sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Educação para a cidadania



As transformações sociais, econômicas e políticas vividas pelo Brasil no momento atual requerem uma educação à altura do diferencial comparativo das suas riquezas naturais e culturais: uma educação voltada à construção de um projeto de país. Para isso, cabe ao sistema educacional brasileiro ser, antes de tudo, eficiente na formação das pessoas para a cidadania. Com as proporções alcançadas na atualidade pela educação tecnomidiática e digital, esse desafio está cada vez maior, mais complexo, mais indispensável e mais urgente.

Perguntas como "qual educação?" e "qual cidadania?" passaram a exigir constantes atitudes reflexivas da comunidade educativa, tornando impreterível o investimento na preparação continuada de professores. É o que vem fazendo com que Sobral, a 238 quilômetros de Fortaleza, ocupe lugar de destaque na educação nacional. Estive lá, no sábado passado (01/12), fazendo a palestra de encerramento do VII Encontro de Educadores (de 29/11 a 01/12/ 2012) do Projeto Novos Olhares, realizado pela Escola de Formação Permanente do Magistério (Esfapem), e posso dizer que é empolgante testemunhar esse misto de orgulho e comprometimento.

Tive a oportunidade de compartilhar com educadoras e educadores de Sobral e dos municípios da sua região metropolitana, que lotaram o auditório do Centro de Convenções, uma sequência de conceitos que venho esboçando a respeito das metáforas da modernidade, dos grandes atos virtuosos da humanidade e da cultura em 4D, como recursos educativos para o fortalecimento e a consolidação da "cidadania orgânica", conforme defino o estado de participação social no qual as pessoas dão relevância ao cotidiano pela associação das suas vidas à vida do planeta.

A atual crise de significados me faz recorrer ao dilema da incompatibilidade trágica, que nos impõe a necessidade de posicionamento "por suicídio ou por esperança?" na hora de fugir do absurdo, conforme refletido pelo pensador argelino Albert Camus (1913 - 1960), a partir dos traumas de quem sentiu na pele os presságios das guerras mundiais ocorridas na primeira metade do século passado. Assim como Camus, eu acredito mais na revolta do que na capitulação diante da inutilidade e da inconsequência de muitos dos nossos esforços em favor do absurdo no curso da hipermodernidade.

O primeiro movimento da educação rumo à cidadania orgânica é a atenção para a cultura nas suas dimensões de expressão do lugar onde a vida acontece, de respeito e valorização de quem a interpreta e refina, de criação de condições para a dinamização das trocas de saberes e conhecimentos nos mundos sociais físicos e virtuais, e de oferta de conteúdos e ambientes agradavelmente distintos para quem chegar. Na economia pós-crescimento, quando rico for quem tiver um pequeno pedaço de terra e quem conseguir momentos desconectados para a reapropriação seletiva do tempo, a principal matéria-prima será extraída dos conteúdos culturais.

A educação dos sentidos e das novas maneiras de ler e de atuar no mundo é uma plataforma para a coesão e para o bem-estar social. No frescor do tempo, a memória, a história e a expectativa de destino são janelas que se abrem e se fecham em constante ressignificação. A ética, enquanto habilidade de distinguir e procurar o bom, o decente e o agradável, é um atributo natural do humano, que precisa ser refinado. A moral, por sua vez, está ligada à conduta e ao modo de agir social, portanto, trata-se de um atributo do coletivo, que varia de acordo com as circunstâncias e os contextos culturais e históricos.

O êxito da formação do ser social para a cidadania orgânica depende em muito do aproveitamento dos atos virtuosos colocados em ação pela humanidade na sua longa e intensa aprendizagem evolutiva. O que chamo de ato virtuoso é a prática social da sensibilidade no que temos de melhor na nossa disposição para fazer o bem e para contribuir com a perpetuação da experiência humana. Um ato virtuoso não é apenas uma qualidade ou um sentimento, como a bondade, a solidariedade, a honestidade e o senso de justiça, ele surge com a interação efetiva do sujeito no dia a dia do viver.

Quando digo que a cooperação é um dos primeiros atos virtuosos da humanidade, refiro-me ao modo concreto como os nossos ancestrais descobriram que na companhia uns dos outros poderiam assegurar a sobrevivência e a perpetuação da espécie. Tão atual e tão primitivo é também o ato da tolerância. Não foi fácil suportar a diferença em favor da sociabilidade, mas avançamos e o relacionamento com alguém que possui necessidades, desejos e vontades próprias acabou contribuindo significativamente para a evolução.

Do interesse pelo outro nasceu o espírito solidário e a compreensão de que todos nós temos fragilidades que merecem ser consideradas. E quando essa atenção acontece, não pela tentação de se mostrar superior ou mais forte, mas pelo impulso sincero de desejar o bem, pode-se chamar esse ato virtuoso de generosidade. Como nas hipóteses do jogo simbólico da infância, a humanidade foi encontrando respostas entre erros e acertos. Fruto da cumplicidade e do anseio de compartilhar aspirações comuns acertou mais uma vez na descoberta do que intitulei de idealidade, ou seja, o ato virtuoso da consciência individual voltada para o coletivo.

O ato virtuoso da moralidade, sob o aspecto de condição essencial para reger os costumes, o da alteridade, considerada como recíproca à visão do próximo, e o da gentileza, enquanto a presença que estabiliza o outro complementam as sete invenções sociais que atravessam o tempo em aprimoramento e que continuam fundamentais à educação para a cidadania, nesses tempos de transmigração que qualifico como Baixa Modernidade, numa alusão à Baixa Idade Média, quando há cerca de cinco séculos a crise do modelo de produção e proteção feudal deu ensejo ao Renascimento.

Não houve ainda uma ruptura que alterasse a base dos fundamentos da modernidade. A incapacidade de ouvir o outro, o cientificismo e o excesso de racionalidade no ordenamento da sociedade ainda não sofreram descontinuidade. Por isso, uso a metáfora do "lenhador" para caracterizar essa baixa modernidade. O lenhador é um predador da flora, um destruidor da própria base de subsistência, um agente da insustentabilidade. Ao deixar o solo infértil e impróprio para o florescer da vida, a figura do lenhador assume a antítese do cidadão orgânico.

Como tenho a esperança de que daremos a volta por cima e que a tendência da humanidade será reduzir as práticas infecundas do lenhador para ampliar a germinação do que temos de melhor no aprendizado da humanidade, propus também a metáfora do ser humano para a era (ainda sem nome) que virá logo após a hipermodernidade: o lavrador. O lavrador seria ou será a sublimação do cidadão orgânico, por ser alguém que cultiva a simplicidade, que faz a semeadura do que é preciso produzir para viver, usando a ciência e a tecnologia em favor do usufruto pleno do que a vida nos oferece.

A educação para a cidadania orgânica é a cidadania do lavrador, onde quer que ela aconteça, sem restrições de territórios, classes, categorias, partidos, gênero, faixas etárias ou etnias. É a reaproximação da cultura com a natureza em um fluxo mental intuído e antenado, em rede, integral e integrado, experienciado, socialmente participativo e, acima de tudo, consciente de que ser rico é ser uma pessoa de valor. Tudo vivido com o que de mais genial a inteligência humana foi e é capaz de criar e com a sabedoria de que também somos animais naturais.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Roteiros de leituras do mundo - 22/11/2012



Dos bons frutos que colhi na safra da X Bienal Internacional do Livro no Ceará (8 a 18/11/2012), destaco como um dos mais saborosos e proveitosos o conjunto de livretos da coleção "Mundo da Leitura", do Centro de Referência da Literatura e Multimeios, do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), editada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). São 20 publicações com planejamento de práticas leitoras multimidiais, resultantes de um diálogo permanente e direto daquela universidade com leitores de várias escolas brasileiras, sobretudo gaúchas, catarinenses e paranaenses.

Orientada pela evolução de novas concepções de leitura e novos jeitos de ler, a coleção, intitulada "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola" (2010 e 2011), sugere abordagens para o despertar do gosto pela leitura em diferentes suportes e linguagens, com tratamento específico para os níveis infantil, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior. Recebi esse valioso presente das mãos da professora Tânia Rösing, que esteve na Bienal em Fortaleza participando do "6º Encontro do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado do Ceará".

No texto de apresentação ela expressa categoricamente a defesa que faz da leitura multimidial em espaços educativos e culturais: "Precisamos despertar o interesse dos leitores em formação pela leitura da música, da pintura, do teatro, da dança, da escultura, da arquitetura. Precisamos mostrar o valor das histórias em quadrinhos, das charges, dos cartuns, do grafite, formando públicos interessados nessas manifestações artísticas. Precisamos valorizar as manifestações da cultura popular, ampliando nosso conhecimento e nossa sensibilidade pela pluralidade de vozes em que se constitui a cultura em toda a sua complexidade e em toda a diversidade".

A produção desse roteiro pedagógico, incluindo os volumes do projeto "Livro do Mês" (2006 a 2011), com metodologia de leitura antecipada de obras com enfoques em mídias, dialogismo e relação leitor-autor, revelam uma consciência, presente na UPF, da importância do investimento em leitura, como condição indispensável ao desenvolvimento. Para Tânia Rösing, através da leitura, as pessoas podem alcançar gradualmente patamares de criticidade na condução de suas vidas e na atuação nos mais diferentes grupos e áreas sociais. Assim, sem receio de expor suas inquietações com relação a um assunto repleto de interrogações, a Universidade de Passo Fundo oferece esse roteiro no sentido da reflexão permanente pelo estímulo à vivência de experiências leitoras.

Além do trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Centro de Referência da Literatura e Multimeios, desde 1997, incluindo a produção do programa de televisão "Mundo da Leitura", veiculado nacionalmente pelo canal Futura, a equipe de responsáveis pelas propostas de práticas leitoras com distintos públicos e meios conta com experiências colhidas no maior evento brasileiro de formação de leitores, que é a Jornada Nacional de Literatura, realizada há mais de três décadas pela UPF, com apoio da Prefeitura Municipal de Passo Fundo. Com tudo isso, a professora Tânia, que fundou e é coordenadora da Jornada e do Centro de Referência, faz questão de dizer que essa é uma equipe que ouve bem, que está aberta a contribuições, numa clara atitude de quem faz para valer.

A educação do olhar, pelo estímulo à formação da memória visual e sua vinculação com a imagem que existe na palavra em si, é apresentada pela equipe de UPF no plano da leitura audiovisual para os primeiros anos do ensino fundamental, como maneira de instrumentalizar o estudante no seu processo de construção do conhecimento. O conceito trabalhado é o de encontrar o potencial do concreto e do virtual na relação entre o signo da língua escrita e sua transformação em bytes, entre o papel em branco e o monitor, a caneta e o teclado.

No anseio de conquistar leitores, partes desse importante roteiro apresentam displicência a respeito de questões relevantes, como a da publicidade voltada para a criança. O trabalho recomenda que o educador exiba peças comerciais para crianças como se estivesse apenas fazendo uma pesquisa qualitativa de opinião e não em uma missão educacional. No capítulo "Mãe, compra para mim?" o tema chega a ser mencionado, mas perde a chance de, por exemplo, chamar a atenção para licenciamentos e usos de personagens como mascotes de vendas.

Em uma das etapas propostas para o 3º e 4º anos, a título de mostrar como são feitos os filmes de animação, a metodologia pede para o professor literalmente "Exibir aos alunos o vídeo da propaganda da Coca-Cola...". Com tantos e tantos exemplos existentes de caráter anímico no audiovisual é difícil entender a razão da escolha dessa propaganda de açúcar líquido e gasoso, num país onde cresce a taxa de sobrepeso, obesidade e refluxo. Ademais, consciente ou inconscientemente, merchandising em material didático não é nada recomendado.

O "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola" da UPF abrange ainda, para estudantes do 5º e 6º anos, as histórias em quadrinhos, charge, cartuns, tirinhas cômicas e discute símbolos vividos no âmbito da cultura popular, de massa e acadêmica. Há espaço para a dinâmica dos saberes e do conhecimento, da sabedoria e da erudição. Ao mexer especificamente na temática do folclore, o material deixa a desejar um pensamento mais descolado do passado, qualquer coisa que pudesse aproximar mais as crianças das tradições e crenças populares, estimulando-as a vivenciarem esses mitos e não apenas a estudarem sobre eles.

No bloco de uso de diferentes mídias e criação colaborativa, destinado ao 7º, 8º e 9º anos, é muito bacana a noção da riqueza de convivência em grupo e da aprendizagem com o outro, compartilhada com a juventude. O mesmo tom efusivo faz-se presente na parte do ensino médio com enfoque na literatura fantástica. Sei que nem tudo dá para estar escrito em um trabalho que se propõe a oferecer tópicos a serem complementados no ato de seu uso, mas senti falta de referências comparativas em exercícios como o de "imaginar-se em outra época"; algo como paralelos da violência entre as cidades amuralhadas medievais e as periferias dos atuais centros urbanos.

Nesse ponto de alusões comparativas, acho que cairia bem expor determinados contextos e atemporalidades, como no caso das práticas de minicontos e haicais, dirigidas ao ensino médio. O miniconto é citado como uma literatura decorrente do "tudo tão rápido e fragmentado", mas sem uma perspectiva. E os jovens precisam de horizontes. Por sua importância, esse "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola", precisa ser mais vórtice, mais roteador, mais sinalizador de rotas. A narrativa curta e criativa, do tipo 140 caracteres definidos pela empresa Twitter para conversação global, seria percebida com mais curiosidade caso, ao ser associada ao miniconto, pudesse fazer alguma ligação da hipermodernidade lipovetskyana com a tradição japonesa, na qual o haicai surgiu como gênero poético.

A coleção "Mundo da Leitura" tem ainda um caderno extra, orientado para o período do 1º ao 4º anos, e outro destinado ao ensino superior. Todos apresentam obras literárias embasando a discussão dos temas e suportes propostos. Grandes abordagens, como a combinação da literatura com a música no processo de aprendizagem, certamente ainda estão por ser trabalhadas e retrabalhadas pela equipe desse Centro de Referência da Literatura e Multimeios da atuante Universidade de Passo Fundo, que tem dado significativas contribuições à construção do conhecimento para a aprendizagem emancipatória. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Muito além da obesidade - 15/11/2012


Tanto quanto nos seus aspectos nutritivos, o valor simbólico dos alimentos segue várias fases da evolução humana. A história da comida teve momentos de grandes impactos, como o intercâmbio de plantas e animais favorecido pelas navegações transoceânicas do século XVI. Foi essa excepcional movimentação marítima que tornou universal, dentre inúmeros outros, o trigo europeu, o milho americano, o arroz asiático e o café africano.

Essa permutação ecológica e cultural criou as condições para a variedade de ofertas de alimentação em todo o mundo. Mas não foi bem isso o que aconteceu. A industrialização nos centros urbanos fez migrar parte significativa da população do campo para a cidade, esvaziando as áreas rurais onde se produziam os alimentos. No século passado (XX), o domínio das corporações criou a ilusão do paladar unificado e da comida massificada, estorvando o potencial da diversidade orgânica.

A preeminência da cultura consumista estadunidense instalou no mundo um padrão de oferta industrial que somente nas últimas décadas começou a ser efetivamente desafiado por organizações da sociedade. A obrigatoriedade de informar nas embalagens dos produtos a presença de insumos que podem ser prejudiciais à saúde, tais como as gorduras trans, a quantidade de sódio, açúcar ou de adoçantes sintéticos, a indicação de organismos geneticamente modificados (transgênicos) é uma conquista muito recente.

A resistência de muitas empresas que insistem em tentar desrespeitar o consumidor tem gerado uma onda de desconfiança e o aumento da vontade de participar por parte da população. Mudam-se os sentimentos, os significados, os estilos de vida e as atitudes. E é nessa conjuntura que a diretora Estela Renner está lançando o seu segundo documentário sobre o tema. Estive presente na pré-estreia do seu filme "Muito Além do Peso" (84min, Maria Farinha, 2012), na segunda-feira passada (12) no Ibirapuera, em São Paulo.

O público compareceu. Faltou pouco para lotar os 800 lugares do auditório. Isso demonstra o tamanho do interesse das pessoas pelo debate sobre a obesidade na infância, proposto pelo filme. A produção do evento caprichou. Antes da exibição teve um maravilhoso bufê de frutas e sucos e a fala de Amit Goswami, pesquisador indiano que trabalha a física quântica na relação corpo e mente. Após projetado, o documentário foi discutido no palco com a participação de Frei Betto, do endocrinologista Amélio Godoy, da ativista Ann Cooper e da diretora Estela Renner, com mediação do VJ Cazé Peçanha.

O filme de Estela Renner vai direto ao assunto. Assume o partido da infância e tem êxito na opção pela retórica da revelação. É curioso ver como as famílias obesas ou com filhos obesos se dispuseram a contribuir com a realização dessa obra, relatando experiências da má nutrição assumida por elas. A consciência de que podem servir de antiexemplo denota um quê de altruísmo nessas pessoas. Com isso, a diretora certamente sentiu-se aliviada para expor naturalmente as crianças dos grupos familiares que participaram dos depoimentos. As demais crianças que aparecem em cenas contextuais tiveram cuidadosamente seus rostos embaçados para evitar identificação.

Ao patrocinar "Muito Além do Peso", o Instituto Alana oferta para debate uma síntese viva da problemática do sobrepeso na atualidade. Por isso, esse documentário é tão importante de ser visto por cidadãos, consumidores, empresários, adultos e crianças. Mesmo que ele mexa com os nervos de algumas empresas citadas, as mais antenadas não deverão reagir frontalmente ao que Estela Renner apresenta como fato inquestionável, sob pena de terem aumento de desgaste nas imagens de suas marcas e produtos. É uma oportunidade de o mundo corporativo reavaliar seu código de ética e de conduta.

"Muito Além do Peso" é uma peça de utilidade pública. Reflete uma aderência referencial e reverencial aos Estados Unidos. Não faz mal, afinal foram eles mesmos que nos incutiram a ideia de uma sociedade refém do "fast-food". A obesidade no Brasil ainda não está no nível de gravidade dos EUA, mas poderá chegar lá, caso não revertamos a taxa crescente de 33% de crianças com sobrepeso. Reservei, contudo, os meus vivas e palmas para as cenas e depoimentos incríveis gravadas por Estela Renner e sua equipe.

É impactante a imagem do supermercado flutuante da Nestlé, invadindo as águas amazônicas, todo adesivado com marcas e produtos da multinacional suíça para assediar as comunidades ribeirinhas. Causa impacto também a revelação da menina que adora batata frita, mas diante de uma batata natural arrisca dizer que é uma cebola. As falas são intercaladas por informações e imagens de efeito comparativo rápido, como a colocação lado a lado de produtos alimentícios e de copos contendo a porção de açúcar ou de óleo neles contidos.

Chocante também é o depoimento de uma ex-funcionária do McDonalds que é mãe de uma criança obesa. Ela conta da angústia que tinha ao ver sua filha acima do peso, enquanto trabalhava em uma empresa causadora desse tipo de problema para a sociedade. Declara que pediu demissão por não aguentar mais se sentir como se fosse um traficante de drogas. Outra mãe confessa que tenta convencer o filho de que determinado alimento não é saudável, mas fica sem saber o que dizer quando o argumento do filho é o de que se aquele alimento não fosse saudável ele não apareceria sendo comido por uma criança na televisão.

O filme apregoa que problemas de educação alimentar levam as crianças obesas a uma ameaça de morte prematura, constituindo-se neste caso a primeira geração de meninas e meninos com expectativa de vida menor do que a dos seus pais. O disparate é saber que muitas das crianças que levam frutas para se alimentar no intervalo das aulas as comem escondidas no banheiro, pois se forem vistas podem sofrer discriminação, considerando que, do ponto de vista de quem quer significar alguma coisa de qualquer jeito, os alimentos industrializados são tipificados como símbolos de distinção de poder de consumo.

Depois que as luzes se acendem, a lembrança da sala escura deixa o espectador de "Muito Além do Peso" sem chance de ficar indiferente. O filme tem a mesma força do documentário "Criança, a Alma do Negócio" (49min, Maria Farinha, 2008), no qual Estela Renner trata dos efeitos da publicidade no comportamento e nos valores das crianças. É uma espécie de continuidade. Ambos apresentam o viés intrapsíquico das pessoas que são vítimas de suas próprias dificuldades de superarem a condição de obesa, e o viés do indivíduo como parte de uma sociedade doente.

A pressão contra os fatores causadores de obesidade tenderá a aumentar, visto que não tem sentido crianças com trombose, dificuldades respiratórias, hipertensão arterial, aterosclerose, intolerância à glicose, diabetes, distúrbio metabólico e todas as doenças resultantes do limite trágico da obesidade. Sem contar com os problemas ortopédicos, como os psicossociais, tipo ansiedade, depressão e isolamento social, e da busca desnorteada de como encontrar alternativas para escapar do sedentarismo.

Estela Renner trata a obesidade como um problema de saúde pública, sem cair nas armadilhas estéticas do feio e do bonito ou em preceitos morais do tipo certo ou errado. Não é à toa que a parte mais emocionante do filme é quando uma mãe diz que acha o filho bonito de qualquer jeito, gordo ou magro. E afirma que quando se esforça para que ele perca a gordura corporal que tem em demasia é apenas para vê-lo sadio. Eis a dinâmica circular da existência, sinalizando que, na combinação da racionalidade com o instinto, pode estar em processo uma nova revolução na história da comida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O PT da outra margem do rio - 8/11/2012



Alex Antunes, agitador e produtor cultural paulistano, declarado militante do Partido dos Trabalhadores (PT), publicou na semana passada, na sua página do Facebook, o texto "Por que eu elegi Haddad contra o PT", no qual aborda as possibilidades simbólicas do momento paulistano, com a eleição de Fernando Haddad, como sinal de que a potência transformadora na política brasileira ainda passa por dentro do PT. O título é caricatural, mas na argumentação percebe-se que ele se coloca contra os políticos do partido que confundem voto e militância com "carta branca para a sua burrice e truculência". Por isso, assevera, associa-se aos que, como o ministro Joaquim Barbosa, protegem "o Lula do Lula" e "o PT do PT".

Na conversa com os leitores do seu artigo-desabafo, ele afirma que não consegue imaginar momento melhor para o partido e bate de frente com as correntes petistas que estão se movimentando para "salvar" alguns condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). "O Dirceu me estuprou, e estuprou meu voto, três vezes. Sem a menor piedade (...) não elegi o PT para a presidência para corromper (...). Elegi o PT para exterminar esses coronéis dos grotões psíquicos, e não para financiá-los". Procurei ler a mensagem de Alex Antunes como uma advertência que reforça a atitude do eleitor brasileiro nas eleições (prefeito e vereador) do mês passado. O resultado concreto desse posicionamento é que o PT cresceu no Brasil (14%), mas perdeu onde, salvo raras exceções, a insensatez dos seus líderes locais vinham levando o partido à autodestruição.

O que me fascina no eleitor brasileiro é que, mesmo acossado no labirinto das desinformações e bombardeado por más intenções de pesquisas muitas vezes manipuladas, ele apresenta comportamento desviante, alterando intuitivamente os arranjos de quem quer que esteja no poder. Assim, o Brasil avança nesse incrível fenômeno que tenho chamado de democracia empírica. Nessa democracia à brasileira, o eleitor não se coloca a favor ou contra a corrente, nem orientado pela busca de margem direita ou de margem esquerda; ele atravessa um rio a cada eleição para ver o que há do outro lado. Pena que se pense e se discuta tão pouco sobre isso. Uma boa compreensão dessa sabedoria da miscigenação poderia elevar os nossos políticos ao nível dos eleitores.

Nesse sentido, a situação atual do Partido dos Trabalhadores é propícia ao que Alex Antunes chama de "refundação psíquica do PT", uma nova atitude partidária, na qual o "PT pare de tropeçar nele mesmo. Porque o PT não é dos petistas, o PT é do Brasil, o PT é do mundo". E ele carrega no tom da voz: "Na verdade, eu que peguei filiações para o registro definitivo do PT de porta em porta, nos bairros de São Paulo, para mudar o Brasil e o mundo, é que sou o DONO do PT, não o Zé Dirceu, que tentou roubá-lo de mim. Pois agora eu vim reclamá-lo (...) Por isso que eu votei e fiz campanha para o Haddad (...) Honrando sua condição de signatário do manifesto pela refundação do PT, ele fez um discurso de eleito que emitiu TODOS os sinais corretos sobre o significado de sua vitória".

A presidenta Dilma Rousseff tem dito desde o início do seu mandato (2011) que não vai "admitir malfeito" da parte de quem quer que seja. Logo no primeiro ano de governo afastou uma meia dúzia de ministros, inclusive o então da Casa Civil, Antonio Palocci, tão poderoso e petista quando o José Dirceu, que ocupou o mesmo cargo. A ministra Gleisi Hoffmann, senadora que está atualmente na Casa Civil, diz claramente que o partido está iniciando o resgate da sua credibilidade: "Já passamos uma fase muito mais difícil. Eu diria que o PT está vivendo uma fase muito boa. Está num governo bem avaliado, que está oferecendo ao povo brasileiro respostas importantes a seus problemas. Mesmo numa crise mundial, o Brasil tem tido resultados importantes na economia, na geração de emprego. E ter uma presidente que é petista com a avaliação que tem, e ter tido um presidente que saiu com a avaliação que saiu" (Folha de S. Paulo, p. A6, Poder, 29/10/2012).

Ao ser indagada sobre as críticas e as contestações que parte dos petistas está movendo contra o julgamento do Supremo e em prol dos condenados, com patéticas ameaça de denúncia do STF em organismos internacionais, a ministra é taxativa em sua posição: "Nós podemos gostar ou não gostar de como as coisas se dão, mas nós temos que respeitar resultados e instituições" (Idem). Muitos militantes e políticos que não se envergonham de situações patéticas como a emblemática cena dos "dólares na cueca", que ainda estão com a tentação de desonestidade no armário ou que não entenderam a necessidade de amadurecimento do partido, podem até achar ruim e desnecessário esse debate, mas, querendo ou não, esse assunto é importante para o PT e para o País.

Anos atrás, quando estourou o escândalo do "mensalão" (2005), houve, por parte de pessoas que sonharam e lutaram por um partido diferente, uma reação de inconformismo em vários setores do PT. Uns ficaram tentados a deixar o partido e outros debandaram logo. Embora não sendo filiado ao PT - como nunca fui nem sou ligado a qualquer partido político - defendi que seria um erro largar o partido à insolvência. Naquele momento, a convite da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital) e do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), estive reunido algumas vezes com petistas e simpatizantes do PT, para argumentar que, apesar de tudo, o partido tinha lastro histórico para pagar a dívida que moralmente passava naquele momento a ter com a população brasileira.

Naquela época, procurei refletir o escândalo do "mensalão" como uma oportunidade de aperfeiçoamento dos princípios e práticas de um partido que aprendia a sair da condição de denunciador para a obrigação de fazedor. Agora, por ocasião do julgamento do "mensalão", reforcei em mim a convicção de que, independentemente das circunstâncias e dos interesses que o conduzem, o efeito dessa ampla audiência coletiva e pública simboliza uma "expressão de passagem para um novo ciclo de renovação política" ("O julgamento de Macunaíma", Diário do Nordeste, 18/10/2012). Não há mais espaço para o tipo de heroísmo dissimulado, revelado no palco do teatro do "mensalão": "Vivia deitado, mas se punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém", como está escrito logo na primeira página do livro de Mário de Andrade (1928).

Na condição de autor de uma crônica aberta à conexão de pontos de vista, nos últimos dias tenho trocado ideias com leitores sobre as críticas de que sou benevolente com relação a Lula. Encontrei na mensagem de Alex Antunes uma boa resposta para isso e deu vontade de compartilhá-la. Em síntese, ele também poupa Lula por considerar que "fora seus desvios egóicos", o ex-presidente tem um papel "mágico" nesse processo. E como tem. Porém, o debate não é por aí. No contexto atual do PT e do País, renovar, resgatar e refundar é mais do que faixa etária, tempo de filiação e volta ao passado. Pelo bem e pelo mal, o PT é um produto cultural do Brasil, o que leva as discussões sobre o partido a não se restringirem a dirigentes e militantes. O desafio posto é o de como lidar com o tempo político brasileiro e a maturidade do partido, entre teorias, abstrações e as mensagens realistas das urnas.

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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Catarse literomusical criativa - 11/10/2012


A vida de um compositor que teima em viver de trabalhos autorais passa por uma existencial oposição recíproca entre as perspectivas oportunizadas pelas novas tecnologias e a dificuldade de pagar as contas no final do mês. Muitos desses artistas já não conseguem saber se correm ou se ficam para serem comidos pelo bicho da competitividade e da fama. É o tema do livro-CD "Na Lojinha de Um Real Eu Me Sinto Milionário", do compositor e cantor paulistano Paulo Padilha (Borandá, 2012), produção autobiográfica que inclui um pouco de vida alheia, como a da cantora que fingia ser sua própria produtora ao tempo em que entregava pizza para reforçar o orçamento (Soube, p. 19).

O tom desse trabalho de Padilha é o sentimento de inutilidade e teimosia presente no cotidiano do músico brasileiro que se vê pressionado por padrões de ofertas inclusivas de consumo, mas destituídos de qualidade no processo de discernimento. E ele canta: "O balanço tá bom só que eu não me encaixo" (Partido Baixo, p. 25). O autor demonstra total compreensão de que vive numa espécie de tempo errado e, sem saber como consertar essa realidade, trata de regurgitá-la numa catarse literomusical criativa.

O livro-CD de Paulo Padrilha é cômico e perturbador em sua função de espelho, diante de um compositor que samba os seus sentimentos e dificuldades sobre parte significativa da situação atual da criação artística. Relato sonoro, literário e visual, feito na primeira pessoa de um artista que vai transformando o cotidiano em canções e crônicas intersemióticas cheias de provocantes revelações de uma vivência marcada por toda sorte de pressão psicossocial que aflige a quem tudo pode ser delegado, por "passar o dia fazendo música" (Todo tipo de tarefa, p. 26).

Em formato alternativo dos anos 1980, a publicação recontextualiza a estética de "Somos todos assassinos", antológico livro independente do escritor mineiro Sebastião Nunes, que escracha o lado obscuro da produção publicitária. Paulo Padilha trilha a mesma ironia de um mundo no qual o dinheiro está na base das relações entre as pessoas e expõe seu olhar musical na cadência de variadas ilustrações com textos de máquina de escrever, imagens recortadas, estampas rebaixadas e, como não poderia deixar de ser, a reprodução da moeda e da cédula de um real. Na advertência grafada na página de "copyright", o espírito da coisa: "Use o bom senso. Se é para curtir e divulgar, pode espalhar! Se vai faturar, é bom pagar!"

Nessa vida de quem vive a compor até em fila de banco, às vezes o artista fica no desamparo: "Eu bato o escanteio / Corro pra cabecear / Eu mesmo faço a jogada / Sento na arquibancada e grito gol! / Toco pandeiro, frevo, samba, rock, funk, soul / Armo o circo, vendo ingresso, e vou assistir o show" (Escanteio, faixa 6, p. 21). E para quem abandona o barco, trai a causa, pula do bonde, tira o time e deixa o sujeito sem clima, ele manda um refrão encolerizado: "Vai te catá, vai te catá / Que tem, vai, vai / Vai te catá, vai te catá / Que tu tem, vai, vai" (Idem).

A situação não é nada fácil para quem se acha incompreendido e sonha com um drummondiano "mundo, mundo, vasto mundo" apreciando a sua criação. Na faixa-crônica 1, "Eu e minhas ideias geniais", o autor faz uma fala em reggae, como um cantador que recebe um mote para um xote. Ataca de Itamar Assumpção, inclusive convidando as cantoras Suzana Salles e Vange Milliet para um coro na pegada "Isca de Polícia". Como as coisas não funcionam assim, ele, na liseira, acaba viciado em telefonia, como descreve em "Pré-Pago Pai de Santo" (faixa 10, p. 31), para a qual contou com o auxílio luxuoso da Mart´nália.

Numa e outra de ficar inventando coisa, ele caiu na besteira de calcular quantas músicas cabem em equipamento de armazenamento digital e isso só contribuiu para aumentar sua angústia ao chegar a conclusão de que "Seriam necessários 34,3 metros lineares de estantes para armazenar 3.428,5 LPs e aproximadamente 9 anos, 4 meses e 26 dias para ouvir todas as canções de um tocador de mp3 com 120 GB" (p. 49). A pior conclusão estava por vir: se ouvindo um velho long-play por dia, sem repetir uma só faixa, a pessoa precisaria de uma década, não há muita razão para alguém fazer novas canções. Isso pode até ter algum fundo de verdade, mas, diante de tal constatação, a dúvida que surge para o compositor é o que ele vai fazer com o seu impulso criativo.

Tendo ou não quem vá ouvir, conseguindo ou não viver de música, o que Paulo Padrilha mostra nesse trabalho é que o compositor à vera é aquele que nunca entrega os pontos. Foi assim quando ele levantou o astral ao entrar em uma dessas pequenas lojas populares de preço único : "Na lojinha de 1 real / Eu me sinto um milionário / Vasculhando corredores /Escolhendo escorredores de prato / Cores sortidas, baixelas de plástico / Fala, filhinho / Fala o que você quer / Pega o brinquedo / Pega, eu insisto / Filosofia de hoje / Compro, logo existo" (Lojinha de 1 Real, faixa 2, p. 7). Neste samba, o compositor experimenta a sensação de "eu posso" atender a vontade do filho, cujo comportamento foi moldado pelo mercado de consumo.

Muito boa também é a crônica-canção em que o autor revela o quanto gostaria de ter a oportunidade que têm os autores de livros de autoajuda. "Sempre olho aquelas gôndolas com CDs e livros de autoajuda e fico pensando, puxa, será que algum dia terei a honra de estar aqui, dividindo o espaço com essas maravilhas da cultura de massa?" (Guia fácil para lidar com pessoas difíceis, p. 9). É o compositor em situação de exílio, de desencanto, de cara com aquele vazio da solidão de Caetano, em London, London, um vagar atento, enquanto as pessoas parecem passar apressadas com suas dores silenciosas. E o compositor fica indignado por transformar tudo isso em canção, esse "serviço sujo, que não enche a barriga dos meus filhos, q não alivia o trabalho da minha mulher, q não paga o salário da empregada, que não paga escola"... (Idem).

O pior é que ao comprar o guia na banca de jornal, ele descobre que a autora é sua mulher, aquela que consegue aguentá-lo, que tanto o atura, investiu na literatura. "Pois é... não é fácil casar com um compositor. No começo é lindo. Ele faz uma canção pra você. Suas amigas morrem de inveja. Depois começa a fazer canções pras suas amigas, com o pretexto de não magoá-las" até o dia em que, dizendo que se inspirou na história de um amigo, faz uma música para a sogra: "Minha mulher / Tá cada vez mais parecida com a minha sogra / Salga a comida, o joelho não dobra / Dorme na frente da televisão / Tá engordando, anda arrastando o chinelo de dedo / Ai meu Deus, eu tô com medo, / De enfrentar a situação" (Eu sou ela amanhã, faixa 4, p. 12). E conta conta que no começo a sogra estranhou a canção, mas quando viu que fazia sucesso nos shows, passou a pedir: "Paulo, toca aquela que você fez em minha homenagem!" (p. 13).

Na vida de compositor, essa confusão toda deixa o indivíduo com insônia e ele começa a maquinar uma forma de ter alguma serventia. Na madrugada lenta só pensa em deliberar sobre algo, em ter a sensação de utilidade. Imagina alguém implorando por uma canção, de modo que pudesse furar todos os prazos de entrega, como fazem os carpinteiros, os encanadores, pedreiros, jardineiros, técnicos de computadores, médicos, dentistas, advogados e prestadores de serviço em geral. Tem um tipo de devaneio como o da "Jenny dos piratas" de Bertolt Brecht e Kurt Weill que, ao limpar as mãos no avental inspirava a convicção de que um dia seria arrebatada por um navio de sedutores cinquenta canhões.

Em seu desejo de ser tão necessário, o compositor toma uma atitude concreta e serra as pernas da mesa e o braço do violão para fazer uma mesa de centro de sala para a festa de aniversário dos filhos. E confessa: "Fiz tudo com consciência / Paciência e determinação / Com a ciência de um bruxo / Num ritual de mutilação / Movido por um impulso / Que gritava dentro de mim / Preciso cometer um ato / Com começo, meio e fim" (Serrei as pernas da mesa, faixa 5, p. 15). À noite, os convidados fazem comentários elogiosos ao móvel... "E la nave va", nesse enredo feliniano que dá sobrevida à criatividade nesse funeral que pode até parecer, mas certamente não é da literatura nem da arte.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Família e consumo no cubo de Rubik (Final) - 30/09/2012


Na coluna da quinta-feira passada recorri à figura do cubo de Rubik – aquele quebra-cabeça colorido e tridimensional, conhecido como “cubo mágico” – como metáfora da educação para o consumo, do ponto de vista da intervenção familiar. Entendendo que cada família tem o seu próprio jeito de refletir e de lidar com a questão, e convicto da necessidade de troca dessas experiências, tomei a liberdade de contar um pouco de como lancei mão das nove peças que formam o lado da família nesse “cubo mágico”, tratando inicialmente da pedagogia do “Acolhimento”, dos “Jogos” e da “Narrativa”. O assunto segue hoje em breves relatos das demais “pedagogias” e nas considerações finais.

Peça 4: Pedagogia da ARTE – Um dos pontos que tornam as crianças mais frágeis diante do ataque da publicidade é a falta de chance da experiência estética. As alternativas ao lixo da massificação dependem de um esforço extra da família para serem acessadas, adquiridas e assimiladas pelos filhos. Em um mundo onde a criatividade e a inovação ganham dimensões estratégicas sociais e econômicas, a precariedade dos parâmetros estéticos é um limitante do desenvolvimento individual e coletivo. Um dos recursos que funcionam muito bem com os nossos filhos é o da escolha separada para a curtição conjunta. Isso vale para literatura, cinema e música. No som do carro, por exemplo, cada qual escolhe um CD e, em rotatividade consentida, todos escutam a preferência do outro, dando ensejo a uma rica troca de influências.

Peça 5: Pedagogia do LETRAMENTO VIRTUAL – No mundo social virtual é comum a sobrecarga de informações e a constrangedora pressão de consumo de novos equipamentos e aplicativos como obrigação social. A vivência excessiva nesse mundo tende a ampliar a agilidade mental e a aumentar a capacidade de processamento de informações no cérebro do usuário, mas, além de produzir efeitos bioquímicos semelhantes aos das drogas, reduz o nível de empatia, afeta a memória de longo prazo e compromete a formação da consciência. Na tentativa de aproveitar o máximo das maravilhas da evolução da internet e das tecnologias digitais, criamos em nossa casa duas regras básicas: 1) não devemos expor nos logradouros públicos e nas áreas privadas do cyberespaço o que não estivermos confortáveis em mostrar na realidade física; 2) assim como no mundo social físico, a vida virtual tem anonimato relativo e precisa de experiências subjetivas que só podem ser desenvolvidas com tempo para o ócio e para o devaneio.

Peça 6: Pedagogia da OFICINA – A maneira mais contundente que encontramos para dizer aos nossos filhos que a vida de estudante deles tem valor de fato, foi criando em casa um mesmo ambiente de produção para adultos e crianças. Assim, montamos um escritório com bancada de quatro estações de trabalho e equalizamos a importância do que fazemos com as tarefas escolares deles. É uma oficina da casa, onde podemos nos ajudar mutuamente nos nossos afazeres. Em muitas circunstâncias, quando estou escrevendo, escuto a voz dos meus filhos dizendo que algo não está claro ou sugerindo que eu troque determinada palavra. E as sugestões deles são sempre consideradas, seja com alterações ou com esclarecimentos. Eles fazem isso com o intuito de contribuir, da mesma forma que a mãe deles e eu temos a liberdade de comentar o que eles fazem, sem qualquer receio de intromissão (Embora, claro, nem sempre sejamos considerados).

Peça 7: Pedagogia da VIAGEM – Esse recurso educativo familiar é um dos meus preferidos. A definição do destino, a arrumação das coisas e a intensificação da convivência por um determinado período é fundamental para ampliarmos o conhecimento um do outro, em zonas de comportamento que no cotidiano não temos a oportunidade de transitar juntos. Procurar novidades a partir de nós, mas estando em outro lugar, é participar um pouco de realidades distintas, sentir como outras pessoas vivem e observar como, por terem outros traços culturais, encontraram soluções diferentes para as mesmas necessidades humanas que temos. Nas nossas viagens sempre priorizamos a fotografia na captura de imagens. Diferentemente da filmadora, a máquina fotográfica facilita o treinamento do olhar; com ela tende-se mais a escolher o objeto a ser fotografado. Depois de cada viagem costumo sentar com o Lucas e o Artur para fazer o jornal "Aventuras", que está na trigésima edição e completará dez anos em 2013.

Peça 8: Pedagogia da DESCOMPRESSÃO – O patrocínio da "pedocracia", como o poder da criança acima da autoridade dos pais e dos professores, é uma das mais poderosas táticas da ideologia do consumismo. No "cubo mágico" da educação para o consumo, a atitude de construção de alternativas simbólicas a essa situação prática é um dos movimentos mais difíceis de serem feitos pelo lado da família. Para romper com essa condição de permanente estresse social causado pela busca da felicidade no objeto, a experiência mais bem estruturada que realizamos na infância dos nossos filhos é a Festa do Saci, na qual eles e os amigos podem se divertir em brincadeiras de suspensão da lógica consumista cotidiana, como um exercício imaginativo de desestabilização do estabelecido. Buscamos o alívio da pressão do consumismo também em outras práticas do sentido contrário, tais como o esforço para estarmos juntos na hora das refeições e a priorização do Deus amoroso nas orações antes de dormir.

Peça 9: Pedagogia da EMANCIPAÇÃO – Não há uma única fronteira entre a proteção e a emancipação dos nossos filhos. Na educação familiar para o consumo esse é um ponto crítico que traz em si indagações sobre os limites do cuidado excessivo e da autonomia forçada. Para conduzir essa questão propus na nossa casa a metáfora do ninho e da árvore esgalhada. Da varanda do prédio olhamos para as ruas e avenidas que deu para a vista alcançar e fomos comparando cada via com os galhos das árvores. E fui falando que primeiro eles andariam na rua apenas do mesmo lado da calçada, depois passariam de fase e poderiam atravessar o asfalto; em outro momento mudariam de rua até cruzarem bairros etc. Já tivemos um dia para andar de ônibus e ainda insistimos em circular de bicicleta pela cidade. Esta referência de preparação para o uso da cidade vale para qualquer evolução de liberdade física, moral e intelectual.

Assim como temos nos esforçado para praticar essas pedagogias derivadas da vontade de acertar na criação dos filhos, cada família naturalmente vai inventando seus modos de educar para o consumo. A título de ilustração, defini dez juízos aparentemente lógicos do chamo de falsas verdades do consumismo, instaladas em maior ou menor intensidade no nosso senso comum: 1) a autonomia dispensa liberdade e direito; 2) quem é nativo digital é mais inteligente; 3) o cybermundo prescinde do mundo concreto; 4) para participar basta clicar; 5) para ser feliz na web não precisa ser feliz; 6) o conhecimento é desnecessário para o sucesso; 7) ser bem-sucedido é uma questão de esperteza; 8) não há sucesso sem droga química ou psíquica; 9) a autoajuda dispensa a espiritualidade; e 10) nunca a realidade esteve tão complexa.

As articulações educativas para a vida em sociedade, feitas na dinâmica das nove peças do lado da família no cubo da educação para o consumo, passam diretamente pelas peças do mundo escolar, das mídias, do social físico, do social virtual e da espiritualidade. O êxito de cada giro, de cada acoplamento, de cada combinação de cores está sempre associado ao eixo mágico que permite a consciência e o discernimento mais profundo, que é a cultura. Essas pedagogias são contranarrativas cotidianas com as quais pretendemos aprender a "desaprender", a informar, formar, "desenformar", sentir, evocar, encantar e socializar a ideia de que viver é muito mais do que consumir.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Família e consumo no cubo de Rubik (I) - 20/09/2012

Todo mundo conhece o popular "cubo mágico", aquele quebra-cabeça colorido e tridimensional. O nome de batismo dele é Cubo de Rubik porque foi inventado por Ernö Rubik, um professor de design da Academia de Artes de Budapeste (Hungria). Como todo cubo, o de Rubik tem seis lados e, na sua versão mais comum, cada lado é dividido em nove peças articuladas (3x3x3), que podem ser giradas livremente, criando diversas possibilidades de configurações em cada um dos lados, desde o agrupamento em peças com variadas cores até a composição com todas as cores iguais.

Tomei a figura desse brinquedo como uma metáfora da educação para o consumo, do ponto de vista da intervenção familiar. Cada lado do cubo representa, nessa minha ilustração, uma instância de relacionamento da família nas suas práticas parentais educativas: o mundo escolar, o das mídias, o social físico, o social virtual e o da espiritualidade. O eixo "mágico" que permite o entrelaçamento desses seis mundos no cubo da educação é a cultura. E assim, o bloco inteiro pode ser movimentado, ora na vertical, ao dizer "não", e ora na horizontal, quando diz "sim".

Educar para o consumo é criar condições para o entendimento e a convivência crítica com as "verdades" efêmeras, comuns em uma sociedade contagiada pelo consumismo e suas falsas ofertas de ideal de felicidade. Como quem busca encontrar novas combinações de cores no "Cubo de Rubik", organizei alguns exemplos de como a função simbólica e orientadora da família pode contribuir para contornar essa situação causadora de tantos problemas físicos e psíquicos no mundo contemporâneo, e os inclui na palestra "A Família na Educação para o Consumo" que farei às 19:30, do próximo dia 26, para pais da Educação Infantil e do Ensino Médio do Colégio Santa Cecília, em Fortaleza.

Em que pese a negligência social com relação à vulnerabilidade da função estruturante da família no seu processo de adaptação e de reinvenção de laços afetivos, não podemos esquecer que cerca de 70% dos lares brasileiros têm filhos, sendo, em números redondos, 50% de casais e 20% de famílias monoparentais. Sem contar que o levantamento dos "Arranjos Familiares Residenciais" (Censo Demográfico do IBGE - 2010) não contempla filhos que vivem na condição de guarda compartilhada. A expressividade desses percentuais confere destaque especial ao papel da família (na configuração que for) no bloco de articulações educativas para a vida em sociedade.

A situação da família é muito delicada. Não é fácil lidar com a pressão consumista que chega a todo momento, de todas as formas e de todos os lados: o clipe de meninas de avental e peruca rosa, imitando as "empreguetes" da novela "Cheias de Charme" (TV Globo) teve mais de dez milhões de acessos no YouTube; como se não bastasse o comércio de sutiãs com enchimento, lingerie, sapato alto, blush, batom, brilho labial e esmalte para crianças, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está com uma consulta pública aberta para liberar a venda de sombras infantis; e o palhaço do McDonalds continua solto, fazendo apresentações "gratuitas" em creches, escolas, orfanatos e hospitais, com "mensagens educativas", enquanto o Ministério da Saúde e a Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares) começa a distribuir uma cartilha estimulando a venda de alimentos saudáveis nas cantinas escolares.

Esses exemplos caracterizam bem as dissonâncias cognitivas que precisam ser trabalhadas por mães, pais e cuidadores em um cenário de pulsões desejantes indefinidas e de encantos insaciáveis, que levam à ansiedade, à agressividade e à depressão. A contribuição da família na realização do equilíbrio emocional e social das crianças e dos adolescentes passa pela compreensão do motivo que leva as pessoas a terem filhos, pela aceitação de que eles precisam ser embalados, acariciados e estimulados a amar o mundo em suas contradições, e por ações que deem materialidade à razão de ser familiar.

Cada família tem o seu próprio jeito de refletir e de lidar com essas questões. A troca de experiências torna-se, portanto, fundamental à reconstrução do valor simbólico da vida familiar no mundo do consumo. Deste modo, tomo a liberdade de contar um pouco de como lancei mão das nove peças que formam as cores do lado da família na analogia que fiz com o "Cubo de Rubik", para desenvolver métodos de sentidos e sentimentos, porque acho que as noções de bússola e de sensibilidade são mais eficazes do que a racionalidade na educação para o enfrentamento do consumismo. As nove peças que simbolizam essa pedagogia familiar empírica não se baseiam na renúncia ao prazer e, sim, na fuga das obrigações de usufruir o desnecessário.

Peça 1: Pedagogia do ACOLHIMENTO - Como primeiro exercício de educação para o consumo, procuramos não seguir as caracterizações tradicionalmente indicadas para quarto de bebê. Embora com todos os toques de preparação de um cantinho para quem é esperado, nossos dois filhos não chegaram apenas em um quarto, mas em um lar, com cores e decorações próprias e integradas. Para cada um, compus dez músicas infantis e eles nasceram ouvindo esse repertório em primeira mão. E criamos a sigla F.A.L.A. (Flávio, Andréa, Lucas e Artur), como uma forma bem particular de nos reconhecermos numa unidade de diálogo.

Peça 2: Pedagogia dos JOGOS - O oferecimento de várias opções de modalidades de esportes, sem cobrança de desempenho, tem sido um dos nossos esforços para estimular o gosto pela atividade física e para combater a tendência de reclusão forçada pela atração das telas. Chegamos a inventar um "Futebol de Sala", de um contra dois. Quando eles cresceram mais, passamos a frequentar o estádio, indo tanto para jogos do Fortaleza quanto do Ceará, a fim de que eles decidissem o time de suas preferências. Com a opção dos dois pelo alvinegro, a experienciação do ato de torcer e da psicologia da multidão ganhou regularidade e, na arena, eles podem dizer palavrões e comer todo tipo de alimento que se vende em estádio. Sou também coadjuvante no videogame e em jogos de tabuleiro, como o Monopoly, em que a F.A.L.A. se junta aos amigos deles para uma diversão que dá a oportunidade de sentir e refletir sobre a perversidade da riqueza concentrada.

Peça 3: Pedagogia da NARRATIVA - A descoberta do hábito de leitura começa em casa, com a intimidade do contato com livros de pano, livro de plástico para ler no banheiro e com a regularidade da leitura na hora de dormir. Histórias para sentir sempre são mais interessantes do que para entender. O que a criança precisa perceber é que a vida é uma grande narrativa e que a narrativa é parte indissociável do humano. Quando leio para os meus filhos ou quando vejo que eles notam que seus livros estão nas principais prateleiras da sala, a sensação que tenho é que tudo isso sugere significado e direção, fascínio pelo cotidiano e grandeza pela vida.

Quando a interpretação do mundo nasce de dentro de nós, de dentro da nossa cultura, estamos supostamente mais preparados para discernir a fabulação da publicidade e da propaganda em nossas vidas. (Continua na próxima quinta-feira, dia 27/09/2012).

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Socioeconomia da cultura em 4D - 13/09/2012

 O anúncio do pacote de investimentos de R$ 118 milhões na economia da cultura no Ceará, feito pelo governador Cid Gomes por ocasião da inauguração do Teatro Carlos Câmara, no dia 5 passado, foi um momento luminoso e inquietante para quem acredita que o potencial de realização de uma gente passa necessariamente pela força transformadora da sua vivência cultural. Foi também um sinal positivo de que a estratégia de desenvolvimento do estado contempla a criação de uma base de pensamento criativo e disruptivo, fundamental para a elevação do nosso poder comparativo e competitivo no médio e no longo prazos.

A fábrica clássica, que trata as pessoas como recursos de produção, e o capitalismo laissez-faire, que levou o planeta à exaustão de recursos naturais não renováveis, não são mais necessariamente sinônimos de progresso. O conceito de mercado e de mercadoria está mudando e o intangível, o renovável, o conteúdo artístico e cultural assumem o posto de matéria-prima mais cobiçada da economia pós-crescimento. Neste cenário em fase de configuração, os valores determinantes para o financiamento do setor cultural vão além dos interesses corporativos e da corrida dos governos pela fermentação da riqueza concentradora.

Dentro de um pensar grande e de uma olhada para o alto e para longe - e acredito que o governador Cid e o secretário da cultura, Professor Pinheiro, estão pensando e olhando assim - impõe-se uma nova ordem à nossa dinâmica de desenvolvimento, com perspectiva para o intercâmbio discursivo e prático entre economia e cultura. Abre-se um espaço para a esperança de uma política cultural com governança democrática, o que sugere o aproveitamento do melhor da evolução tecnológica para trabalhar a cultura como um diferencial local no jogo global multipolar. E isso requer que nos conheçamos, nos curtamos e nos respeitemos em uma nova lógica política, que passa por quatro dimensões culturais complementares e interligadas, que estou chamando de Cultura em 4D:

1) A primeira dimensão é: "Cultura para o lugar onde a vida acontece" (bairro, cidade etc). Nesta dimensão, o poder público prioriza a população, e não os produtores culturais, com programas preferencialmente realizados em parcerias dos órgãos de cultura com a EDUCAÇÃO, envolvendo as crianças e as famílias, promovendo o desenvolvimento de habilidades relativas às formas de manifestações culturais, a economia interna e o que de melhor existir nas artes e na literatura, para o refinamento técnico e estético.

2) A segunda dimensão é: "Cultura para quem faz cultura". Nesta dimensão, cabe ao poder público estabelecer parcerias com agências de apoio ao EMPREENDEDORISMO, que facilitam, dentre outros, o acesso a instrumentos, o incentivo à criação e à produção local, a capacitação para o entendimento de como elaborar e viabilizar um projeto, informações comentadas sobre editais públicos e privados, estímulo a criações individuais e coletivas e orientações de financiamentos formais e colaborativos (crowdfunding).

3) A terceira dimensão é: "Cultura de trocas". Nesta dimensão, a tarefa do poder público é somar força com as instituições da SOCIEDADE voltadas para a difusão cultural, de modo a contribuir para o apuro do nosso posicionamento com relação às tendências contemporâneas móveis e estacionárias, físicas e virtuais, por meio de aproximações, exercícios de improvisações, conversas com quem abriu trilhas exitosas, enfim, fazendo conexões entre bairros, cidades, estados e países, ampliando formas de sentir e de expressar o mundo.

4) A quinta dimensão é: "Cultura para quem chegar". Nesta dimensão, o parceiro natural da cultura é o TURISMO. Trata-se de ofertar respostas da nossa criatividade, imaginação e habilidade fazedora a quem escolhe o Ceará como destino de viagem. O jeito de acolher, de ser, de fazer negócios e de contar do que somos, em expressões de design, da culinária, das artes, da literatura, da moda, do artesanato, da arquitetura e da comunicação, soma-se às atrações naturais de litoral, serra e sertão, para abraçar essa atividade econômica, que, como mercado trans-setorial, apresenta os mais altos índices de crescimento no mundo.

Para ser eficaz, a socioeconomia da Cultura em 4D necessita de uma nova ordem organizacional, capaz de superar as restrições impostas pelo velho modelo concentrador aos vasos comunicantes responsáveis pela saúde do corpo social. Somente o poder público, exercendo o seu papel de regulador dos diversos interesses da coletividade, tem condições objetivas de abrir cenários radicalmente distintos para a construção de uma rede de contatos, de trabalho e de comercialização de bens e serviços culturais, livre de atravessadores indesejáveis. Refiro-me aos indesejáveis, porque é importante que existam os desejáveis empresários da cultura, aqueles que são capazes de desenvolver bons conceitos de negócios e de se estabelecerem por mérito.

Com a inclusão da cultura no circuito superior da criação de valor e diferenciação com impacto social e econômico, o Ceará pode estar inaugurando uma nova fase de pensamento estratégico. Está, portanto, mais do que na hora da criação de um ambiente virtual para realizações concretas; um espaço de nuvem onde tudo possa estar visivelmente interligado, facilitando o movimento de criação, confecção e comercialização dos nossos produtos e serviços culturais. Um lugar onde a cearensidade pudesse se pronunciar de forma viva e atemporal; um instrumento que poderia ser desenvolvido com uma metodologia de fácil navegação e de fácil abastecimento de informações.

Ao poder público cabe a obrigação de gestão integrada do nosso manancial de conteúdos. Isso poderia ser muito bem efetuado com a criação do que se poderia chamar de Portal de Oportunidades Culturais; uma plataforma de dinamização do tipo "wiki", capaz de quebrar barreiras e superar lacunas históricas, horizontalizando ofertas e demandas, onde todos pudessem postar referências de seus trabalhos, contatos e opções de uso liberado e venda. Dá para fazer isso com uma estrutura enxuta, ágil, com auxiliares técnicos que facilitassem a alimentação dos espaços e um comitê de moderadores para conferir se está tudo certo e para evitar qualquer hipótese de uso indevido da ferramenta.

Com esse portal, parte dos editais poderia ser direcionada à produção de conteúdos para a sua própria alimentação: produção de imagens de qualidade, textos, digitalizações de acervos, pagamento de Direitos Autorais, produção de documentários e entrevistas com quem produz cultura no Ceará e obras de domínio público. Tudo com proposições de sentido para facilitar a postagem e a localização, com palavras-chave e buscadores por temas, nomes, categorias, enfim, todo tipo imaginável de passagem. Mais do que dar impulso à economia, assegurar a justiça cultural é um dos caminhos possíveis para nos tornarmos uma sociedade com melhores índices de bem-estar e qualidade de vida.

Investir na socioeconomia da sensibilidade e da inteligência individual e coletiva, aproveitando os benefícios da evolução tecnológica digital, pede um modelo duplo de gestão oficial da cultura: a) a regulação do fluxo em rede das oportunidades, deixando o êxito comercial com a competência de cada um e dos coletivos; e b) o investimento direto na sistematização, definição e disseminação do patrimônio comum, assumindo a responsabilidade de pensar o todo e pela definição de um conceito de lugar. A cultura ajuda a olhar, a se ver e a ver os outros, por isso, o acesso livre a bens culturais é um direito e uma necessidade social, proporcionador de ganhos imensuráveis para a vida, com significativos efeitos econômicos.

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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Reencontro com Anna Torres - 30/08/2012


Há pessoas que temos a alegria de conhecer e que, mesmo vivendo longe, não deixam de fazer parte da nossa vida. A cantora Anna Torres é uma dessas pessoas que eu conheci e que fiquei com a certeza de que havia conhecido alguém. Fizemos muitas coisas juntos, desde parcerias musicais até um disco peterpanamericano, intitulado "Terra do Nunca", com arranjos do Paulo Lepetit, o baixista da Isca de Polícia, a banda do lendário Itamar Assumpção.

Mas ela, como a tartaruga Manuelita, de Maria Elena Walsh, foi embora para Paris. Correspondência vai, correspondência vem, até que um dia deu certo o nosso reencontro. Depois de quinze anos, Anna está em Fortaleza novamente, cumprindo uma série de shows da sua turnê de lançamento do CD "Divas", no qual reverencia grandes cantoras do jazz e da música brasileira, gravado no "Petit Journal Montparnasse", um destacado clube de jazz parisiense.

Tenho acompanhado o trabalho da Anna Torres no seu esforço de construção de uma carreira internacional. Vez por outra ela me atualiza das apresentações que faz constantemente na França, mas também em países como o Marrocos, a Tunísia, nos Emirados Árabes, na Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Recordo de um dos e-mails que ela me enviou em 2009, quando estava grávida da Marianna: com figurino branco, descalça e umbigo de fora, ela estreava a filha no teatro da Universidade Sorbonne (Paris V), com participação especial de batuque e capoeira, num espetáculo que se chamou "noite branca com Anna Torres".

No primeiro momento do nosso reencontro em Fortaleza ela me mostrou com ternura as fotos da Marianna, com quase três aninhos, na casa da avó, com quem está passando as férias na Itália. Como boa nordestina, Anna deu à filha um nome composto pelo nome do pai, Mário, e pelo seu, Anna. Como bom "tio" posso dizer que tenho uma responsabilidade nisso também, pois antes de fazermos o disco "Terra do Nunca", a Anna assinava apenas "Ana", com uma só letra "ene". Foi na construção do projeto, no desenrolar das nossas conversas, que ela decidiu colocar dois "enes" entre os dois "as".

Anna Torres segue uma trajetória que se aproxima da que foi construída por sua conterrânea, a cantora e pianista Tânia Maria, diva do jazz internacional, que foi para Paris em 1974, depois morou mais de quinze anos nos Estados Unidos e, em 1996, voltou à capital francesa. Ambas cantam emocionadas, com todo o corpo, com a alma, com o dom do improviso, com instinto e técnica. Tânia Maria é inclusive uma das grandes intérpretes reverenciadas por Anna no CD "Divas", ao lado de Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Edith Piaf, Elis Regina, Sarah Vaughan e Janis Joplin.

Em junho passado ela me falou por telefone que faria Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, com o repertório do "Divas". Ficou aquela indagação no ar: "E por que não o Ceará?" Sei que Anna Torres é uma cantora eclética, capaz de brilhar com um baião ou um samba, mas fiquei curioso com o conceito desse novo disco, onde ela canta músicas como "Night and day" (Cole Porter), "Fever" (Otis Blackwell), "Upa Neguinho" (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri), "Bala com bala" (Aldir Blanc / João Bosco), "Yatra Ta" (Tânia Maria), Summertime (George Gershwin) e "Ilha dos Amores" (Anna Torres / Saul Gutman), uma espécie de soul-bumbá que ela compôs para a festa de 400 anos da cidade de São Luís do Maranhão, fundada pelos franceses em oito de setembro de 1612.

Provoquei o poeta Alan Mendonça e ele aceitou assumir a produção dos shows da Anna no Ceará, juntamente com Lilian Alves e Jô Sousa, da Radiadora Cultural. O chef Faustino, que há quinze anos apoiou a turnê "Terra do Nunca", recebeu a Anna com acolhimento de bom cearense em seu novo restaurante, da rua Bauxita, no Mucuripe. A realização ficou aos cuidados da Diz, empresa da musicista Izaíra Silvino.

Assim, e com o acompanhamento de músicos locais, a cantora maranhense abriu os dias de Ceará ontem (29/08), no bar Novos Poetas, e continua hoje e amanhã (30 e 31/08) no Sesc-Iracema. No sábado (01/09) sobe a serra e canta no restaurante Basílico, em Guaramiranga, e encerra sua circulação pelo território musical cearense, participando domingo (02/09) de um descontraído sarau com o coletivo "Bora! Ceará Autoral Criativo", no Passeio Público. Ela demorou a voltar, mas chegou com várias opções de datas para o público rever e reouvir seu canto poderoso e suingado.

Conheci a Anna Torres em 1995, em São Luís, por ocasião do Festival Canta Nordeste, que era realizado pela Rede Globo na região, quando o Ricardo Black ganhou o prêmio de melhor intérprete, com a música "Latitude", parceria minha com Tato Fischer. Fiquei impressionado com a biomusicalidade da Anna Torres, com voz potente e seu gosto pelo cantar. Consegui o contato dela com o amigo e compositor Josias Sobrinho, autor de "Engenho de Flores" e outros tantos sucessos da música maranhense. Daí, surgiu a ideia de fazermos um trabalho experimental (Terra do Nunca), no qual pudéssemos expressar o que havia de convergência estética urbana entre um compositor do sertão do Ceará, uma cantora da faixa amazônica do Maranhão e um músico do interior de São Paulo.

Foi uma farra de liberdade criativa e desobrigada, esse ensaio de Música Plural Brasileira. O disco, que teve produção executiva da cantora Mona Gadêlha e de Rosely Lordello, contou com a participação de figuras especialmente agregadoras em sensibilidade, emoção e qualidade artística, como o trombonista Bocato, o guitarrista Lanny Gordin, o percussionista Gigante Brazil, o pianista Daniel Szafran, o rapper Rica Cavemam, o físico indo-paquistanês Harbans lal Arora e a iogue indiana Ved Kumari Arora. No meio das feras ela mostrou que era uma delas e topou gravar a voz no nível da banda e não com a banda servindo à intérprete. O resultado foi uma boa surpresa para mim, pela garra e pelo potencial artístico da Anna.

Em vários momentos pude constatar que ela era cantora de estúdio e de palco, de técnica e de emoção. Por ocasião dos shows que fizemos, lançando o "Terra do Nunca", eu sempre ficava admirado com a desenvoltura dela. Foi assim nas ruas do bairro Aerolândia, no bar The Wall; no aconchego do Sindbar, do Sindicato dos Jornalistas; no salão animado do Domínio Público, na Praia de Iracema; no ruge-ruge do projeto "BEC Seis e Meia", no anexo do Theatro José de Alencar; e na quadra de esportes da "Broadway", na praia de Canoa Quebrada, show que contou com a participação da cantora paulistana Vange Milliet.

Não estou contando tudo isso por saudosismo, a minha intenção com esse rápido flashback é juntar as pontas de dois momentos unidos por quinze anos de duas passagens de uma artista pelo mesmo lugar e fazer a devida saudação ao que em Anna Torres me parece permanecer entre o experimentalismo pop do "Terra do Nunca" e a predominância jazzística do "Divas", que é o valor artístico e o espírito indomável dessa guerreira cafuza; a menininha Ana Maria Lopes Torres, que nasceu em Lago da Pedra, nos confins do Maranhão, que um dia sonhou ser cantora e fez por onde merecer o seu sonho.