quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Futebol com preço, mas sem valor (I) - Diário do Nordeste - 29/12/2011.


Depois da desconcertante derrota do Santos para o Barcelona, na final do mundial de clubes 2011, realizada em Yokohama, no Japão, no dia 18 passado, as considerações ao futebol brasileiro ganharam as mais perplexas interpretações, como se houvesse uma grande novidade naquela derrota em si. Mesmo uma goleada de 4 x 0 poderia fazer parte de uma emocionante decisão, mas o que assistimos naquele domingo foi a exibição de dois formatos de conceitos de clubes: o time catalão apresentou o resultado de uma eficácia organizacional de preparação de longo prazo e o time paulista mostrou muito bem o desempenho de uma equipe representante do imediatismo pecuniário.

Ambos mostraram que são vitoriosos em seus modelos de negócio, com execução associada à grandeza de cada estratégia. Um e outro encerraram a partida arrecadando legitimamente (em tese) o máximo de dinheiro que um evento desse porte consegue arrecadar, com transmissões, pacotes de viagens, merchandising, ingressos e licenciamentos. A diferença é que o clube brasileiro, vítima do apetite insaciável e da inconsequente compulsão por ganhos exorbitantes da cartolagem, representa uma extravagante filosofia de obtenção de sucesso financeiro, vinculada ao empobrecimento e ao desgaste da imagem do futebol brasileiro.

Na entrada do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, pode-se ler uma sentença que explicita bem a lógica que está por trás de tudo isso. A frase afirma que o Brasil se orgulha de ser o país que mais exporta craques para o futebol mundial. Por essa abordagem, mesmo decadente enquanto esporte, o futebol é vitorioso no Brasil. A nossa taxa de crescimento econômico, baseada na exportação de jogadores "in natura" e no cultivo em larga escala de atletas transgênicos, está em linha com o papel assumido pelos loteamentos de primeira, segunda e terceira divisão do campeonato brasileiro, no nível mais primário da cadeia de suprimentos do futebol internacional.

Esse caráter "for export", imposto ao País que tinha a imagem de grandes clubes e de melhor seleção do mundo, faz parte de uma ultrapassada mentalidade de negócio desportivo, formalizada no final da década de 1980, quando os dirigentes dos clubes sudestinos organizaram uma espécie de cartel, formado pelo Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, Santos, São Paulo, Corinthians, Palmeiras, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético-MG e Bahia, para definir as regras, mandar e desmandar no futebol brasileiro. O estica e puxa de interesses nos negócios esportivos levou o chamado "Clube dos 13" a incluir posteriormente cadeiras para o Coritiba, Goiás, Sport, Vitória, Guarani-SP, Atlético-PR e Portuguesa, fechando em vinte a mesa de influências.

Como mesmo as artimanhas propensas à concentração podem trazer benefícios colaterais amplos, o esquema montado pelos cartolas conseguiu melhorar significativamente o sistema de transmissão de jogos e isso é um ponto positivo para a atração de torcedores e fortalecimento do futebol como uma paixão nacional. Entretanto, em sua ganância desmedida, os comandantes dos negócios do futebol no Brasil, mancomunados com os da Federação Internacional de Futebol (Fifa), montaram na maioria dos clubes brasileiros uma forma de organização que prioriza o curto prazo, o ganho rápido (não de jogo, mas de dinheiro) e o lucro acaçapante na comercialização de jogadores.

O mercado de atletas está superinflacionado. Tem bolha na marca do pênalti. O futebol brasileiro vive a sua crise de subprime desportivo, com times comprando jogadores, sem garantia suficiente para cobrir o risco. Os comerciantes de pernas-de-pau negociam entre si e empurram nos clubes jogadores que não rendem o que ganham. O nosso futebol passou a ter preço, mas não tem valor. Na relação internacional, resta ao torcedor brasileiro o consolo do caroço de Ronaldos e Adrianos e suas ridículas hipérboles de "Fenômeno", "Imperador" e "Fabuloso".

O quadro interno é crítico. Os sinais de manipulação de jogos são evidentes. O resultado de 6 x 1 de um Cruzeiro cambaleante sobre um Atlético-MG bem superior, que definiu a manutenção da "Raposa" na série A do Brasileirão é um exemplo do que pode um patrocinador em momentos de decisão, mesmo em caso de clássico. Os jogadores do "Galo" teriam permitido a goleada como denúncia à interferência direta do BMG (patrocinador das duas equipes mineiras) na dinâmica do campo. E os torcedores ficam com o direito de falar, desde que paguem ingresso e assinem os canais de transmissão dos jogos dos seus times.

A intervenção escancarada dos bastidores nos resultados é um prática antidesportiva experimentada, inclusive, no âmbito da Seleção Brasileira, como foi o caso da derrota de 3 x 0 para a França, na Copa do Mundo de 1998, quando mesmo em misterioso estado convulsivo o jogador Ronaldo entrou em campo cumprindo um contrato com a Nike e, consequentemente, colaborando vergonhosamente para a derrota do Brasil. E o pior é que muitos de nós pensamos que a Seleção Brasileira é do Brasil, quando na verdade ela é apenas uma grife, que pertence a um grupo de cartolas, que faturam com a imagem do País, sem pagar royalties ou sequer levar em conta os interesses dos brasileiros. Se o futebol brasileiro fosse do País, pelo menos a indústria brasileira seria líder mundial na fabricação bolas, chuteiras, uniformes e outros artigos afins.

A insistência da Fifa para que o parlamento do Brasil altere o Estatuto do Torcedor (criado para reduzir a violência nas arenas) de forma a permitir a venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios, por ocasião da Copa das Confederações (2013) e da Copa do Mundo (2014) é um bom exemplo da petulância dos déspotas do futebol. O descaso e o desrespeito resultantes do conluio entre cartolas, patrocinadores, políticos e gestores públicos parecem não ter limites. Nos jogos do Brasileirão 2011, os estádios ficavam cheios de tubos de saco plástico, com a marca da Brahma, sujando tudo e caindo no gramado, como um afronta à sustentabilidade, e ficava por isso mesmo.

Às vezes me pego pensando se não seria o caso de a torcida brasileira fazer uma campanha contra patrocinadores que se comportam assim. Uma "primavera brasileira" do esporte, com manifestações de repúdio a essas práticas lancinantes. Outro dia, acordei com a ideia de que os times da periferia do que se tornou o "Clube dos 13" pudessem se rebelar e sair do Brasileirão, criando o Brasileirinho, um campeonato paralelo, com regras mais decentes, mais condizentes com o futebol. Nas minhas cogitações indignadas, já cheguei a imaginar que a Seleção Brasileira deveria ser financiada pela torcida, em uma espécie de sócio-torcedor, para que tivéssemos uma seleção de camisa limpa, para jogos limpos.


Uma opção para regular a bandalheira que domina o futebol no Brasil seria contar com o parlamento, mas não sei nem porque estou me lembrando disso, pois a chamada "bancada da bola" tem tanto poder no Congresso Nacional quanto as bancadas "da fé", do "comércio ilícito" e do "agronegócio". Existem Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em Brasília, para investigar a corrupção da cartolagem brasileira, mas a desconfiança crescente na nossa representação é tão grande que nunca se sabe se a intenção é mesmo acabar com a roubalheira, se não passa de artifício de extorsão, de necessidade de holofotes ou de rusga política (continua na quinta-feira, dia 5 de janeiro de 2012).

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sábado, 24 de dezembro de 2011

A travessia para o mundo adulto – Diário do Nordeste - 22.12.2011

Posso até dizer que o livro "Cavalo de Guerra", do escritor inglês Michael Morpurgo, 68 anos, é uma mensagem que nos leva a refletir sobre conflitos militares, já que o tempo da aventura nele relatada é a Primeira Guerra Mundial. Posso até dizer ainda que se trata de uma história de amizade, considerando que, ao ser separado do garoto que é seu dono, o protagonista venceu muitos dos obstáculos que enfrentou pela força da lembrança. E posso até dizer, além disso, que a novela de Morpurgo é especialmente voltada para quem se sensibiliza com temas de animais, sobretudo os aficionados por cavalos.

Qualquer dessas perspectivas me divertiria como leitor de "Cavalo de Guerra". A narrativa feita a partir do ponto de vista do próprio animal torna mais afável a história de como ele foi adquirido pelo exército britânico e levado para o campo de batalha francês. No entanto, o que perseguiu mais a minha atenção em toda a leitura desse livro infanto-juvenil, que a editora WMF Martins Fontes está lançando neste final de 2011, foi a simbologia do potro rebelde e seu drama vivido entre o instinto de sobrevivência e a irracionalidade traumatizante, como uma destemida travessia da juventude para o mundo adulto.


O livro com a aventura do cavalo Joey, que já virou peça de rádio e de teatro, agora chega ao cinema, numa adaptação do cineasta estadunidense Steven Spielberg, 65 anos, com estreia no Brasil anunciada para seis de janeiro de 2012.


Dá tempo, portanto, de ler o livro antes do filme e de imaginar situações de enlevo como o semblante das pessoas conversando com o cavalo, como se estivessem dialogando com a própria consciência, ou a expressão de Joey a cada efeito das duras perdas e abandonos, que sofre com as separações de Albert Narracott, do capitão Nicolls, do soldado Warren e da menina Emilie.


Pelo olhar que mais me atraiu, "Cavalo de Guerra" fala da diversidade de vínculos, em variados graus afetivos, dando sentido ao enfrentamento das adversidades, representadas pelos horrores da guerra sangrenta. Em ritmo que por vezes tangencia o desvario e testando ao máximo as possibilidades de dar a si a chance de se sentir bem em diversas circunstâncias, o destemido Joey torna-se importante para quem encontra pelo caminho e ao mesmo tempo reconhece a importância da amizade de cada um. A expectativa de afeição, que repercute no seu corpo e na sua energia psíquica, expressa uma trama existencial de juventude.


Joey é um potro impetuoso, movido a impulsos. No seu combate a desafios de toda ordem, ele faz associações que lembram a sua experiência de amizade com o menino Albert, mas sem se deixar abater por isso.

Usa a lembrança em favor da superação, por sentir que tem lugar reservado no coração do seu dono verdadeiro, o que o faz ser corajoso. Mesmo passando pelo cabresto de vários proprietários, sabe a quem pertence por apego sincero. Assim, interage de peito aberto em qualquer situação, seja arando, na condição de cavalo de montaria, carregando macas com feridos para o hospital de campanha, puxando canhão ou carroça veterinária.


Joey passa pelo teste de várias identificações e toma de cada uma delas a força extra para seguir escapando das ameaças que lhe surgem a todo instante. Seus passos limitados por barreiras de incompreensões e pela impossibilidade diante da intolerância são estados próprios das travessias de adolescência, marcadas por alterações de rotina e de perspectivas. Mesmo quando teve abalado um dos seus fatores mais distintivos, que é a vitalidade, a saúde, conseguiu ser resiliente em nome de uma saudade que precisava pôr em dia. Tinha muito a compartilhar com o amigo que há muito o acompanhava apenas no silêncio da distância.


O "cavalo de guerra" tem sofrimentos físicos e psicológicos, decorrentes das contradições hiperbólicas em que se encontra. Tem também ares de contentamento nas cenas de companheirismo com o cavalo Topthorn e com Friedrich, um velho açougueiro germânico, consciente da sua aversão à guerra e, por isso, considerado o soldado louco do regimento. Friedrich confidenciou a Joey e a Topthorn que costumava falar sozinho por achar que somente ele mesmo era capaz de entender o que tinha a dizer.


A aventura de Joey é uma aventura de experiências relacionais, que ganha mais sentido em seu todo, pelo exercício da construção de vínculos. A fragilidade e a solidez das relações vão sendo definidas conforme a intensidade do relato. O "cavalo de guerra" recria-se a cada instante em pontos de tecedura narrativa que vão transpondo as fronteiras dos contextos. Mais do que ficção, o livro se atualiza na arquitetura dramática da conjuntura conflituosa da atualidade, onde proliferam incertezas e o tempo fica fechado principalmente para a travessia juvenil, rumo à idade adulta.


Para o jovem, que percebo representado em Joey, o conceito de competição é outro; a noção de agressividade é outra; e o sentido de ser vencedor é outro. Ele não é um personagem que assume sonhos estereotipados para colocar em prática; seu sonho nasce da aventura de viver e cresce no jogo das emoções, do afeto e do exercício moral. Deste modo, o "cavalo de guerra" corta o efeito esterilizante da juventude padronizada, vítima de uma pregação de conveniência de pais e educadores, que estão mais preocupados com suas vidas e ficam alardeando continuamente que o jovem deve se isolar em seus grupos de afinidades e grupos de mesma faixa etária, para poder ser autônomo.

Em trajetória contrária a essa afirmação falaciosa, o "cavalo de guerra" atua longe desses conceitos perversos, que, repito, empurram o jovem para fora da convivência social ampla, no momento em que ele mais precisa temperar a fibra em múltiplas experiências. O livro de Michael Morpurgo pode ser lido como uma obra existencial de iniciação ao mundo adulto, se lido pela ótica de que o protagonista se fortalece e se encontra consigo mesmo, a partir de vivências levadas a efeito na sua inter-relação com crianças, adultos, idosos e com outros animais.


Não há qualquer dúvida quanto à necessidade de a juventude produzir a sua própria noção de mundo. O que não dá é para fazer essa construção limitando-se apenas aos pares. A marginalização da juventude, em nome de uma suposta autonomia é uma crueldade da guerra do egoísmo social, que leva à dependência química e à violência como meios de relaxamento e de sentir emoção num mundo tedioso e vazio. "Cavalo de Guerra" mostra um caminho oposto: de maneira simples, com texto leve, o livro sugere a importância de outras oportunidades de prática da alteridade e da dialética, na batalha entre os contornos de disciplinaridade, vigor libertário e relações afetivas.


A história do "cavalo de guerra" abre espaço para uma relação muito peculiar do protagonista e do leitor para com a realidade. Na visão de Joey, a realidade é o seu ponto de partida, onde ficou o menino Albert; mas para o leitor, pode ser o ponto de chegada, para onde apontam as expectativas de quem lê. O livro começa com uma nota do autor sobre o quadro empoeirado com a pintura de um cavalo, que decora o salão comunitário de uma velha escola da área rural inglesa. A imagem é tão familiar aos moradores do vilarejo que já não chama a atenção. É daí que Michael Morpurgo parte para mostrar o contrário; mostrar que é muitas vezes nos velhos quadros quase despercebidos que estão as nossas histórias mais vibrantes e profundas.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Movimento Pró-Árvore - Diário do Nordeste - 15/12/2011

Recebi o convite do fotógrafo Maurício Albano para participar de uma movimentação de cidadania que está em fase de construção em Fortaleza, com o nome de Movimento Pró-Árvore. Foi, como se diz, uma mão na roda. Há um bom tempo que venho inconformado com a situação degradante da cobertura vegetal na cidade. Não pude participar do primeiro encontro de aproximação de interessados, realizado no Instituto Gaia, em 21/09, mas fui com os meus filhos, domingo passado, 11/12, à reunião ocorrida no Passeio Público.

Mobilizações da sociedade civil para ações como essa, que costumo chamar de "cidadania orgânica", são sempre bem-vindas e cada vez mais necessárias, diante da atual crise da democracia representativa. Estavam lá pessoas da arquitetura, da história, sociologia, educação, direito, artes plásticas, poesia, psicologia, agronomia e botânica, dentre outras dispostas a dar foco no verde. Ao tomar a decisão de colocar a árvore como uma prioridade, o movimento assume que uma arborização adequada é fundamental para a paisagem urbana, sua qualidade ambiental, qualidade de vida, para a saúde pública e equilíbrio social.

A valorização e a proteção das árvores é uma maneira de sentirmos a cidade como a nossa casa, a casa da beleza, da sensação de ar livre, dos lugares acolhedores, com áreas sombreadas e lugar ao sol para todos. É cuidar para que nós, fortalezenses, naturais, adotados ou visitantes, usufruamos mais da cidade vibrante, de agradável convívio e espaços dignamente públicos, com bem-estar de segurança e áreas verdes dotadas de equipamentos desportivos, recreativos, culturais e de lazer.

A criação do Movimento Pró-Árvore sinaliza a existência de uma mudança na perspectiva de direitos civis e políticos de muitas pessoas que estão indignadas e avergonhadas de morarem e viverem em um centro urbano marcado pelo descaso e por toda ordem de descarada especulação. Fortaleza necessita de compensações ambientais amplas e, para isso, é importante que a sociedade faça o que está ao seu alcance e, se possível, procure se articular com a parte da iniciativa privada e dos setores públicos que está comprometida efetivamente com a sustentabilidade.

Promover a plantação de mudas, incentivar a melhoria dos jardins de casas, condomínios e locais de trabalho, influenciar a troca de muros por grades, para que os prédios abram mais seu verde para as ruas, aumentar o uso social das praças e parques, estimular as empresas que mantém áreas verdes e colaborar com as instituições realizadoras de programas de ecocidadania são exemplos de iniciativas que podem ser desenvolvidas pelas pessoas com consciência socioambiental, independentemente de coobrigações oficiais.

O ideal mesmo é que os mandatários públicos entendam esse tipo de ação da sociedade civil, não como ameaça, mas como algo agregador e legítimo. Assim, o Movimento Pró-Árvore poderá sonhar com sistemas de logradouros públicos com nomes de árvores, com a classificação de nomes e características das árvores em situação de rua, e com ruas e avenidas marginadas de paus d´arco, acácias pingo de ouro e outras espécies botânicas embelezadoras da cidade, a exemplo das carnaúbas copernicanas, que ornamentam a avenida Monsenhor Tabosa.

Há muito que fazer para a melhoria do meio ambiente urbano de Fortaleza e a ampliação de suas áreas verdes. O que dá sentido à cidade enquanto centro urbano é a capacidade de sua gente de se mobilizar para viver bem. Pode ser fazendo a festa de Saci nas praças, organizando expedições de reconhecimento das espécies vegetais do litoral, serra e sertão, ou criando viveiros de plantas da flora cearense. E, depois, compartilhar, divulgar e publicar, como fez o agrônomo Antônio Sérgio Castro, um dos articuladores do Movimento Pró-Árvore, que está lançando um livro com 45 fotos de Flores da Caatinga, pesquisadas e resenhadas por ele.

A compreensão de que a cidade precisa da natureza para ser um bom lugar deveria estar entranhada em nosso cotidiano, mas não está. Tenho procurado sugerir esse diálogo entre o urbano e o rural em livros infantis como "Titico achou um anzol", "Benedito Bacurau - O pássaro que não nasceu de um ovo" e "A casa do meu melhor amigo", e fico maravilhado com a reação das crianças ao terem a oportunidade de um relacionamento literário com personagens que são preás, carcarás, jaçanãs, corujinhas-de-estrada, casacas-de-couro e tantos outros bichinhos comuns, embora desconhecidos, em nossa região.

A civilidade requer sentimentos de reaproximação entre cultura e natureza. Onde existem árvores, existem pássaros, ninhos, cantos, seres fantásticos e folhas dançando ao vento. Por isso, o verde das copas e as cores das flores servem para aquietar a mente e para dar leveza às edificações, porque a beleza natural é reconfortante. Uma árvore é uma escultura; algumas delas são monumentos. Quem tiver dúvida disto basta olhar para uma mangueira centenária, para a abstração de suas formas e para a sua grandiosidade tranquila.

As praças e os parques, e não os "shoppings centers", são os verdadeiros oásis do mundo urbano. Nas áreas verdes, o calor diminui e o frescor aumenta, sem a necessidade de refrigeração artificial e abafada. As árvores contribuem significativamente para a melhoria do conforto térmico, elevando a umidade relativa do ar e melhorando o sistema de amenização da temperatura da cidade. Além de interferirem na velocidade dos ventos, de interceptarem e absorvem parte da radiação solar e da poluição atmosférica, reduzindo ainda a poluição sonora e visual e oferecendo melhores condições de permeabilidade do solo para que as águas das chuvas reabasteçam o lençol freático.

Em uma cidade quente como a nossa, a vida deveria ser vivida mais intensamente fora dos ambientes fechados. Mas a falta de uma cobertura vegetal mínima contribui para que a cidade adoeça ao relento. A Organização Mundial de Saúde, OMS, dá como mínima uma área verde de doze metros quadrados por habitante e certamente estamos muito longe disso. O adensamento populacional desordenado, o histórico de permissiva ocupação privada de áreas públicas, a impunidade contumaz e a permanente irracionalidade da degradação ambiental debilita a vitalidade de Fortaleza.

A falta de um sentido de cidade permite passivamente os maus-tratos evidentes nas podas inadequadas, que esfrangalham sem dó as copas das árvores. Não precisaria ser tudo de uma vez, mas por zona, daria para fazer valer um projeto de arborização com árvores de copas largas em ruas e avenidas, obrigando as empresas que ainda usam o ultrapassado sistema de posteamento como suporte de fios e cabos de transmissão de energia e sinal de televisão, a trabalhar com tubulações subterrâneas.

A minha expectativa é que o Movimento Pró-Árvore, mais do que reunir pessoas para a ação em favor do verde, possa catalisar iniciativas existentes, de modo a influir na mudança do hábito com o qual nos relacionamos com a cidade. Está mais do que na hora de colocarmos em nossa rotina a troca afetiva com as árvores; afinal elas são seres vivos, que bebem da mesma água que bebemos. A figura da árvore agrega-se facilmente ao sistema de símbolos que dá sustentação às trocas subjetivas, facilitando a distinção entre pólis e aglomerado urbano. Viver bem em Fortaleza passa pelo aumento de sombras na cidade, por espaços verdes de integração comunitária e por impactos estéticos naturais que fortaleçam a consciência ecológica.

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sábado, 10 de dezembro de 2011

Mobilização pela infância - Diário do Nordeste - 8/12/2011

As datas comemorativas religiosas e sociais que passaram a ter o domínio útil do mercado, tais como Natal, Páscoa e Dia da Criança, têm obviamente conotação comercial. Nesses períodos, entre árvores gigantes e enfeites luminosos espalhados pelas cidades, também é comum o crescimento da quantidade de anúncios veiculados com novidades de ofertas de produtos e serviços. Até aí, se não tudo bem, pelos menos tudo coerente, não fosse a intensificação do assédio direto da comunicação mercadológica dirigida à criança.


Em seu artigo 37, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) trata da abusividade da publicidade voltada diretamente para menores de 12 anos, mas o projeto de lei que especificaria essa proibição (PL 5.921/2001) está há dez anos tramitando no Congresso Nacional, deixando aí uma esdrúxula brecha na legislação. O projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, vem há seis anos disponibilizando instrumentos de apoio, produzindo, organizando e disseminando informações sobre o tema, mas, apesar de muitos avanços em parceria com outras instituições e do fortalecimento da sociedade desperta, essa prática ilegal continua gritante.


Embora lento e gradual esse processo tem tido consequências positivas no crescente envolvimento da sociedade e na compreensão de muitos publicitários sensíveis à causa, que chegam a questionar os "briefings" focados na infância. Sabe-se, contudo, que não é fácil para esses profissionais resistirem à pressão de quem os contrata. Afinal, o dono da voz da propaganda e do marketing, o mandante do crime, é a empresa que paga a agência para fazer o serviço. A publicidade disparada à queima roupa contra a criança é um ato de agressão, no sentido do conceito de violência simbólica trabalhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 - 2002), que em sua essência é o condicionamento da convicção íntima do ser social aos padrões do discurso dominante.


No ensaio que escrevi para o Guia Brasileiro da Produção Cultural (Edições Sesc-SP, 2010), defendendo a incorporação da infância aos planos de sustentabilidade, na perspectiva da cidadania empresarial, ponderei o peso atribuído ao publicitário em si, nessa questão. "A raiz da frondosa monocultura comunicacional da propaganda e do marketing está na empresa. Foi institucionalizando a publicidade que o mercado concebeu o fenômeno do consumismo, como forma de vida dos indivíduos e dos grupos sociais. Desta maneira são as corporações que, por interesse próprio, investem na comunicação de venda dirigida à criança" (p. 325).


O discurso sedutor das peças publicitárias e da propaganda, representa a intenção legítima das empresas no exercício da competitividade. Quando, porém, essa fala é apontada para meninas e meninos, acaba gerando descompassos de identificação projetiva, em decorrência da sua dinâmica de neutralização do indivíduo, por meio da insistência de que a satisfação do desejo pode ser alcançada na compra do objeto. "Os estudos sobre esse discurso revelam que um anúncio deve mais do que chamar a atenção; deve provocar desejos que levam à ação. E se as empresas dão essa autoridade à comunicação de mercado é porque têm sido onipotentes sobre a cultura, a educação e a política" (Idem, p. 325).

Seja como for, os efeitos estressantes dessa prática ganham mais e mais evidência no comportamento das crianças "empoderadas" pela elevação precoce à categoria de consumidora. Acontece que em contraponto a isso muitos adultos resolveram agir em favor do consumo consciente e as corporações tiveram que se mexer para conquistar o reconhecimento de empresa desejada por parte desse consumidor mais inquieto, mais bem informado e mais crítico.


"Enquanto de um lado algumas empresas demonstram que estão realmente enxergando que não sobreviverão se não contribuírem para a formação da cultura do longo prazo, a maioria ainda mantém práticas degradantes, que negam o discurso das peças publicitárias e dos balanços socioambientais" (Ibidem, p. 316)


Afinado com os tempos e disposto a influir na formação de uma nova consciência empresarial, que seja capaz de perceber a importância do direcionamento da publicidade de produtos e serviços para os pais, o Instituto Alana promoveu, na semana passada (30/11), em São Paulo, uma mobilização pela infância, ocorrida em frente à sede da Mattel, empresa estadunidense, que é a maior fabricante de brinquedos do mundo... e também a principal mandante dos delitos de publicidade dirigida à infância no Brasil. O protesto foi uma maneira de expor os alarmantes dados do monitoramento da publicidade dirigida à criança, realizado pelo Alana, em parceria com o Observatório de Mídia da Universidade Federal do Espírito Santo, no período que antecedeu ao Dia das Crianças.

Por ter sido "a empresa que mais fez a sua parte com relação ao consumismo infantil", como anunciou ironicamente a coordenadora de mobilização do Projeto Criança e Consumo, Gabriela Vuolo, a Mattel ganhou o troféu de "Vencedora do Prêmio Manipuladora - Dias das Crianças 2011". A bem-humorada premiação destaca a Mattel pelas 8,9 mil inserções de anúncios para crianças, entre os dias 27 de setembro e 11 de outubro, no intervalo de seis às 21 horas, conforme aferição feita em 15 canais de TV aberta e fechada, por uma equipe de 25 pesquisadores da UFES, coordenada pelo professor Edgard Rebouças. O levantamento registrou que a criança foi o alvo de 64 % dos anúncios veiculados no período.


A estatueta em forma de fantoche de acrílico sobre base preta não foi recebida pelos executivos da multinacional. Eles não puderam desconsiderar, no entanto, a expressão pública e coletiva do descontentamento da sociedade com relação a esse tipo de prática abusiva da Mattel. O fato certamente será levado à alta direção da empresa nos Estados Unidos, que deverá analisar os riscos de continuar expondo suas marcas (Hot Wheels e Barbie, dentre outras) de modo indevido em um País, cujo processo de transformação política e social já não aceita mais determinados ultrajes neocoloniais.


Pelas ocorrências assinaladas nos últimos anos a Mattel deve estar sentindo que não dá mais para continuar atuando no Brasil como se estivesse em uma terra de ninguém. A prova de que os tempos estão mudando é que a empresa vem recolhendo milhares de produtos fabricados com problemas, a exemplo dos brinquedos contendo pequenos imãs que podem ser ingeridos por crianças e dos brinquedos contaminados com chumbo. Novidade também foi a multa de R$ 470 mil aplicada pelo Procon, após denúncia encaminhada pelo Criança e Consumo, por conta dos atributos enganosos de uma campanha publicitária da linha Max Steel.


Ao apelar diretamente às empresas para que reflitam sobre o problema, o Instituto Alana presta um relevante serviço ao mercado e à sociedade. Na carta dirigida ao diretor responsável pelos negócios da Mattel no Brasil, o Instituto Alana esclarece os motivos dos protestos na sede da empresa: "A quantidade alarmante de inserções comerciais de sua empresa direcionadas às crianças é antiética e abusiva, porque se aproveita da vulnerabilidade infantil para estimular o consumo desenfreado e sem reflexão, fomentar a amolação (´nag factor´) e o estresse familiar, além de promover padrões de beleza e valores questionáveis" (www.alana.org.br). Não se sabe que tipo de resposta a empresa vai dar, mas na hora da manifestação havia no pátio um grande boneco de Papai Noel de testemunha. E ele não fazia hô, hô, hô.