literatura, dentro da convicção de que ler e cantar é receber do jogo dos sons e das palavras a oportunidade de produzir visões. No livro/cd "Flor de Maravilha", combinei vinte histórias e vinte músicas; no livro/cd "Benedito Bacurau", experimentei o uso de vinhetas intercalando onze textos de literatura recitada; no livro/cd "A Festa do Saci", a música principal surge na história em uma composição coletiva dos personagens; e no livro/cd "A casa do meu melhor amigo", que lançarei no próximo dia cinco de dezembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, a música acontece inseparavelmente ligada ao contexto de cada um dos dez capítulos.

O que tenho aprendido com as respostas dos leitores a essa prática é que a liga da literatura com a música potencializa as emoções, não no sentido de orientar os sentimentos como ocorre com as trilhas sonoras no cinema, mas de dar mais volume às palavras, expandindo a noção de realidade no espaço de liberdade de interpretação que é disponibilizado ao leitor no campo que rebenta entre o que está escrito e que está cantado. Integrar a música ao fluxo de informações sensoriais faz bem à imagística da mente na sua construção de significados.

O processo cognitivo tem muita relação com as frequências vibratórias dos sons dos fonemas e das notas musicais. A vivência simultaneamente literária e musical aciona a consciência que temos das coisas para que possamos nos abrir às representações organizadas pelo ensino. Existem conteúdos que só encontram eco em nossa compreensão quando refletem nossos enunciados de sentimentos e emoções. Assim, o estudante pode se destravar da racionalidade para jogar com os pensamentos e seu próprio jeito de sentir o mundo.

No fenômeno perceptivo é muito importante que haja nodos de gratificação como inspiradores de estado de ânimo. Um dos grandes desafios da educação na atualidade é a busca de alternativas à aprendizagem que não desperta interesse por não ter a flexibilidade de estar no nível de habilidade de cada estudante. A minha experiência com o livro/cd, no qual a partitura integra o estatuto das ilustrações, tem demonstrado que a integração de linguagens multiplica as dimensões de trânsito da imaginação e da compreensão.

Os estudos de Daniel Levitin dizem que ouvir música aprimora os circuitos neurais, ajudando a preparar a inteligência para os desafios da linguagem e da interação social. Dentro de uma perspectiva cultural e educacional, o exercício do músculo da imaginação e da cognição, proporcionado pela reincorporação da música ao cotidiano escolar, é fundamental na reinvenção do Brasil



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Preconceito e literatura - Diário do Nordeste - 11/11/2010

Qualquer educador sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições da relação entre a Emília e a Tia Nastácia (...) No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.


Como se não bastassem as travas contra a imaginação que uma certa categoria de livros paradidáticos vem causando às crianças, agora chega o Conselho Nacional de Educação (CNE) para extremar o politicamente correto com um parecer que recomenda a suspensão de Monteiro Lobato dos ambientes escolares.

A alegação é que a literatura do autor do Sítio do Picapau Amarelo, sobretudo o livro "Caçadas de Pedrinho" apresenta expressões preconceituosas com as quais a baixa qualidade dos professores brasileiros não estaria preparada para lidar.

A junção certamente irrefletida da pobreza analítica do tema com o tratamento desrespeitoso dado às pessoas que ensinam neste País, para poder justificar o afastamento da obra de Lobato das bibliotecas e salas de aula, reflete a vulnerabilidade da clareza conceitual que ronda o âmbito das nossas políticas públicas para uma educação antirracista.

Qualquer educador com o mínimo de sensibilidade sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições explicitadas em situações conflituosas como as que regem a relação da boneca Emília com a Tia Nastácia, que é a sua mãe de confecção.

No anseio de corrigir uma irracionalidade de cunho étnico, modelada em três séculos de escravidão do Brasil colonial, os promotores da igualdade racial extrapolam muitas vezes os limites da razoabilidade. Atacar um clássico da literatura, como se houvesse um dolo, uma intenção de ofensa em suas palavras, transforma o ativista em déspota.

Dessa forma, mais do que o sentido específico do parecer do CNE, o que chama a atenção e preocupa é o fenômeno do destempero incutido nesse ato de exceção que atinge a mais livre das expressões estéticas, que é a literatura.

Esse tipo de movimentação, que faz parte de um pacote de atitudes segregacionistas importadas dos movimentos sociais estadunidenses, onde o racismo é institucionalizado, aponta para o risco de engessamento da pedagogia em nome da idealização de um comportamento destituído de preconceitos entre os seus diferentes grupos sociais.

O ataque às obras do Sítio demonstra que essa reconstrução ideológica, que em um primeiro momento parece utópica, tende mesmo a degringolar para a distopia, para o pesadelo da apartação lastreado em um processo discursivo incoerente.

Por sorte o fato envolveu a figura do escritor Monteiro Lobato, que já está calejada de sofrer esse tipo de ataque, pelos mais distintos motivos, embora sempre com um incômodo comum: sua literatura infanto-juvenil desacomoda por ser autêntica, sincera e transformadora.

Esses atributos são insuportáveis para quem arvora do status de detentor da moral da vez. Foi assim quando o Visconde de Sabugosa descobriu petróleo no quintal da Dona Benta, o que contrariou o monopólio da indústria petrolífera estrangeira, e pode estar sendo assim, caso por trás dessa tentativa de banimento escolar do célebre autor brasileiro, haja o dedo das multinacionais que avançam no mercado editorial no País.

Não custa nada desconfiar. Afinal, a história da queima de livros, inclusive os de Lobato, tem sua gênese em solo político e comercial. A professora e pesquisadora mineira Angelina Castro, autora do livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, 2010), traz à memória vária das razões que levaram à retirada das obras do Sítio das escolas, entre elas as cenas de antropofagia em "Hans Staden" e o questionamento do descobrimento do Brasil em "História do mundo para as crianças". Curiosamente, as perseguições anteriores ao livro "Caçadas de Pedrinho" foram feitas por incômodo à crítica que a obra faz à política e aos processos burocráticos brasileiros.

Enquanto de um lado o parecer do CNE orienta que "Caçadas de Pedrinho" "só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil" (Parecer 015/2010, pág. 2), o que no dito popular seria como recomendar a morte imediata da vaca para acabar com os carrapatos, Angelina é de opinião que a polêmica atual sirva exatamente para pôr de lado essa noção preconceituosa contra a liberdade literária e abra caminhos para que uma reforma cognitiva propicie o espírito observador e crítico de que tanto carece a nossa escola.

Em que pese à existência natural de expressões de época, a atualidade da obra de Monteiro Lobato é impressionante. A cada dia nos aproximamos mais do Sítio do Picapau Amarelo, tomando como referência a intenção literária do autor na criação do Brasil ideal. O exemplo mais presente dessa característica é a eleição de Dilma Rousseff para a presidência da República. Como assim?

Na literatura de Lobato, o Brasil ideal está desde o início comandado pela lógica do poder feminino, na figura da Dona Benta; enquanto no Brasil real, somente agora vamos experimentar pela primeira vez na história da República o País ser dirigido por uma mulher.

O Brasil está precisando mais de literatura que instigue a pensar do que de pesquisadores obtusos e burocratas que querem impor suas razões cartesianas ao mundo escolar. E tem mais: essa conversa de que educadores e crianças não estão preparados para lidar com situações literárias que podem ser embaraçosas a determinadas identidades mais parece aquele discurso do Pelé de que o povo não sabe votar. A falta de interação entre os órgãos de educação e cultura não só deixa o equipamento escolar à mercê do mercado, como distancia a educação da função simbólica da nossa vida cultural.

As orientações do CNE para que as obras que apresentam possibilidades de "representações negativas sobre a cultura popular, o negro e o universo afro-brasileiro" (p. 5) sejam rejeitadas ou obrigadas a ter notas explicativas à luz dos estudos atuais e críticos, configura-se como uma imposição desnecessária, considerando o quanto esse tipo de restrição à criação literária abre de precedente.

Rute Albuquerque, coordenadora do Programa de Educação do Núcleo de Estudos Negros, de Florianópolis, procura contemporizar, colocando-se ao mesmo tempo a favor do parecer e a favor de Lobato. Seu argumento é que a leitura deve atender acima de tudo à interpretação do que por vezes pode estar disfarçado por adornos criativos.

A escritora gaúcha, Lígia Bojunga, se pronunciou sobre o caso, chamando a atenção para o contrassenso que ele traz com relação aos avanços dos estudos literários sobre a noção do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão em um livro. Ela lamenta que, como está acontecendo atualmente com relação à obra de Monteiro Lobato, de vez em quando educadores de todas as instâncias manifestem desconfiança da capacidade que os leitores têm de se posicionarem "de forma correta" diante do que leem. Essa liberdade do leitor está associada ao seu universo de conhecimento, aos saberes que embalam suas crenças, ao seu modo de vida e ao seu grau de escolaridade e acesso à informação.

Os livros de Lobato estão entre os que educam pelo viés da cultura, por isso possibilitam um constante exercício do contraditório e dão espaço para a imaginação no processo cognitivo. O autor primou em sua literatura pelo exercício do pensamento e do diálogo e não por discernimentos de empréstimo, pretensamente sistematizados em conteúdos previamente estabelecidos como corretos. No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Continuidade e rupturas - Diário do Nordeste - 4/11/2010


O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas da moral religiosa, fragilizando o imaginário democrático (...) Abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação"

A eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República, no domingo passado (31/10), apresenta dois sentidos curiosos: o de continuidade, se observada como consagradora do plano de sucessão do presidente Lula; e o de ruptura, se considerado como referência o processo político brasileiro como um todo. Foi na conjunção desses aspectos que a população tomou a sábia decisão de oferecer maioria no Congresso Nacional à nova governante, mas forçando um segundo turno e mantendo o equilíbrio entre situação e oposição nos estados.

No Brasil a intuição popular parece mais bem preparada do que a razão da elite intelectual. Antes de ser um Estado-Nação, o Brasil é um estado de espírito. Daí, a vontade da população de participar da construção de uma democracia ainda empírica por que estranha às luzes das ciências sociais. Seja como for, a desconstrução da hierarquia das aspirações nacionais está confirmada nas urnas em uma repetida prática de liberdade de escolha que se consolida como despertar de inclinação transformadora.

Em mais de cinco séculos de representação política de orientação colonial, Luís Inácio Lula da Silva foi o primeiro presidente do País (2002 - 2010), com cabeça eminentemente brasileira, além de ser um trabalhador de chão de fábrica. Lula é um "Silva" legítimo. Fez o que fez para o Brasil deixar de se ver como uma nação de segunda e se afirmar no diálogo global pelo limite das possibilidades. O eleitor satisfeito disse sim ao projeto de Lula e assegurou o seu prosseguimento abrindo as portas do Palácio do Planalto para uma mulher, descendente de búlgaro (imigrante invulgar) e, como se não bastasse, ex-guerrilheira.

É natural que os representantes da tradicional política brasileira se coloquem contrários às novas forças que se estabelecem. No mundo da política é normal a quem está no poder rejeitar as crias que não são suas. O nível tenso do embate eleitoral revelou o quanto essa questão é complexa e cheia de sensibilidades. As cidadãs e os cidadãos tiveram inclusive que se submeter a circunstâncias estapafúrdias enquanto alvos da caça ao voto. O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas de moral religiosa, fragilizando e despolitizando o imaginário democrático.

No meio dessa inflexão ocorrida na estrutura do poder real no Brasil surge um personagem que rouba a cena da brasilidade, o "Silva Rousseff". Quem é ele? Qualquer um e todos os que não tendo sido jogador de futebol ou modelo nunca tiveram condições para explorar as suas potencialidades. Se antes ele fazia parte da massa invisível, agora é filho da dialética entre o que está sendo herdado de Lula e o que será a gestão de Dilma. Sua existência parte do pressuposto de que Lula elegeu Dilma, mas que Dilma será a presidente.

Antes de Dilma Rousseff somente uma mulher tinha assumido o posto máximo da administração pública do Brasil, a Princesa Isabel. Filha do imperador Pedro II, na última vez que interinamente ela subiu ao trono assinou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil em 1888. Na República, Dilma é o 40ª presidente, mas é a primeira mulher, depois de 33 presidentes homens. Qual o ato que assinará para marcar seu nome na história brasileira? É difícil imaginar. O bom sinal é saber que ela não representa um projeto pessoal. Tudo leva a crer que sua disposição é estar a serviço da melhoria das condições de vida dos brasileiros e da inserção positiva do Brasil na comunidade internacional.

O Brasil é um lugar historicamente cobiçado pelas grandes potências. Devassado por vários séculos, acumulou muitos gargalos estruturais. Em sua fala, logo após a apuração final das urnas, Dilma comprometeu-se a manter a estabilidade econômica, a aplicar a meritocracia no serviço público, a concluir o processo de erradicação da miséria iniciado por Lula, a garantir a liberdade de expressão, a lutar para que as forças conservadoras não tumultuem a vida democrática do país e a honrar as mulheres brasileiras. Não falou sobre o acordo que assumiu com Lula, mas disse que "conviver com ele me deu a exata dimensão do governante justo e do líder apaixonado"... E, numa revelação pouco comum do seu jeito racional, se emocionou para todo mundo ver.

Lula rompeu com a lógica de que o governante se resume a um executivo das políticas dos grandes centros econômicos. Conquistou a estabilidade no Brasil em uma combinação de atitudes ousadas no âmbito do mercado doméstico e na diversificação comercial nas relações exteriores. Foi hábil em não cair em aventuras militares financiadas por interesses extracontinentais. Conhece bem a piada que explica o fato de não haver golpe de estado nem guerra dentro dos Estados Unidos: "É por que lá não tem embaixada norte-americana". Também não deve ter recebido como novidade a declaração da chanceler Angela Merkel, decretando no mês passado que o multiculturalismo fracassou na Alemanha.

Além de dar continuidade à condução do Brasil entre essas e outras contradições do mundo globalizado, em tempo de rearranjos multipolares, a presidenta eleita Dilma Rousseff tem uma série de grandes temas e desafios que não se limitam a fazer apenas mais do mesmo em seu governo. São na verdade rupturas que ela precisará promover para não desmerecer sua biografia, nem trair a confiança que o povo brasileiro depositou na sua honestidade política e na sua determinada capacidade de realização.

Na condição de filha da classe média mineira e de militante política, Dilma Vana Rousseff, 63 anos, é uma legítima representante da nova elite que ascendeu ao poder, utilizando-se dos instrumentos tradicionais da democracia burguesa. Tem todas as características de quem saberá valorizar o papel modelo que a partir de primeiro de janeiro de 2011 passará a assumir no mais elevado posto do País. E a primeira das rupturas que precisará fazer é dar um basta na banda podre do PT, não cedendo espaço à ação marginal dos aloprados, muitos deles de triste notoriedade.

As rupturas com as políticas segregacionistas, responsáveis pela formação de guetos étnicos, etários, de gênero, de classes e religiosos, também precisam ser feitas para abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação" tão bem conhecido de petistas limpos como o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Isso significaria desestimular os movimentos que contrariam a cidadania republicana, quer pela desvalorização da lei, quer pela marginalização arbitrária das oportunidades de indivíduos e grupos.

No plano das rupturas econômicas, estão as ações predatórias físicas e virtuais que comprometem a integridade do mercado comum brasileiro, inclusive na extensão do seu idioma comum. Dilma poderá priorizar os investimentos em ciência e tecnologia voltados para os interesses nacionais e inibir a ciência de resultados, que se limitam aos interesses das grandes corporações que atuam no País, muitas vezes em detrimento da saúde pública.

A ruptura com os esquemas que tiram valor da biodiversidade natural e cultural brasileiras dará ao Brasil as condições para desenvolver uma criativa educação para a sustentabilidade, a necessária qualificação para o trabalho, inclusive com atenção especial ao trabalho de educador, e, consequentemente, a consciência de si, do que pode e como deve se comportar em um mundo em acelerada transformação. O certo é que temos muitas estradas a serem abertas, desde que persistamos em ter desejos e pensamentos próprios.