sexta-feira, 30 de março de 2012

Cidadania orgânica / 29.03.2012 / Diário do Nordeste


A crise de significados resultante das grandes transformações da vida atual tem encontrado seu contraponto em um novo tipo de prática cidadã. A nova geografia humana, de espacialidade concomitantemente física e virtual, desenvolve-se na encruzilhada dos efeitos dos hábitos insustentáveis com sua antítese, que é a percepção da necessidade de invenção de estilos de vida mais ajustados à alteridade, nos quais se inclui o respeito à preservação planetária.

Conceituei de cidadania orgânica essas reações e atitudes que têm brotado em face ao meio social, cultural e político. A cidadã, o cidadão orgânico, conforme procurei definir mais detalhadamente em palestra que fiz no 3º Encontro do Movimento Pró-Árvore, domingo passado (25/03), no Centro de Referência Ambiental do Parque Ecológico do Cocó, é alguém que não se limita às categorizações de classe, poder, escolaridade e de primazia histórica, para levar a efeito o seu sentimento, valor e senso de possibilidade diante da vida e do viver.

A formulação desse conceito passou pelo que tenho observado da disposição de muita gente, inclusive a minha, de acreditar que as transformações são momentos ideais para aprendermos a nos encontrar com o próximo e conosco mesmos.

O entendimento de que não estamos sozinhos nas contradições do nosso tempo soma-se ao aproveitamento das dúvidas como oportunidades de redefinições de rumos, levando-nos a um agir integral e integrado por crenças, experiências, conhecimentos e saberes.

Cheguei também a esse conceito depois de ter proposto duas das quatro figuras que completam as metáforas caracterizadoras das grandes transformações da humanidade.

Esta argumentação está no meu artigo "Metáforas da modernidade" (DN, 03/09/2009), mas recapitulo aqui para facilitar o entendimento do que quero dizer: o "Caçador" (pré-modernidade) é o predador nômade pouco interessado em reposição; o "Jardineiro" (modernidade), com sua razão iluminada é o especialista em separar ervas daninhas; o "Lenhador" (hipermodernidade), representa o hiperbólico destruidor do ecossistema; e o "Lavrador" (pós-hipermodernidade), seria ou será aquele indivíduo identificado com o equilíbrio da terra, o cultivador da relação cultura e natureza.


Nos esforços para enxergar melhor quem é a cidadã e o cidadão orgânico a desafiar o presentismo, o cientificismo, o individualismo, o imediatismo, o consumismo, enfim, a todos os "ismos" decorrentes dos exageros esterilizantes da ação do "Lenhador", procurei identificar e publiquei no artigo "A consciência ecoplanetária" (DN, 26/05/2011) alguns dos atos virtuosos da humanidade que adubam a cidadania orgânica, tais como a cooperação, a tolerância, generosidade, identidade, moralidade, alteridade e gentileza.

Para o evento do Movimento Pró-Árvore organizei dez traços que distingo nas pessoas como próprios de quem pratica cidadania orgânica:

01 - A cidadania orgânica expressa-se nas pessoas que dialogam com o mundo, interagem com os acontecimentos globais, mas sentem-se bem com pequenas conquistas de prazer ético e estético, como a alegria de ter plantado uma árvore, publicado na internet um novo ângulo que capturou com o celular da paisagem urbana ou saber que vingou sua dica de um bom espetáculo.

02 - Fortuna para essas pessoas é um estado de contentamento, algo que se confunde com felicidade e não com aquisição de bens e haveres. Sente que ser uma pessoa de valor é mais importante do que ser rico, famoso, popular e depender de qualquer performance de sucesso acadêmico, artístico, sexual, caritativo ou profissional.

03 - Os cidadãos e as cidadãs orgânicas não querem apenas satisfazer necessidades, por isso não se subordinam à economia como o paradigma da organização social. A perturbação da ambição material cede nessas pessoas lugar ao paciente aprimoramento do ser. Elas não vão esperar pela tragédia ecoplanetária para se reumanizarem.

04 - Quem pratica cidadania orgânica se movimenta pro crença na subjetividade e não por medo do fim, porque sabe que não existe fim... Já no século XVIII, embora motivado para provar que a química não era alquimia, o cientista francês Antoine Lavoisier (1743 - 1794) "filosofou", ao declarar que "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma".
05 - No lugar de dogmas, cultiva a liberdade de ser flexível e experiencia de modo próprio e convicção íntima as sabedorias de distintos pensamentos, visões e saberes. O vigor da sua universalidade está na associação mútua que faz entre o seu futuro e o futuro do planeta e o valor da cidadania está na sua gratidão à vida.


06 - Impulsionadas pela indignação, pela esperança e por se sentirem parte do todo, essas pessoas são do lugar onde suas vidas acontecem. Não precisam se restringir a territórios, partidos, classes, categorias, gênero, etnias, enfim, defender ideologias de grupos específicos para atuar na vida social, cultural e política. Nem precisam ser intelectuais, como Gramsci desenvolveu em sua teoria política.

07 - Atua em um plano político onde a política vigente, marcada pela degeneração dos princípios republicanos e pela profissionalização de candidatos, normalmente não consegue mais transitar: o interesse social.

08 - O cidadão orgânico e a cidadã orgânica não negam as instituições; procuram fortalecê-las, mas sabem que, como o avanço na melhoria institucional não depende só de votar, procuram combater os vícios e exaltar as virtudes sociais, tomando partido pelo todo.

09 - Na cidadania orgânica as pessoas falam com as demais e dão ouvidos à natureza, por meio do seu jeito de ser... Vivem seu tempo e interferem na vida social, cultural e política, sem precisarem sacrificar seus laços familiares, as amizades e sem apagar seus dias de infância.

10 - A narrativa que dará suporte à ordem mundial pós-hipermodernidade vem sendo exercitada mais fortemente nas periferias. Existe uma sutil memória coletiva reprimida pela racionalidade moderna, que está nos contingentes mantidos fora das abordagens tradicionais do desenvolvimento, que já não tem vergonha de se expressar.

Com o cotidiano cada vez mais exposto, o improvável cedeu espaço ao possível, ampliando o impulso crítico e fazendo com que a vivência cidadã orgânica passasse a ser uma estratégia política das pessoas que se esforçam para que a metáfora do futuro seja a do "Lavrador".

E essas pessoas muitas vezes só precisam ter um pouco mais de conhecimento do que fazer. Por isso, sugeri que o Movimento Pró-Árvore publique, em versão impressa e digital, um "Código de Defesa da Árvore", de modo que, no que diz respeito à questão do verde, a cidadania orgânica possa ser praticada em qualquer lugar, por qualquer pessoa desperta, dotada de pensamento amoroso e rebelde, no seu jeito de participar da vida, com integridade cultural, ambiental, espiritual e política.



sábado, 24 de março de 2012

Os 25 anos do Itaú Cultural - 22/03/2012 - Diário do Nordeste


O Auditório Ibirapuera, gerido com recursos próprios (não incentivados) do Itaú Cultural, em parceria de conceito público-privado com a Prefeitura de São Paulo, ficou com seus oitocentos lugares ocupados. Eram artistas, gente de mídia, produtores e gestores culturais que no dia 14 passado foram prestigiar o evento comemorativo dos 25 anos desse instituto, reconhecido como um dos maiores incentivadores da cultura brasileira. Estive lá, na companhia do guitarrista Luiz Waack e fiquei contente por ter encontrado amigas e amigos queridos.

Sai pensativo, depois de ouvir as falas de Roberto Egydio Setúbal, diretor-presidente do banco Itaú, da presidente Milú Villela e do superintendente Eduardo Saron, do Instituto Itaú Cultural, as saudações de autoridades da cultura e de assistir a um envolvente show, que homenageou Luiz Gonzaga (1912 - 1989) em seu centenário, conduzido por Gilberto Gil, com a participação de Silvério Pessoa e da banda Rumos Coletivo, formada por mais de um dezena de músicos reunidos para aquela apresentação.

Pensei no quanto nesses 25 anos o Itaú Cultural contribuiu para refinar a relação da iniciativa privada com a cultura no Brasil, sempre valorizando a criatividade e não a carência em suas ações. Para um País acostumado com o desestímulo ao autorreconhecimento, o respeito às manifestações artísticas e culturais, demonstrado concretamente por uma instituição do mercado financeiro, reforça a noção da cultura como riqueza. Na nossa construção simbólica comum é importante que o maior banco privado brasileiro evidencie que a arte e a cultura têm valor.

A política cultural do Itaú torna-se assim um modo de atuar socialmente, que é bom para a imagem empresarial e para a sociedade. A coerência de um compromisso de retribuir às pessoas algo além do imediato eleva o sentido de troca e de uso, próprio da economia de mercado, a um patamar diferente do negócio específico, agregando valor intangível ao patrimônio dos acionistas e proporcionando melhoria da qualidade de vida no campo social. O que para muitos só tem sentido com a obtenção de vantagens pontualmente objetivas, no Itaú Cultural essa razão prática salta para o processo contínuo da sustentabilidade social.

A presença de uma razão cultural nos hábitos corporativos, alcança o que as pessoas têm de mais profundo em si que é a sua cultura, constante e intensamente ofuscada pelas telas da comunicação de massa. Essa compreensão também parece ir além dos "custos de oportunidade" da tradicional responsabilidade cultural. Sempre à frente, o discurso social do Itaú Cultural rompe com o caráter utilitário, estimulando às relações significativas entre as pessoas, a arte e a cultura.

O apoio às expressões da nossa inventividade que não estão necessariamente dominadas pela indústria cultural e que acontecem nas diversas regiões do País, também é um aspecto admirável na ação do Itaú Cultural. Serve, inclusive, de exemplo a muitos gestores públicos que, na ânsia por popularidade, apelam ao pragmatismo vulgar, usando recursos oficiais para a promoção do que já está comercialmente consagrado.

No Brasil, onde grande parte das empresas investe na ordem totêmica cultural como simples mercadoria, o Itaú se destaca por uma inteligência que não violenta a arte. Um dos erros mais difíceis de serem reconhecidos por marqueteiros públicos e privados é o tratamento da cultura como algo socialmente dependente da economia. A arte, o produto e o serviço cultural, diferentemente da mercadoria e da venda em si, não devem ficar engessados em formas físicas, com controle técnico; eles valem para a sociedade pelo conceito que exteriorizam.

Ao colocar o interesse comum dos signos no mesmo movimento da produção de bens materiais, mas considerando as peculiaridades de cada um, a empresa desenvolve uma política de transmissão de valores e princípios, que é pública. Com coerência entre discurso e prática, consegue associar bem comum e bem próprio, numa distinta estratégia de marca desejada. O que há de bem-sucedido na trajetória do Itaú Cultural é que o instituto não está subordinado às técnicas e ao tempo do marketing; ele representa um estilo de empresa que potencializa o acesso qualificado à cultura.

Digo isso, porque tive a satisfação de acompanhar parte das movimentações iniciais do Itaú Cultural. Lembro-me que no início dos anos 1990, o então senador Lúcio Alcântara conseguiu convencer o empresário Olávo Setúbal (1923 - 2008), fundador do instituto, a implantar no Ceará um dos seus Centros de Informática e Cultura. Naquela época, sob a presidência do sociólogo Pedro Albuquerque, tínhamos em Fortaleza o Instituto Equatorial de Cultura Contemporânea, do qual eu era membro e consultor de comunicação e cultura.

As máquinas e os enormes equipamentos instalados na sede do Equatorial, na Praça Argentina Castelo Branco, disponibilizavam um banco de dados sobre arte brasileira, que enchiam os olhos de pesquisadores. Eram centenas de imagens digitais de obras de arte e centenas de artistas cadastrados. Orientada pelo artista plástico Antenor Lago, a meninada fazia as tarefas escolares e ainda levava impresso em papel fotográfico a reprodução das telas estudadas.

Nessa época, o Itaú Cultural era dirigido pelo arquiteto e urbanista Ernest de Carvalho Mange (1922 - 2005). Além do entusiasmo do Dr. Mange, contávamos com a orientação e o empenho da museóloga Maria Eugênia Saturni. Aliás, essa é uma característica das pessoas que atuam no Itaú Cultural. Vejo, hoje, por exemplo, a determinação e o compromisso do Edson Natale na parte de música do projeto Rumos Musical e deduzo que esse comportamento seja parte de uma filosofia. Mas voltando ao que eu vinha falando, o Equatorial fechou por volta de 1993 e perdemos a oportunidade de ter hoje uma ilha da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.

O Itaú Cultural atua na sintaxe geral do Brasil e não somente com aquela coisa convencionada da filarmônica, do erudito, do cult... Está em linha com o interesse contemporâneo da busca de fortalecimento de imagem corporativa e seu encontro com as expectativas da sociedade com relação as empresas. Com projetos que por si se revelam, o Itaú Cultural trata a cultura sem reticências no seu agir baseado na brasilidade e na promoção a cidadania.

Na dinâmica do mundo da cultura e da arte o Brasil conta com algumas instituições voltadas para a perenidade, como o Itaú Cultural, tais como o Centro Cultural Banco do Brasil, o Sesc-SP e o Centro Cultural Banco do Nordeste. A fusão das operações financeiras do Itaú com o Unibanco (2008) aproximou o Itaú Cultural do Instituto Moreira Salles, o que vem possibilitando uma série de ações conjuntas no que eles têm de valores comuns e de ações semelhantes, voltadas sobretudo para a digitalização e a difusão de acervos.

Com as transformações tecnológicas, geopolíticas, mercadológicas e de significados, há um espaço precioso de integração do bem entre a iniciativa privada e a cultura. É nessa dimensão que percebo a atuação e o papel modelo o Itaú Cultural; um instituto que ousou e continua ousando ser o que deve ser uma instituição privada que trabalha com a cultura. Intervindo numa vasta e complexa gama de intenções econômicas e políticas que, muitas vezes ocultam o nosso sistema significativo, o Itaú Cultural contribui de forma decisiva para o fortalecimento da cultura brasileira, tanto pelos projetos que desenvolve, quanto pelo exemplo de fazer isso bem feito e com decência.


quinta-feira, 15 de março de 2012

Sobre trabalho e orientação social - 15/03/2011 - Diário do Nordeste



O sentimento de que chegou a vez do Brasil no espaço econômico e político das nações é quase senso comum. A escalada na classificação de potências econômicas e as sucessivas articulações com blocos de países em circunstâncias assemelhadas de desenvolvimento demonstram que temos amadurecido.

Poucos países apresentam hoje condições de diversificação e de integração como o Brasil, com seu território continental, uma língua entendida em todo esse território, ainda sem graves conflitos étnicos e uma nova classe de consumo, configurando-se em um "mercado comum" sem par.

Essa relativa condição privilegiada do Brasil em um momento de crise internacional tem, contudo, suas vulnerabilidades. E uma delas, também já amplamente percebida é a falta de qualificação profissional para que o País possa encarar os desafios postos, de modo criativo e competitivo e para que as pessoas aproveitem as oportunidades que estão sendo colocadas.

Uma das grandes e perversas vantagens comparativas que tínhamos era um histórico de mão de obra barata e isso já não conta porque países como Índia e China desbancaram esse diferencial, oferecendo às corporações transnacionais condições de trabalho que conseguem ser mais precárias do que as nossas.

É um horror ter que admitir isso, mas não nos preparamos para estarmos capacitados profissionalmente para esse momento. Foi assim no período de escravidão, na acolhida aos imigrantes, na exploração da mulher no mercado de trabalho e, atualmente, com a escassez de trabalhadores com expertises em ciências básicas e engenharias.

A ausência de núcleos críticos, que pudessem influir na reversão dessa situação, faz com que corram soltas as conversas de inovação, preparação de talentos e prioridade nas pessoas. Na prática, seguimos sendo as consequências das nossas omissões e deformações coloniais, em suas passagens pelo significado da nossa rica e incomparável experiência de diversidade e adversidades.

Isso tem sido decisivo para que a questão do trabalho no Brasil ainda não tenha conseguido ultrapassar a noção de mão de obra. E, diga-se a tempo, de mão de obra barata. Não é à toa que o fluxo migratório dos países vizinhos tenha aumentado tanto. No lugar de decidirmos pagar melhor às pessoas, preferimos dar um jeito de substituí-las por outras, em situações mais difíceis de sobrevivência, como muitos bolivianos, peruanos, paraguaios, coreanos, africanos, haitianos e chineses sem escolaridade e sem qualificação que, com ou sem visto residem por aqui.

O compromisso do Brasil com a América do Sul passa pelo estímulo à integração e à criação de mercados atrativos regionais. Encontrar formas de resolver essa questão sem preconceito e sem demagogia seria melhor do que importar mão de obra. Por esse caminho, acabaremos cometendo um dia a lamentável atitude europeia e norte-americana de, depois de usufruir do suor dos desterrados, chutá-los para fora ou construir muros para que não se aproximem.

Por outro lado, está a forte pressão de empresas para que o País facilite o visto de trabalho de estrangeiros qualificados, aproveitando a crise europeia e estadunidense. O argumento é que muitos dos bons profissionais dos Estados Unidos e da Europa estão ansiosos por oportunidades de ganhar dinheiro no Brasil. O governo federal vem discutindo as formas de priorização desses talentos.

O que pode parecer uma repetição das imigrações do final do século XVIII e início do século XIX, quando milhões de famílias de trabalhadores europeus, japoneses e árabes, dentre outros, se integraram ao povo brasileiro, não passa de mais um arranjo pontual, que não resolve o problema. A inserção do Brasil no cenário global do trabalho não deve deixar de contemplar os brasileiros.

A questão nos leva a pensar sobre que modelo de participação positiva e proativa no mundo, poderia seguir a tradição do Brasil enquanto sociedade aberta e sempre disposta a incorporar as qualidades de estrangeiros, mas, ao mesmo tempo, assegurar uma escala doméstica de consumo popular e, para isso, a população precisa ter renda e, consequentemente, trabalho.

Estamos sem uma hipótese ambiciosa. Algo que saiba aproveitar o potencial híbrido de mercado interno com mercado externo, sem asfixiar o grande contingente de brasileiros que está boiando sem rumo em um mar de oportunidades. A ascensão das classes mais desfavorecidas ao consumo e os avanços na qualificação técnica são louváveis, mas, mesmo assim, passivos, sem uma orientação social mais profunda.

O mundo mudou e por aqui se continua demitindo como primeira ação de redução de custos, o que em outras palavras pode significar restrição no mercado consumidor. Tão suscetível de ironia quanto isso é o perfil de mero exportador de commodities atribuído ao Brasil numa caricatura que circula pelo mercado, segundo a qual a Índia é o call center, os Estados Unidos o shopping, a China a fábrica, a Europa o turismo e o Brasil a fazenda do mundo.

Faz bem pensar e trabalhar para que o Brasil seja realmente uma das potências mundiais de um novo planeta em construção, mas não uma potência econômica que não beneficie social e culturalmente os brasileiros. Para valer a pena, deveremos ser uma potência em biodiversidade, em tecnologias verdes e soluções criativas, que possua uma economia inspirada em nossa inventividade mestiça e em nossos preciosos ativos naturais. Somente com uma orientação social bem definida, teremos uma educação profissional e técnica com pessoas capazes de entender o que fazem, de interpretar dados, de decidir, executar, pensar soluções e inovar.

A única experiência abrangente de regulamentação do trabalho no Brasil, que superou o conceito de mão de obra, foi a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que, em 2013 completará 60 anos. Salvo remendos daqui e dali, não temos uma carta que atualize a arquitetura das atividades laborais. As demandas mudaram, as exigências são outras e os padrões também. Para nos garantirmos no jogo da geopolítica global, precisamos construir um novo sistema de trabalho, com base não apenas econômica, mas em uma orientação social, cultural e ambiental.

O senado federal aprovou no dia seis deste mês de março um projeto de lei (PLC 130/2011), ainda não sancionado pela presidenta Dilma Rousseff, que penaliza as empresas que pagarem menos a mulheres do que a homens, quando atuando na mesma função. Este é um bom exemplo de fato recente, envolvendo a exploração da mão de obra barata feminina, que sinaliza para a tomada de consciência dos agentes do sistema econômico diante dos novos parâmetros sociais estabelecidos.

Não tomo essas referências históricas de descaso para com o trabalho como lamentação ou busca de refazer o que passou. O que resta de tudo isso em nós é o que mais interessa. Os anos de escravidão, o recurso da imigração, a carta trabalhista de Getúlio Vargas (1882 - 1954), a presença desigual da mulher no mercado do trabalho e a escassez de trabalhadores qualificados para acompanhar a projeção econômica e política do Brasil no mundo multipolar, ainda estão refletidos em muito do que move o nosso presente.

O cuidado com o trabalho e com a finalidade do viver, passa pela ruptura da coisificação das pessoas e pela observância das relações com os conflitos da chamada "obsolescência programada", seu lixo desnecessário de coisas inúteis, sua decadência valorativa e pela energia que as pessoas gastam para se defenderem dos abusos de empreendimentos desonestos, nas esferas comerciais, políticas e religiosas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Abecedário da música plural - Diário do Nordeste - 08/03/2012


A diversificação dos canais e das formas de ouvir música revela cada vez mais a riqueza da Música Plural Brasileira. Fiz um rápido exercício do que tenho ouvido ultimamente e fiquei satisfeito com o som que vi presente na trilha do meu cotidiano. Não é ranking, apenas um abecedário despretensioso de raízes e antenas. Teimei em manter apenas um artista ou grupo musical por cada letra do alfabeto e isso dificultou a preparação da relação, mas assobiando e cantarolando consegui fechar os vinte e seis nomes que seguem:

(A) Anelis Assumpção (SP) - Dá gosto ouvir as combinações que, enquanto compositora e cantora, Anelis faz na extensão que vai do samba ao afrobeat, envolvendo ícones da cena paulistana, como o trombone de Bocato e a bateria e percussão de Simone Soul no CD "Sou Suspeita Estou Sujeita Não Sou Santa" (2011).

(B) Bia Drummond (CE) - Um dos destaques do II Festival de Música da Rádio Universitária 2011, Bia surpreendeu pela qualidade de composição e interpretação, tanto nas categorias música com letra, com a valsinha "Soluçando de saudade", como em música instrumental, com o lindo piano de "Sob a luz do luar".

(C) Criolo (SP) - Filho de cearenses, pai metalúrgico e mãe poeta, e nascido na periferia de São Paulo, Criolo é a maior novidade no mundo do rap brasileiro, com o CD "Nó na orelha" (2011). Numa entrevista a Marília Gabriela (SBT, 18/01/2012), disse que fazer rap é como jogar bola: basta amassar uma latinha, um papel, e sair jogando, porque o rap é a voz da pessoa como ela é, como pensa e se manifesta. Como poeta livre, seu trabalho vai do samba ao bolero.

(D) Dalai (SP) - Com pop-rock poético e experimental a banda de Lucas Espíndola e Rodolfo Rodrigues, também tocada por Gabriel Altério, acaba de lançar treze musicas em um agradável CD, produzido por Luiz Waack. Eles cantam bem, tocam bem, são bons letristas e abrem o disco em clima de "Because", dos Beatles.

(E) Edvaldo Santana (SP) - O melhor CD brasileiro de 2011 é o "Jataí", desse sempre surpreendente bluseiro-cabra-da-peste, de São Miguel Paulista, filho de pai piauiense com mãe pernambucana. A música de Edvaldo é essencialmente humana, com levadas nervosas, letras fortes e um certo otimismo sobrevivente.

(F) Fulô de Araçá (CE) - Bárbara Sena, Brenna Freire, Clarissa Brasil, Cris Soares, Lídia Maria e Marília Magalhães, são as meninas desta banda, que tem nome de música de Dominguinhos e Guadalupe, que, com seu instrumental leve e faceiro anima Fortaleza com choro, samba e canção.

(G) Graveola (MG) - A viagem desse grupo passa por um mundo que precisa de um liquidificador para catalisar o espírito de coletividade. Da cena belo-horizontina, um cachorro que "só fica pensando no latido do outro" ("O cão e a ciência") espalha um nietzscheriano humor pelo instante.

(H) Harmada (RJ) - A banda que reúne músicos cariocas independentes e que tem seu enredo voltado para o drama melancólico dos "Corações Surdos", inventa desculpas para mudar, na cidade que não quer ninguém cansado.

(I) Isca de Polícia (SP) - Itamar Assumpção (1949 - 2003) tinha tanta consistência e intensidade que seu desacato à mesmice segue com a sua banda nos palcos nas vozes de Vange Milliet e Suzana Salles, guitarras de Luiz Chagas e Jean Trad, batera de Marco da Costa, baixo, direção artística e musical de Paulo Lepetit.

(J) Jardim das Horas (CE) - Quarteto cearense, radicado em São Paulo, "O Jardim das Horas" é formado pela cantora Laya Lopes e pelos músicos Beto Gibbs, Carlos Gadelha e Raphael Haluli. Move-se na coexistência do eletrônico com o acústico, em tempos lentos e deleitosa sonoridade.

(K) Karina Buhr (PE) - Embora tendo nascido baiana e atue na cena paulistana, Karina é pernambucana de sotaque. Com os CDs "Eu menti pra você" (2010) e "Longe de onde" (2011) ela, que "tem algum problema com amor demais", vem reforçando sua inquietude musical nas minhas preferências.

(L) Lirinha (PE) - Ex-Cordel do Fogo Encantado, Lirinha segue carreira solo distribuindo pérolas como "Ah se não fosse o amor", na qual perde o senso do quanto o mar desconfia do sumiço de sua ilha.

(M) Marina Wisnik (SP) - Suave, bonito e com canções simples de felizes, eis o trabalho de estreia de Marina Wisnik. "Na rua agora" (2012), com participação de Marcelo Jeneci e Thiago Pethit, tem o frescor dos jardins aquáticos, botânicos, de infância e de inverno, como diz uma de suas letras, em parceria com a atriz Bruna Lessa.

(N) Ná Ozzetti (SP) - "Meu quintal / Tem um rio / Que inda dá / Pra navegar", conta Ná, em parceria com Luiz Tatit, na faixa título do "Meu Quintal" (2011), álbum que comemora os trinta anos de carreira dessa diva brasileira.

(O) Ortinho (PE) - O disco mais recente que vem do lado da estrada onde a vista não alcança, traz a figura do sujeito que fica preso do lado de fora de um amor. É o existencialista "Herói trancado" (2010) do ex-integrante da banda Querosene Jacaré.

(P) Porcas Borboletas (MG) - Na trama de sonoridades vadias com ironia casual a banda adianta o seu recado em "Pessoa Linda": "Honre os seus compromissos / nunca assine uma nota promissória sem antes rasgá-la".

(Q) Quatro a Zero (SP) - O grupo paulista tem como marca a produção coletiva de arranjos e a alcovitagem das modulações e improvisações do choro com outras linguagens musicais.

(R) Rebeca Matta (BA) - A compositora e cantora baiana gravou no final do ano passado, em Salvador, o sensorial e psicodélico DVD e CD "À Flor da Pele", tendo como convidados a dupla Dois em Um, o guitarrista Peu Sousa, o compositor Ronei Jorge e o violonista Mario Ulloa. Néctar de "Rosa Sônica".

(S) Siba (PE) - Armado de guitarra, Siba (ex-Mestre Ambrósio) está lançando o CD "Avante" (2012), para o qual contou com a produção de Fernando Catatau. "Não vejo nada que não tenha desabado / Nem mesmo entendo como estou de pé", ataca em "Preparando o salto"... e vai que vai, montado em maracatu e rock.

(T) Titane (MG) - Nunca passo muito tempo longe da voz de Titane; faz bem a tudo. A cantora mineira está na estrada cantando Elomar, em recital com acompanhamento do violão de Hudson Lacerda. "Clariô, ai ai, clariô"...

(U) Ubiratan Sousa (MA) - Bois, toadas e acalantos de Ubiratan Sousa deixam a gente perto da mais que rica música popular maranhense. São sons que desfiam em cores e pintam a nossa alma de brasilidade.

(V) Vitoriano (CE) - Destaque na cena do rock cearense, Vitoriano, ex-Alegoria da Caverna, plantou sementes no asfalto quente e saiu de "melancolia" para voo solo, cantando "um enxame de desocupados se aglomera a meu lado para aplaudir a minha solidão".

(W) Wado (SC) - Radicado em Maceió, o catarinense Wado é um rap-samba-roker bem focado na estética da periferia e ligado no latifúndio das ondas eletromagnéticas: "É contra o artista mudo / É contra o ouvinte surdo".

(X) Xico Bizerra (CE) - Dos forroboxotes e baiões desse cratense, destaco a parceria dele com Roberto Cruz: "Água de beber / Água de banhar / Água de chover / Água de aguar / Água bem limpinha / Água tão quentinha / Água lá de cima / Água de quartinha"... Quem bebeu sabe o que é isso.

(Y) Yamandú Costa (RS) - Ele transita do choro ao tango com impressionante desenvoltura. Gravou seu CD "Mafuá" na Alemanha e no ano passado (2011), quatro anos depois, o disco foi lançado no Brasil.

(Z) Zefinha (CE) - Mais do que uma banda, a Dona Zefinha é uma companhia cenomusical, que tem uma espetacular experiência de palhaçaria, graciosamente registrada no CD "O circo sem teto da lona furada dos Bufões" (2011), produzido por André Magalhães.


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quinta-feira, 1 de março de 2012

Reviravolta na educação - Diário do Nordeste - 01/03/2011.


Momento empolgante, o que passa a educação brasileira. Está claro para todo mundo que uma transformação, ou pelo menos uma boa reforma, precisa ser feita. De que natureza, há controvérsias, o que requer a difícil, porém indispensável, construção de consensos. A gestão do ministro Aloizio Mercadante à frente do Ministério da Educação e a sociedade brasileira estão com o complexo e sensível desafio de promover uma reviravolta na nossa educação, de modo a definir um sentido de país, produzir a massa crítica adequada para conferir merecimento à essa definição e, assim, assegurar a importância do papel do Brasil na nova ordem geopolítica internacional.
Tenho visto muitas discussões sobre ajustes de metodologias de ensino, aprendizagem e avaliação, uso de tecnologia digital na rede pública, estabelecimento de metas, melhoria nas condições de segurança do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ampliação do tempo integral, formas de aperfeiçoamento do fluxo escolar, tentativas de salvação de escolas com baixo desempenho e cobranças de aprendizado mínimo. Seja o que for o debate, o que une esses e outros temas é a ruindade do nosso padrão de ensino e o que fazer para reverter esse quadro secularmente perverso.
Outro ponto crítico dessa questão está na entrada dos "tablets" e das lousas digitais na escola antes de preparação de uma pedagogia ajustada ao uso das tecnologias digitais na educação. Embora o Brasil seja um dos três maiores mercados de consumo de computadores do mundo, aceitou que o mercado determinasse o tom da educação digital. Se considerarmos, entretanto, esse atropelo da pedagogia pela informática, como parte da criação das condições caóticas que estão pressionando a reviravolta no nosso sistema educacional, talvez até tenha sido positiva essa intromissão, considerando que a desconstrução é uma maneira de instigar mudanças.
A intervenção das corporações nos equipamentos educacionais, intensificada desde que o governo federal separou o Ministério da Educação e da Cultura (MEC) em dois (1985), chegou a um teto assintótico, com a distribuição de máquinas e equipamentos nas escolas, sem dar a mínima para a preparação das educadoras e dos educadores. O lado bom é que isso forçou a partida para uma discussão bem mais ampla: "Para quê?". Fôssemos esperar um debate puxado pela voz intimidada dos educadores, perderíamos o século. E não é bom nem pensar nessa possibilidade.
Ainda bem que o ministro Mercadante resolveu priorizar a introdução do "tablet" na escola a partir do professor. O "tablet" é um instrumento em estágio ainda primitivo, que para se afirmar vem acompanhado de um marketing contra o livro, mas que certamente ganhará personalidade própria e tem tudo para dar muitas contribuições no campo educacional. Uma delas é facilitar a organização dos conteúdos e outra é a redução de gastos com reposição de materiais didáticos./
Fala-se em universalização do acesso à educação e em ensino público de qualidade. Para quê? Tem que ter um "para quê?". Para abraçarem suas metas os gestores comprometidos precisam de um "com o quê?". A rede pública deve fazer educação para educar os brasileiros a serem agentes e beneficiários das riquezas do País. O desafio é como enxergar o "para quê?", com o ambiente escolar contaminado pelos produtos e serviços das mídias de massa e com um contingente de mais de trinta milhões de brasileiros que na última década ingressaram na zona de consumo e precisam de oportunidade para refletir sobre o que isso significa.
O Brasil não pode correr o risco de ter o seu destino traçado pelo domínio numérico da ignorância, em nome da democracia. Por isso, mesmo antes da votação do Plano Nacional de Educação (PNE) até 2020, que está no Congresso Nacional, sinto falta de um debate estruturado sobre qual a educação que queremos. A título de ilustração, comento cinco pontos que considero estratégicos nesse debate:
01 - Queremos uma educação para qual país? Tem sentido continuarmos com uma educação que reforça o modelo mental de colonizado que nos torna passivos no diálogo global? A educação para um novo Brasil, precisa ser lastreada pelo respeito e pelo lugar de destaque que, na última década, conquistamos na economia e na política mundial. O projeto de país que deve estar manifesto nos nossos conteúdos educacionais é o de uma sociedade aberta, mas que quer se preparar para o mundo pós-automóvel, pós-crescimento; o mundo da sustentabilidade, da economia verde, da inovação do bem, das energias limpas e renováveis, da atenção aos limites dos recursos naturais, enfim, do que chamo de cidadania orgânica.
02 - O Ministério da Educação está abrindo a discussão do que poderá ser um currículo brasileiro. A montagem desse currículo nacional mínimo é uma ação que precisa do engajamento de educadoras de todo o Brasil; pessoas que na ponta organizam a aprendizagem. Os professores devem ser encarados como mestres do País, não interessa o porte do município ou estado, nem o tamanho da escola em que trabalham. E por isso, só teremos uma educação nacional de qualidade se valorizarmos a docência, em termos de participação, oportunidade de renovação de conhecimento pessoal, condições de trabalho favoráveis e remuneração à altura da missão.
03 - Está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de lei 518/09, de autoria do senador Cristovam Buarque, propondo que o MEC fique somente com a educação de base e que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação incorpore a Educação Superior e o ensino técnico. A proposição do professor Cristovam é muito boa e oportuna; contudo, como o momento é de debate, tomo a liberdade de pensar em algo que a mim me parece mais ajustado, que seria a mudança do MEC para Ministério da Educação de Base e Cultura, o que fortaleceria o conceito de projeto de país. Os assuntos da economia da cultura, na minha opinião caberiam muito bem parte no Ministério do Turismo e parte no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
04 - Um grande projeto brasileiro de educação não deve ficar preso a discussões do tipo "o investimento por aluno é caro ou barato". O sistema educacional precisa ser antes de tudo eficiente na formação do ser social e na educação das pessoas para algo; e este algo deve estar contido no conjunto dos nossos objetivos individuais e coletivos. E a resposta ao "para quê?" serve para fechar a conta. O ministro tem falado que o algo mais virá dos royalties do Pré-sal; mas esses dividendos, que são de todos os brasileiros, ainda vão demorar um pouco para chegar. Como temos urgência, dou uma sugestão: que tal taxar as grandes fortunas, com a finalidade específica de viabilizar as mudanças necessárias à educação?
05 - Em que pese a autonomia de municípios e estados na formulação e implementação de suas políticas, na educação é indispensável a existência de um plano estrutural de âmbito nacional, que defina e garanta a execução da política educacional do País. Não tem mais cabimento manter a falsa municipalização, decorrente da estratégia neoliberal de enxugamento do Estado e de incentivo à privatização, que deixou as verbas públicas à mercê dos desvios dos administradores corruptos. A educação nos municípios só tem sentido com a efetiva participação da comunidade e atendendo as peculiaridades regionais. Tramita também no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 7420/06), voltado para o estabelecimento de regras na aplicação dos recursos públicos no ensino.