sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Família e consumo no cubo de Rubik (Final) - 30/09/2012


Na coluna da quinta-feira passada recorri à figura do cubo de Rubik – aquele quebra-cabeça colorido e tridimensional, conhecido como “cubo mágico” – como metáfora da educação para o consumo, do ponto de vista da intervenção familiar. Entendendo que cada família tem o seu próprio jeito de refletir e de lidar com a questão, e convicto da necessidade de troca dessas experiências, tomei a liberdade de contar um pouco de como lancei mão das nove peças que formam o lado da família nesse “cubo mágico”, tratando inicialmente da pedagogia do “Acolhimento”, dos “Jogos” e da “Narrativa”. O assunto segue hoje em breves relatos das demais “pedagogias” e nas considerações finais.

Peça 4: Pedagogia da ARTE – Um dos pontos que tornam as crianças mais frágeis diante do ataque da publicidade é a falta de chance da experiência estética. As alternativas ao lixo da massificação dependem de um esforço extra da família para serem acessadas, adquiridas e assimiladas pelos filhos. Em um mundo onde a criatividade e a inovação ganham dimensões estratégicas sociais e econômicas, a precariedade dos parâmetros estéticos é um limitante do desenvolvimento individual e coletivo. Um dos recursos que funcionam muito bem com os nossos filhos é o da escolha separada para a curtição conjunta. Isso vale para literatura, cinema e música. No som do carro, por exemplo, cada qual escolhe um CD e, em rotatividade consentida, todos escutam a preferência do outro, dando ensejo a uma rica troca de influências.

Peça 5: Pedagogia do LETRAMENTO VIRTUAL – No mundo social virtual é comum a sobrecarga de informações e a constrangedora pressão de consumo de novos equipamentos e aplicativos como obrigação social. A vivência excessiva nesse mundo tende a ampliar a agilidade mental e a aumentar a capacidade de processamento de informações no cérebro do usuário, mas, além de produzir efeitos bioquímicos semelhantes aos das drogas, reduz o nível de empatia, afeta a memória de longo prazo e compromete a formação da consciência. Na tentativa de aproveitar o máximo das maravilhas da evolução da internet e das tecnologias digitais, criamos em nossa casa duas regras básicas: 1) não devemos expor nos logradouros públicos e nas áreas privadas do cyberespaço o que não estivermos confortáveis em mostrar na realidade física; 2) assim como no mundo social físico, a vida virtual tem anonimato relativo e precisa de experiências subjetivas que só podem ser desenvolvidas com tempo para o ócio e para o devaneio.

Peça 6: Pedagogia da OFICINA – A maneira mais contundente que encontramos para dizer aos nossos filhos que a vida de estudante deles tem valor de fato, foi criando em casa um mesmo ambiente de produção para adultos e crianças. Assim, montamos um escritório com bancada de quatro estações de trabalho e equalizamos a importância do que fazemos com as tarefas escolares deles. É uma oficina da casa, onde podemos nos ajudar mutuamente nos nossos afazeres. Em muitas circunstâncias, quando estou escrevendo, escuto a voz dos meus filhos dizendo que algo não está claro ou sugerindo que eu troque determinada palavra. E as sugestões deles são sempre consideradas, seja com alterações ou com esclarecimentos. Eles fazem isso com o intuito de contribuir, da mesma forma que a mãe deles e eu temos a liberdade de comentar o que eles fazem, sem qualquer receio de intromissão (Embora, claro, nem sempre sejamos considerados).

Peça 7: Pedagogia da VIAGEM – Esse recurso educativo familiar é um dos meus preferidos. A definição do destino, a arrumação das coisas e a intensificação da convivência por um determinado período é fundamental para ampliarmos o conhecimento um do outro, em zonas de comportamento que no cotidiano não temos a oportunidade de transitar juntos. Procurar novidades a partir de nós, mas estando em outro lugar, é participar um pouco de realidades distintas, sentir como outras pessoas vivem e observar como, por terem outros traços culturais, encontraram soluções diferentes para as mesmas necessidades humanas que temos. Nas nossas viagens sempre priorizamos a fotografia na captura de imagens. Diferentemente da filmadora, a máquina fotográfica facilita o treinamento do olhar; com ela tende-se mais a escolher o objeto a ser fotografado. Depois de cada viagem costumo sentar com o Lucas e o Artur para fazer o jornal "Aventuras", que está na trigésima edição e completará dez anos em 2013.

Peça 8: Pedagogia da DESCOMPRESSÃO – O patrocínio da "pedocracia", como o poder da criança acima da autoridade dos pais e dos professores, é uma das mais poderosas táticas da ideologia do consumismo. No "cubo mágico" da educação para o consumo, a atitude de construção de alternativas simbólicas a essa situação prática é um dos movimentos mais difíceis de serem feitos pelo lado da família. Para romper com essa condição de permanente estresse social causado pela busca da felicidade no objeto, a experiência mais bem estruturada que realizamos na infância dos nossos filhos é a Festa do Saci, na qual eles e os amigos podem se divertir em brincadeiras de suspensão da lógica consumista cotidiana, como um exercício imaginativo de desestabilização do estabelecido. Buscamos o alívio da pressão do consumismo também em outras práticas do sentido contrário, tais como o esforço para estarmos juntos na hora das refeições e a priorização do Deus amoroso nas orações antes de dormir.

Peça 9: Pedagogia da EMANCIPAÇÃO – Não há uma única fronteira entre a proteção e a emancipação dos nossos filhos. Na educação familiar para o consumo esse é um ponto crítico que traz em si indagações sobre os limites do cuidado excessivo e da autonomia forçada. Para conduzir essa questão propus na nossa casa a metáfora do ninho e da árvore esgalhada. Da varanda do prédio olhamos para as ruas e avenidas que deu para a vista alcançar e fomos comparando cada via com os galhos das árvores. E fui falando que primeiro eles andariam na rua apenas do mesmo lado da calçada, depois passariam de fase e poderiam atravessar o asfalto; em outro momento mudariam de rua até cruzarem bairros etc. Já tivemos um dia para andar de ônibus e ainda insistimos em circular de bicicleta pela cidade. Esta referência de preparação para o uso da cidade vale para qualquer evolução de liberdade física, moral e intelectual.

Assim como temos nos esforçado para praticar essas pedagogias derivadas da vontade de acertar na criação dos filhos, cada família naturalmente vai inventando seus modos de educar para o consumo. A título de ilustração, defini dez juízos aparentemente lógicos do chamo de falsas verdades do consumismo, instaladas em maior ou menor intensidade no nosso senso comum: 1) a autonomia dispensa liberdade e direito; 2) quem é nativo digital é mais inteligente; 3) o cybermundo prescinde do mundo concreto; 4) para participar basta clicar; 5) para ser feliz na web não precisa ser feliz; 6) o conhecimento é desnecessário para o sucesso; 7) ser bem-sucedido é uma questão de esperteza; 8) não há sucesso sem droga química ou psíquica; 9) a autoajuda dispensa a espiritualidade; e 10) nunca a realidade esteve tão complexa.

As articulações educativas para a vida em sociedade, feitas na dinâmica das nove peças do lado da família no cubo da educação para o consumo, passam diretamente pelas peças do mundo escolar, das mídias, do social físico, do social virtual e da espiritualidade. O êxito de cada giro, de cada acoplamento, de cada combinação de cores está sempre associado ao eixo mágico que permite a consciência e o discernimento mais profundo, que é a cultura. Essas pedagogias são contranarrativas cotidianas com as quais pretendemos aprender a "desaprender", a informar, formar, "desenformar", sentir, evocar, encantar e socializar a ideia de que viver é muito mais do que consumir.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Família e consumo no cubo de Rubik (I) - 20/09/2012

Todo mundo conhece o popular "cubo mágico", aquele quebra-cabeça colorido e tridimensional. O nome de batismo dele é Cubo de Rubik porque foi inventado por Ernö Rubik, um professor de design da Academia de Artes de Budapeste (Hungria). Como todo cubo, o de Rubik tem seis lados e, na sua versão mais comum, cada lado é dividido em nove peças articuladas (3x3x3), que podem ser giradas livremente, criando diversas possibilidades de configurações em cada um dos lados, desde o agrupamento em peças com variadas cores até a composição com todas as cores iguais.

Tomei a figura desse brinquedo como uma metáfora da educação para o consumo, do ponto de vista da intervenção familiar. Cada lado do cubo representa, nessa minha ilustração, uma instância de relacionamento da família nas suas práticas parentais educativas: o mundo escolar, o das mídias, o social físico, o social virtual e o da espiritualidade. O eixo "mágico" que permite o entrelaçamento desses seis mundos no cubo da educação é a cultura. E assim, o bloco inteiro pode ser movimentado, ora na vertical, ao dizer "não", e ora na horizontal, quando diz "sim".

Educar para o consumo é criar condições para o entendimento e a convivência crítica com as "verdades" efêmeras, comuns em uma sociedade contagiada pelo consumismo e suas falsas ofertas de ideal de felicidade. Como quem busca encontrar novas combinações de cores no "Cubo de Rubik", organizei alguns exemplos de como a função simbólica e orientadora da família pode contribuir para contornar essa situação causadora de tantos problemas físicos e psíquicos no mundo contemporâneo, e os inclui na palestra "A Família na Educação para o Consumo" que farei às 19:30, do próximo dia 26, para pais da Educação Infantil e do Ensino Médio do Colégio Santa Cecília, em Fortaleza.

Em que pese a negligência social com relação à vulnerabilidade da função estruturante da família no seu processo de adaptação e de reinvenção de laços afetivos, não podemos esquecer que cerca de 70% dos lares brasileiros têm filhos, sendo, em números redondos, 50% de casais e 20% de famílias monoparentais. Sem contar que o levantamento dos "Arranjos Familiares Residenciais" (Censo Demográfico do IBGE - 2010) não contempla filhos que vivem na condição de guarda compartilhada. A expressividade desses percentuais confere destaque especial ao papel da família (na configuração que for) no bloco de articulações educativas para a vida em sociedade.

A situação da família é muito delicada. Não é fácil lidar com a pressão consumista que chega a todo momento, de todas as formas e de todos os lados: o clipe de meninas de avental e peruca rosa, imitando as "empreguetes" da novela "Cheias de Charme" (TV Globo) teve mais de dez milhões de acessos no YouTube; como se não bastasse o comércio de sutiãs com enchimento, lingerie, sapato alto, blush, batom, brilho labial e esmalte para crianças, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está com uma consulta pública aberta para liberar a venda de sombras infantis; e o palhaço do McDonalds continua solto, fazendo apresentações "gratuitas" em creches, escolas, orfanatos e hospitais, com "mensagens educativas", enquanto o Ministério da Saúde e a Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares) começa a distribuir uma cartilha estimulando a venda de alimentos saudáveis nas cantinas escolares.

Esses exemplos caracterizam bem as dissonâncias cognitivas que precisam ser trabalhadas por mães, pais e cuidadores em um cenário de pulsões desejantes indefinidas e de encantos insaciáveis, que levam à ansiedade, à agressividade e à depressão. A contribuição da família na realização do equilíbrio emocional e social das crianças e dos adolescentes passa pela compreensão do motivo que leva as pessoas a terem filhos, pela aceitação de que eles precisam ser embalados, acariciados e estimulados a amar o mundo em suas contradições, e por ações que deem materialidade à razão de ser familiar.

Cada família tem o seu próprio jeito de refletir e de lidar com essas questões. A troca de experiências torna-se, portanto, fundamental à reconstrução do valor simbólico da vida familiar no mundo do consumo. Deste modo, tomo a liberdade de contar um pouco de como lancei mão das nove peças que formam as cores do lado da família na analogia que fiz com o "Cubo de Rubik", para desenvolver métodos de sentidos e sentimentos, porque acho que as noções de bússola e de sensibilidade são mais eficazes do que a racionalidade na educação para o enfrentamento do consumismo. As nove peças que simbolizam essa pedagogia familiar empírica não se baseiam na renúncia ao prazer e, sim, na fuga das obrigações de usufruir o desnecessário.

Peça 1: Pedagogia do ACOLHIMENTO - Como primeiro exercício de educação para o consumo, procuramos não seguir as caracterizações tradicionalmente indicadas para quarto de bebê. Embora com todos os toques de preparação de um cantinho para quem é esperado, nossos dois filhos não chegaram apenas em um quarto, mas em um lar, com cores e decorações próprias e integradas. Para cada um, compus dez músicas infantis e eles nasceram ouvindo esse repertório em primeira mão. E criamos a sigla F.A.L.A. (Flávio, Andréa, Lucas e Artur), como uma forma bem particular de nos reconhecermos numa unidade de diálogo.

Peça 2: Pedagogia dos JOGOS - O oferecimento de várias opções de modalidades de esportes, sem cobrança de desempenho, tem sido um dos nossos esforços para estimular o gosto pela atividade física e para combater a tendência de reclusão forçada pela atração das telas. Chegamos a inventar um "Futebol de Sala", de um contra dois. Quando eles cresceram mais, passamos a frequentar o estádio, indo tanto para jogos do Fortaleza quanto do Ceará, a fim de que eles decidissem o time de suas preferências. Com a opção dos dois pelo alvinegro, a experienciação do ato de torcer e da psicologia da multidão ganhou regularidade e, na arena, eles podem dizer palavrões e comer todo tipo de alimento que se vende em estádio. Sou também coadjuvante no videogame e em jogos de tabuleiro, como o Monopoly, em que a F.A.L.A. se junta aos amigos deles para uma diversão que dá a oportunidade de sentir e refletir sobre a perversidade da riqueza concentrada.

Peça 3: Pedagogia da NARRATIVA - A descoberta do hábito de leitura começa em casa, com a intimidade do contato com livros de pano, livro de plástico para ler no banheiro e com a regularidade da leitura na hora de dormir. Histórias para sentir sempre são mais interessantes do que para entender. O que a criança precisa perceber é que a vida é uma grande narrativa e que a narrativa é parte indissociável do humano. Quando leio para os meus filhos ou quando vejo que eles notam que seus livros estão nas principais prateleiras da sala, a sensação que tenho é que tudo isso sugere significado e direção, fascínio pelo cotidiano e grandeza pela vida.

Quando a interpretação do mundo nasce de dentro de nós, de dentro da nossa cultura, estamos supostamente mais preparados para discernir a fabulação da publicidade e da propaganda em nossas vidas. (Continua na próxima quinta-feira, dia 27/09/2012).

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Socioeconomia da cultura em 4D - 13/09/2012

 O anúncio do pacote de investimentos de R$ 118 milhões na economia da cultura no Ceará, feito pelo governador Cid Gomes por ocasião da inauguração do Teatro Carlos Câmara, no dia 5 passado, foi um momento luminoso e inquietante para quem acredita que o potencial de realização de uma gente passa necessariamente pela força transformadora da sua vivência cultural. Foi também um sinal positivo de que a estratégia de desenvolvimento do estado contempla a criação de uma base de pensamento criativo e disruptivo, fundamental para a elevação do nosso poder comparativo e competitivo no médio e no longo prazos.

A fábrica clássica, que trata as pessoas como recursos de produção, e o capitalismo laissez-faire, que levou o planeta à exaustão de recursos naturais não renováveis, não são mais necessariamente sinônimos de progresso. O conceito de mercado e de mercadoria está mudando e o intangível, o renovável, o conteúdo artístico e cultural assumem o posto de matéria-prima mais cobiçada da economia pós-crescimento. Neste cenário em fase de configuração, os valores determinantes para o financiamento do setor cultural vão além dos interesses corporativos e da corrida dos governos pela fermentação da riqueza concentradora.

Dentro de um pensar grande e de uma olhada para o alto e para longe - e acredito que o governador Cid e o secretário da cultura, Professor Pinheiro, estão pensando e olhando assim - impõe-se uma nova ordem à nossa dinâmica de desenvolvimento, com perspectiva para o intercâmbio discursivo e prático entre economia e cultura. Abre-se um espaço para a esperança de uma política cultural com governança democrática, o que sugere o aproveitamento do melhor da evolução tecnológica para trabalhar a cultura como um diferencial local no jogo global multipolar. E isso requer que nos conheçamos, nos curtamos e nos respeitemos em uma nova lógica política, que passa por quatro dimensões culturais complementares e interligadas, que estou chamando de Cultura em 4D:

1) A primeira dimensão é: "Cultura para o lugar onde a vida acontece" (bairro, cidade etc). Nesta dimensão, o poder público prioriza a população, e não os produtores culturais, com programas preferencialmente realizados em parcerias dos órgãos de cultura com a EDUCAÇÃO, envolvendo as crianças e as famílias, promovendo o desenvolvimento de habilidades relativas às formas de manifestações culturais, a economia interna e o que de melhor existir nas artes e na literatura, para o refinamento técnico e estético.

2) A segunda dimensão é: "Cultura para quem faz cultura". Nesta dimensão, cabe ao poder público estabelecer parcerias com agências de apoio ao EMPREENDEDORISMO, que facilitam, dentre outros, o acesso a instrumentos, o incentivo à criação e à produção local, a capacitação para o entendimento de como elaborar e viabilizar um projeto, informações comentadas sobre editais públicos e privados, estímulo a criações individuais e coletivas e orientações de financiamentos formais e colaborativos (crowdfunding).

3) A terceira dimensão é: "Cultura de trocas". Nesta dimensão, a tarefa do poder público é somar força com as instituições da SOCIEDADE voltadas para a difusão cultural, de modo a contribuir para o apuro do nosso posicionamento com relação às tendências contemporâneas móveis e estacionárias, físicas e virtuais, por meio de aproximações, exercícios de improvisações, conversas com quem abriu trilhas exitosas, enfim, fazendo conexões entre bairros, cidades, estados e países, ampliando formas de sentir e de expressar o mundo.

4) A quinta dimensão é: "Cultura para quem chegar". Nesta dimensão, o parceiro natural da cultura é o TURISMO. Trata-se de ofertar respostas da nossa criatividade, imaginação e habilidade fazedora a quem escolhe o Ceará como destino de viagem. O jeito de acolher, de ser, de fazer negócios e de contar do que somos, em expressões de design, da culinária, das artes, da literatura, da moda, do artesanato, da arquitetura e da comunicação, soma-se às atrações naturais de litoral, serra e sertão, para abraçar essa atividade econômica, que, como mercado trans-setorial, apresenta os mais altos índices de crescimento no mundo.

Para ser eficaz, a socioeconomia da Cultura em 4D necessita de uma nova ordem organizacional, capaz de superar as restrições impostas pelo velho modelo concentrador aos vasos comunicantes responsáveis pela saúde do corpo social. Somente o poder público, exercendo o seu papel de regulador dos diversos interesses da coletividade, tem condições objetivas de abrir cenários radicalmente distintos para a construção de uma rede de contatos, de trabalho e de comercialização de bens e serviços culturais, livre de atravessadores indesejáveis. Refiro-me aos indesejáveis, porque é importante que existam os desejáveis empresários da cultura, aqueles que são capazes de desenvolver bons conceitos de negócios e de se estabelecerem por mérito.

Com a inclusão da cultura no circuito superior da criação de valor e diferenciação com impacto social e econômico, o Ceará pode estar inaugurando uma nova fase de pensamento estratégico. Está, portanto, mais do que na hora da criação de um ambiente virtual para realizações concretas; um espaço de nuvem onde tudo possa estar visivelmente interligado, facilitando o movimento de criação, confecção e comercialização dos nossos produtos e serviços culturais. Um lugar onde a cearensidade pudesse se pronunciar de forma viva e atemporal; um instrumento que poderia ser desenvolvido com uma metodologia de fácil navegação e de fácil abastecimento de informações.

Ao poder público cabe a obrigação de gestão integrada do nosso manancial de conteúdos. Isso poderia ser muito bem efetuado com a criação do que se poderia chamar de Portal de Oportunidades Culturais; uma plataforma de dinamização do tipo "wiki", capaz de quebrar barreiras e superar lacunas históricas, horizontalizando ofertas e demandas, onde todos pudessem postar referências de seus trabalhos, contatos e opções de uso liberado e venda. Dá para fazer isso com uma estrutura enxuta, ágil, com auxiliares técnicos que facilitassem a alimentação dos espaços e um comitê de moderadores para conferir se está tudo certo e para evitar qualquer hipótese de uso indevido da ferramenta.

Com esse portal, parte dos editais poderia ser direcionada à produção de conteúdos para a sua própria alimentação: produção de imagens de qualidade, textos, digitalizações de acervos, pagamento de Direitos Autorais, produção de documentários e entrevistas com quem produz cultura no Ceará e obras de domínio público. Tudo com proposições de sentido para facilitar a postagem e a localização, com palavras-chave e buscadores por temas, nomes, categorias, enfim, todo tipo imaginável de passagem. Mais do que dar impulso à economia, assegurar a justiça cultural é um dos caminhos possíveis para nos tornarmos uma sociedade com melhores índices de bem-estar e qualidade de vida.

Investir na socioeconomia da sensibilidade e da inteligência individual e coletiva, aproveitando os benefícios da evolução tecnológica digital, pede um modelo duplo de gestão oficial da cultura: a) a regulação do fluxo em rede das oportunidades, deixando o êxito comercial com a competência de cada um e dos coletivos; e b) o investimento direto na sistematização, definição e disseminação do patrimônio comum, assumindo a responsabilidade de pensar o todo e pela definição de um conceito de lugar. A cultura ajuda a olhar, a se ver e a ver os outros, por isso, o acesso livre a bens culturais é um direito e uma necessidade social, proporcionador de ganhos imensuráveis para a vida, com significativos efeitos econômicos.

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