quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A experiência do pensamento - Diário do Nordeste - 25/8/2011

A Educadora, A Vencedora e O Escritor.

O largo que fica ao lado da antiga estação de trem estava lotado. Educadoras, educadores, estudantes, autoridades, gente da cidade que acredita na importância da vida cultural do município. Era sábado à noite, dia 20 passado. Fui introduzindo o tempo na minha lembrança, enquanto via a cidade de Independência, onde nasci e passei a minha infância e adolescência, brilhando em sua festa de estímulo à experiência do pensamento; uma alegre reunião comunitária que vem sendo realizada há três anos na Casa da Memória e Estação Leitura da ONG História Viva.

Neste evento, duas solenidades convergem em suas dimensões de cultura e educação: a outorga do troféu Saci, de personalidade do ano, e a entrega do prêmio literário que leva o meu nome e que tem como finalidade estimular os jovens de 12 a 17 anos, das escolas públicas e privadas, a pensarem e a escreverem sobre temas que contribuam para o aprendizado do olhar, a partir de contextos ressignificados pela liberdade literária. É um momento que mistura emoção com aconchego, participação e espírito de cidadania.

Tem chamado a minha atenção o destaque que os integrantes dessa entidade vêm dando à educação em suas escolhas de nomes para homenagear e agradecer com o troféu Saci: em 2009, Maria Stela Bezerra, em 2010, Ozanira Macêdo Pinto e em 2011, Maria do Carmo Pimentel. Todas elas, respeitadas e admiradas educadoras, portanto, de merecido reconhecimento por parte da sociedade. Não há quem tenha tido a oportunidade de estudar em Independência que não tenha passado pelos ensinamentos dessas queridas professoras.

Embora funcione mais como um processo catalisador de interesses da juventude, o prêmio literário tem uma classificação, feita a partir das avaliações de uma comissão julgadora composta por educadores, profissionais liberais e defensores públicos atuantes no município. Nas categorias crônica, poesia, conto e literatura de cordel, que têm centenas de trabalhos inscritos, os estudantes Welson Gonçalves Silva, Gleiciana Rodrigues Lopes e Cecília Pimentel de Almeida Felismino da Silva, obtiveram o primeiro lugar, cada qual em uma das três versões do concurso realizadas até agora.

A fala de Cecília Pimentel, primeira colocada na versão 2011, sintetiza bem o clima favorável à expressão do intelecto e da fantasia, possibilitada pelo exercício da escrita e da leitura. Com 13 anos de idade, ela explicou as razões de ter escolhido a história de amor dos seus avós, para inscrever no tema "A mais bela história que já ouvi", proposto pela História Viva. Disse que de tanto ouvir falar do amor do "Papai Pretinho, que hoje mora lá no céu, e da Mamãe Raimunda", resolveu contar a história desses dois que "nunca dormiram brigados, passaram muitas dificuldades nessa vida, moraram na roça, sem energia elétrica, carregando água na cabeça, lascando lenha, caçando para alimentar a imensa família".

No seu exercício de descoberta do olhar, a estudante do Ginásio Santana foi além da história em si e pesquisou sobre a "Porronca" de antigamente. É bom esclarecer que Porronca vem de "pau ronca" e era como entre o crítico e o jocoso se chamava Independência, devido às constantes e intensas brigas que aconteciam nas ruas da cidade. Cecília foi lá, procurou entender as algarobas, a mina de rutilo, o batalhão, o quebranto, as simpatias juninas e outros ícones e crenças da região para formar um juízo sobre o seu lugar e, assim, tecer à sua contação. Este é o sentido de escrever, enquanto ato de produção de possibilidades, de um pensar o ser e o vir a ser, com a cabeça livre das pressões cotidianas.

Em 2009, quando aceitei a utilização do meu nome para designar esse prêmio, o fiz com a compreensão de que ele poderia funcionar como dispositivo revolvedor das experiências do pensamento, na busca pelo fortalecimento dos valores existenciais, como estímulo a um jeito de pensar o mundo objetivo, a partir da evocação do humano. Três anos depois, percebo que ele tem contribuído de alguma forma para quebrar a lógica das coisas sempre apressadas e para colocar histórias em uma prática da vida assediada pelo efêmero. Os filósofos aristotélicos afirmam que em ultima análise, o que faz as coisas serem o que são é a finalidade para a qual foram criadas.

Cecília revelou em seu discurso que receber um computador pela primeira colocação é uma realização pessoal, mas é mais que isso; "é a certeza de que a juventude deve ser inteligente para agir, livre para amar, regrada para fazer sempre o bem ao próximo". Ela se coloca pelo seu sonho de poder viver em um lugar melhor, "sem drogas, sem prostituição, sem violência, sem medo (...) em uma Independência que todos sintam orgulho de nela morar". Foi aplaudida várias vezes e concluiu anunciando que vai continuar participando do "Prêmio Flávio Paiva", mesmo que o regulamento não permita a repetição de ganhadores.

Essa declaração de seguir participando, ainda que não possa voltar a ganhar foi uma das grandes revelações daquela noite, porque demonstra o quanto de energia criadora pulsa nas vontades dessa garotada que está aí disposta a se pronunciar em favor da construção de novas representações. Ao escutar a voz de Cecília, comecei a refletir o quanto uma atividade como essa nos oferece de oportunidade para apreciar os participantes, não como melhores ou piores, mas apenas pelo que são: nós. E somos como as palavras que entram nos textos individualmente, mas passam a ter muito mais sentido e importância quando se relacionam com as outras.

O tema "A mais bela história que já ouvi" agregou situações de paixão e as três primeiras colocadas convergiram nesse sentido: Cecília Pimentel (1ª) contou do amor dos seus avós; Mayana Menezes Lima (2ª) abordou os segredos de um lugar, São Joaquim, que era dominado por um coronel malvado, mas hoje é um assentamento com mais de 70 famílias, recorrendo à memória do seu avô: "Sempre que me contava / me enchia de emoção / voltava a ser um jovem / cheio de recordação"; e Caroline Carvalho Barbosa (3ª) narrou a bravura de um rapaz de poucas posses que, apaixonado por uma linda mulher, filha de um rico coronel, precisou atravessar o rio São Francisco com ela na garupa de um cavalo, para poder receber o consentimento do pai da moça.

Mayana chorou ao falar do "Berço de amor e de sonhos / Mundo onde pude crescer" e ao agradecer pela família que tem. Família que estava presente, como a de Cecília e de outros participantes. Fiquei muito feliz também por constatar a quantidade de professoras e de professores presentes. São fatos simples assim que alimentam as minhas esperanças, que reforçam em mim o sentimento de quem nem tudo está perdido. E digo isso também porque a meu lado estava o Sr. Joaquim Augusto, que fez a minha certidão de nascimento e de casamento, e as minhas professoras Maria do Carmo, Ozanira e Cacilda Sales. De corpo presente, faltou só o padre Jacques Moura, que me batizou.

Terminado o evento, ganhei de presente o livro "Carisma de um provinciano" de presente do "Seu" Salvador, poeta de 84 anos, que foi agricultor, alfaiate, comerciante, que tem o dom de achar água na caatinga e que só não gosta de contar história de onça porque fica com a impressão de que as pessoas podem achar que é mentira. Ao abrir aleatoriamente na página 33, o poema "Abstração" me disse que "Tem tempo que o tempo dá / Tem tempo que o tempo tira / Tem tempo que o tempo encolhe / Tem tempo que o tempo estira / Tem tempo que o tempo dá tempo / Que o próprio tempo se admira". E sai mais uma vez agradecido por continuar sendo educado pelos conterrâneos que vieram antes e depois de mim. flaviopaiva@fortalnet.com.br


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Sobre o sonho da juventude - 18/08/2011 - Diário do Nordeste

A sociedade brasileira é historicamente aberta; o que faz do Brasil um país que não tem medo de mudar, nem de ensaiar novas experiências. Esse ativo, próprio da miscigenação e sua textura multiétnica, é um diferencial comparativo de grande valor no redesenho geopolítico e econômico mundial. Basta observar que enquanto parte significativa da juventude dos países mais industrializados entra em fechamento nacionalista, um número expressivo de jovens brasileiros trama novas identidades em arranjos culturais compartilhados.

O mapeamento dos valores, crenças, visão de país e de novos modelos de ação coletiva, que estão na perspectiva dos brasileiros de 18 a 24 anos, aparecem com evidente otimismo no relatório da pesquisa "O Sonho Brasileiro", realizada entre dezembro de 2009 e junho de 2011, pela Box 1824, com apoio do banco Itaú. Estive na terça-feira passada, 16, no Itaucultural, em São Paulo, como debatedor dos aspectos de Fusões Criativas presentes nesse projeto e reforcei o meu alinhamento com esse sonho, no que ele tem de pulsão desejante e potencial transformador.


O trabalho foi construído a partir de pesquisas qualitativas, envolvendo jovens atuantes de Porto Alegre, Recife, Rio e São Paulo, conversas em grupos, aprofundamento de hipóteses e análise geracional comparativa, com base nos códigos fixados pela indústria cultural a partir da 2ª Guerra, para chegar de modo contundente à pesquisa quantitativa, que foi aplicada nas classes A, B, C, D e E, com 1.784 entrevistas, feitas em 173 cidades de 23 estados brasileiros. Dos vários percentuais positivos resultantes, pode-se ver que 89% dos jovens pesquisados têm orgulho de ser brasileiros, 76% sentem que o Brasil está mudando para melhor e 87% veem o Brasil como um país importante no mundo de hoje.

Tomando como referência dados do IBGE (Censo 2000, com estimativa para julho de 2009), a Box calculou que no Brasil existem hoje cerca de 25 milhões de jovens na faixa entre 18 e 24 anos, dos quais aproximadamente dois milhões foram classificados por ela como jovens-ponte; aquele que "funciona como catalisador de ideias, gerando um novo tipo de influência, que se dá pela transversalidade". Coloquei no debate a sugestão de mudança da metáfora para jovem-roteador, pois, diferentemente da simples ligação de pontos, com a finalidade de permitir a passagem por cima de si, o roteador tem a capacidade de interligar redes e de dinamizar o fluxo de dados, escolhendo o melhor caminho.


O maior sonho da juventude brasileira é a formação profissional e o emprego (55%). Mas para ser sonho mesmo os entrevistados realçam que querem mais do que fugir da síndrome da inutilidade; querem associar o trabalho à realização pessoal e comunitária, tanto que 74% sentem-se na obrigação de fazer algo pelo coletivo e 79% mostram-se dispostos a reservar parte do tempo para ações em favor da sociedade. O estudo faz uma importante ressalva, com relação a possíveis dissonâncias entre o que dizem e praticam os entrevistados: "Conectar-se com o discurso coletivo não significa necessariamente já estar agindo pelo coletivo".


Ao mesmo tempo em que se nota uma vontade corditiva de praticar os seus sonhos percebe-se uma certa vulnerabilidade no ambiente de afirmação desses jovens que vivem uma fase de destacado poder de influência com relação aos mais novos e aos mais velhos. Quando dizem que topam agir com honestidade para ajudar a transformar o Brasil (56%) podem estar dizendo que esperam algum exemplo a seguir. Esse quadro da falta de papeis-modelo traz ainda como complicador o momento de vergonha democrática vivido no Brasil em decorrência da prática corrupta de muitos dos integrantes da geração anterior que hoje estão no poder e que em sua juventude levantaram a bandeira da moralidade social e política.


Reinaldo Pamponet, que desde 2003 dedica-se a projetos culturais envolvendo jovens, a exemplo da Eletrocoperativa e da Rede Itsnoon, declarou no debate seu ceticismo quanto ao propósito dos jovens-roteadores de agir pelo coletivo. Para ele, a regra gerada pela ausência de referenciais de liderança no país é a da criação de jovens-escada, aqueles que querem se dar bem de qualquer jeito. Defensor do modelo de sociedade em rede, acredita que o melhor caminho para o que chama de venda de subjetividades está na iniciativa privada, onde a agenda é mais clara do que no mundo estatal.



O estudo sobre o "Sonho Brasileiro" é desafiador porque revela um dilema entre o potencial de realização e a possibilidade de frustração de uma juventude que parece estar mais bem preparada para buscar um novo estilo de vida, menos corrosivo do que o modelo consumista atual, do que as elites econômicas, intelectuais, sindicais, religiosas, políticas e culturais do país. Além da reinvenção dos padrões de produção e consumo pelo capital da criatividade, 70% desses jovens, mesmo em situação de incerteza econômica, não querem abrir mão de uma atuação comunitária, preferencialmente nas áreas de cultura e arte (31%), meio ambiente (29%), educação (26%), esporte (25%) e tecnologia (19%).


Movido pelo extraordinário potencial dessa juventude em movimento e pela mina de felicidade bruta que existe por trás do "Sonho Brasileiro", compartilhei com os participantes do debate no Itaucultural o conceito de "Cidadania Orgânica" que criei para traduzir essa força que emana da sociedade civil: "O cidadão orgânico é de um lugar, não de uma classe, e não precisa ser um intelectual, nem ter atuação partidária; age porque o todo lhe interessa, porque se sente parte do todo. É universal porque associa o futuro do planeta ao seu futuro e vice-versa (...) Aquele que tem uma experiência autêntica, para com ela existir de forma integrada à natureza, independente de ser viajado ou não" (Revista Fale!, p. 30, mar/2009).


As armadilhas existentes nas trilhas abertas pela nova geração de um novo Brasil, não são poucas. Em seu contraditório jeito de viver um tempo em que tudo está tão próximo, mas tudo parece correr em direção à inexistência, a juventude depara-se a todo instante com o fundamentalismo tecnológico, com o sofisma da visibilidade democrática, a pregação de falsas estabilidades jurídicas, a "desnoção" do público e com a falta de uma clara distinção entre os dois sistemas colaborativos vigentes: a) o que catalisa energias das pessoas para a dinâmica da coesão social e para a sustentabilidade; e, b) o que tem como fim a canalização do altruísmo da juventude para o barateamento de custos das corporações do mercado de conteúdos.


O estudo destaca uma compreensão dos participantes do projeto no sentido de que a cultura global não passa de um mosaico de culturas locais: "Jovens enxergam que a cultura global não anula as particularidades locais, mas, pelo contrário, cria um espaço mais amplo onde manifestações distintas podem dialogar e trocar". Conversando com o Júlio César Oliveira, um jovem-roteador gaúcho, que participou do debate sobre Fusões Criativas, ele me falou da evolução que vem ocorrendo no hip hop, a partir da descoberta da abundância cultural brasileira. Nas oficinas que ele ministra tem sido comum o trabalho com música popular brasileira. Com isso, o hip hop vai deixando cada vez mais de ser apenas uma estética importada da periferia norte-americana para se integrar ao conjunto de expressões assimiladas e ressignificadas pelas cores da brasilidade. Este país eu conheço e nele me reconheço.



quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Uma classe em travessia - 11/08/2011

Em que pese o fato de não ter uma clara distinção de ordem sociocultural, o contingente de 30 milhões de brasileiros que ascendeu nos últimos nove anos à categoria de consumidores no Brasil constitui, do ponto de vista de rendimentos, uma classe em travessia. Essas pessoas, que passaram a ganhar entre R$ 250,00 e R$ 1.000,00 por mês, têm sido classificadas pelo governo como integrantes de uma Nova Classe Média.

O rápido declínio da pobreza e a lenta elevação da distribuição no âmbito da classe média produziram um crescimento desbalanceado da renda no Pais, resultando na expansão de uma massa heterogênea de brasileiras e de brasileiros com níveis comparáveis de condições financeiras. As contradições constitutivas desse quadro requerem atenção para dois movimentos, um no campo econômico e outro no campo cultural.

O movimento no campo econômico ganhou na segunda-feira passada, dia 8, um seminário orientador de diretrizes para políticas públicas que possam ampliar as oportunidades dessa classe média emersa das ondas da pobreza, com maior segurança social. Realizado em Brasília, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e pelo Ministério da Fazenda, o evento foi pautado também pela urgente necessidade de medidas anticíclicas de fortalecimento do mercado interno diante da recessão mundial.

Comentarei um pouco mais à frente alguns pontos que, ao participar desse seminário, intitulado "A média faz a diferença", entendi como de fundamental importância para a potencialização desse fenômeno de mobilidade social por impulso econômico e sua repercussão em arranjos étnicos, religiosos, familiares, educacionais e de gênero. Antes, porém, revelarei as anotações que, enquanto ouvia os palestrantes, fiz pensando no que poderia ser um movimento no campo da cultura, que pudesse facilitar que esse grupo social realmente se tornasse parte integrante da classe média.

E quando falo em classe média, refiro-me ao conjunto de cidadãs e cidadãos dotados de repertório cultural e técnico, com relativo padrão de consumo e valores capazes de assegurar a coesão social e de ter pensamentos prospectivos, indispensáveis à sustentabilidade. Neste aspecto, o Brasil está carente em todas as classes. Imagino que caberia ao Ministério da Cultura (MinC), em articulação com o Ministério da Educação (MEC), a montagem de um amplo programa de políticas de cultura para um País desejado, com foco especial na Nova Classe Média.

É temerário seguir com a turbinagem da melhoria de renda e da proteção social, se tivermos o cuidado de olhar apenas para a nossa defesa territorial, com base na competitividade do mercado de bens e de serviços financeiros, sem uma relação mais constante e consistente com o mundo da cultura. O equilíbrio do sistema econômico-social passa pela oportunidade de refletirmos sobre os fundamentos da vida em comum, pelo fortalecimento das instituições e por uma sociedade civil forte, coisas que só podem ser conquistadas plenamente pelas essencialidades culturais.

Os sistemas nacionais de cultura e de educação precisam estar fortemente integrados e comprometidos com o lema de que "Um país rico é um país sem pobreza", adotado pelo governo da presidenta Dilma Rousseff. E o fator determinante para essa construção política e social é uma educação alicerçada na cultura. Ao investir na fase de estabilização da Nova Classe Média, dando o suporte indispensável para que esse grupo social permaneça no leito da economia, evitando qualquer regresso às margens dos indicadores de pobreza, as políticas públicas brasileiras não devem ser traídas pelo mesmo senso de imediatismo que caracteriza a compulsão de quem tem a primeira experiência de crédito.

A minha expectativa com relação a uma ação integrada do MinC e do MEC, em favor de facilitar que a sociedade brasileira pense a vida a longo prazo, está em linha com o pensamento do economista Eduardo Giannetti, quando ele diz que é papel do poder público é trabalhar para reduzir o fosso entre o valor representado e a prática de vida das pessoas. Essa separação entre o que é motivacional do que é valorativo está diretamente ligada à complacência com que confundimos as circunstâncias com a permanência.

Giannetti destaca outro exemplo de dissonância no ambiente econômico em que floresceu a Nova Classe Média, ao comentar que os emersos da pobreza querem educação, mas basicamente só têm recebido venda de credencial, sem contrapartida de conhecimento. Esse pragmatismo do mercado e de muitas das pessoas em ascensão gera uma cumplicidade difícil de ser superada, sem o exercício do refinamento dos quereres, que só a cultura possibilita.

O estudo apresentado por ocasião do seminário "A média faz a diferença" mostra a migração da participação das pessoas em entidades tradicionais, como partidos e sindicatos, e um maior engajamento, sobretudo dos jovens, em coletivos culturais e redes sociais. Revela que os que têm acesso a computadores se sentem mais criativos, mais empreendedores e superiores aos demais. Uma parte significativa do debate teve suas lentes voltadas para a questão da identidade e dos valores da Nova Classe Média.

O entendimento dos comportamentos e das atitudes que se assemelham e que diferem do jeito de ser e de agir desse grupo social, antes da mudança de patamar aquisitivo e com relação às classes privilegiadas e às que continuam abaixo da linha da pobreza, é tarefa para ação cultural e educativa. O sociólogo Roberto Dutra apresenta uma chave para essa questão ao afirmar que o que separa as classes atualmente é mais a capacidade de descortinar chances e de ter esperança do que necessariamente a renda. Para isso, põe em debate a necessidade de superação da dicotomia existente entre solidariedade e individualismo, valores e pragmatismo, tão presentes no perfil de uma classe modelada pelo poder de compra.

Na opinião do economista Márcio Pochmann esse nexo de classe compradora não se manterá por muito tempo. Para ele, mesmo que os novos segmentos não sejam individualistas por princípio, a tendência de estagnação na ampliação de postos de trabalho forçará uma corrida para a polarização social. A saída para isso, segundo Mário Pezzini, especialista italiano em política de clusters, está na transformação do sistema produtivo. O País precisa pensar urgentemente em um novo modelo de crescimento. Também acho, mas isso só poderá ser feito para valer com uma imersão cultural que compatibilize os sonhos e a capacidade de empreender da brasilidade.

Aliás, brasilidade é um ponto de destaque do estudo discutido no seminário. As pessoas que integram a Nova Classe Média Brasileira têm preferência e valorizam os produtos nacionais, contudo, não têm a menor noção da necessidade de capitalizar o País, a fim de individual e coletivamente termos mais segurança econômica. Eduardo Giannetti chama de miopia temporal essa limitação imposta pela excitação imediatista que leva o trabalhador a gastar tudo o que ganha.

Não há dúvida da importância do enfrentamento dos desafios voltados para poupança, demanda por crédito, situação da mão de obra, consumismo e novas habilidades para manter a mobilidade dos últimos anos, ou pelo menos para colocar uma quilha que evite o naufragar dessa classe em travessia. Mas para o Brasil se afirmar como pais de respeitada importância no cenário da multipolaridade mundial, faz-se necessário pensar em qualidade de vida e isso passa por cultura e educação. flaviopaiva@fortalnet.com.br



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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A incrível Serra das Confusões - 4 / 8 / 2011 - Diário do Nordeste

A consistência e a repercussão do trabalho que vem sendo desenvolvido pela arqueóloga Niède Guidon na Serra da Capivara há quarenta anos, no sudeste do Piauí, inspiraram a criação em 1998, do Parque Nacional da Serra das Confusões. A reserva ainda não está oficialmente aberta a visitações - agora é que estão sendo construídos os controles de entrada - mas é possível chegar a esse intrigante lugar com a ajudar de pessoas das cidades próximas, que conhecem suas trilhas.

Estive lá com a minha família, no mês de julho passado, e ficamos um dia inteiro nas Confusões, em companhia do Sr. Carlinhos, um tipo guardião do parque que trabalha para o Ibama em Caracol. Em sua caminhoneta 4 x 4 ele nos levou a pontos incomuns ao nosso senso de realidade. Logo que subimos a serra caatinga adentro, olhamos uns para os outros com a impressão de que caíramos num outro mundo, onde as regras de perspectiva desafiam o tempo e o espaço.

O sistema de interpretação do nosso cérebro certamente teve que fazer um esforço extra para associar os elementos daquela paisagem de vegetação saltitante entre formações rochosas que mais parecem gigantes castelos de areia feitos por duendes. Antes de pisar no chão, podemos até jurar que a tortuosa trilha para carros, cortada à base de picareta pelos moradores locais, não passa de areia fofa e branquinha, com bitolas desenhadas por pneus. Mas não é não. Aquilo lá é duro que só e quem não se der conta disso pode pagar a desatenção com topadas e raladuras.

De cima das rochas o impacto maior é ver que na Serra das Confusões o plano ganha profundidade. Parece um mar de arenito, com ondas rochosas que podem marear. Tudo se mexe e nada se move. É pura ilusão de movimento, como se ora as nuvens de acúmulo que passam no céu fizessem parte do chão e ora as rochas saíssem flutuando multiformes pelo céu. Essa visão espelhada do infinito acontece com a participação invisível, mas não intocável, dos ventos. Eles que ao longo de milênios alteraram a forma das rochas com a cumplicidade das águas.

No dia em que fomos às Confusões, tivemos momentos de céu azul, com nuvens brancas, e de céu nublado, com as nuvens da cor chumbo das carapaças das rochas. Aliás, contam os moradores da região que o nome Serra das Confusões deriva da variação de cores dos paredões - alguns com 100 metros de altura - que, além da diferença cromática das suas formações, alteram os tons de acordo com a incidência de luz, fenômeno que deixa a vista confusa.

Nas áreas fechadas em cinturões de arenito, a vegetação assume características muito especiais, como se tentasse nos lembrar do tempo em que a região foi uma floresta úmida. O clima quente do sertão sai variando de temperatura entre cânions e boqueirões. Há lugares que apresentam sensação térmica de friagem inacreditável. O ar-condicionado da natureza fica sempre ligado em áreas como a da gruta do Riacho dos Bois. Fomos sentir de perto essa maravilha e descemos por um penhasco de uns trinta a quarenta metros, contando com o apoio de duas escadas nas partes mais íngremes.

A entrada da gruta é majestosa. Templo natural. Quem estiver preparado para se iluminar pode fazê-lo ali sem muito esforço. Ao iniciar a entrada na gruta, passamos por uma árvore com raízes em forma de trança... uma surpreendente trança que sobe rumo às nuvens como no mundo mágico do conto João e o Pé de Feijão. Balcões de samambaias e árvores robustas acenavam para nós em nossa caminhada sobre pedras lavadas e raízes sinuosas, avisando-nos que o percurso seguia o leito seco de um riacho que ainda toma água quando chove.

Quando a luz começou a rarear vimos surgir na parede do lado direito um nicho sedimentar, com iconografia que nos trouxe à lembrança as torres da Sagrada Família, de Antoni Gaudí (1852 - 1926), como se elas estivessem juntas em uma expiatória noite de lua cheia. Foi uma grata visão de pura atmosfera noir, em deslumbrante preto azulado. Não sei se essa imagem aparece durante todo o dia, sei que por volta das 15 horas quando passamos por lá esse vulto de beleza artística ilustrou o nosso passeio.

Cruzamos uma área clareada por uma fenda no teto e da profundidade que estávamos podíamos ouvir o canto e ver a silhueta de um bando de andorinhas que se acostava para dormir. As réstias de luz solar que avançavam gruta adentro nos fizeram enxergar duas pequenas cobras, uma rajada de preto e branco e a outra meio amarelada, com pintinhas marrom no dorso. Em seguida, desviamo-nos do percurso principal para caminhar uns cinquenta metros em uma sinuosa galeria de teto baixo, estreito e passagens entrecruzadas. Chegamos a um reservatório de água doce e cristalina, no qual sorvemos o frescor da nossa aventura.

Éramos cinco e só levávamos duas lanternas. Talvez para ficar mais emocionante, uma delas pifou. A escuridão não pareceu maior porque estávamos encantados. Faltava pouco para chegar ao lugar que buscávamos. Mesmo que a outra lanterna também falhasse, tínhamos a convicção de que valeria a pena seguir em frente "enxergando" com o tato. Tomamos a decisão certa, a lanterna funcionou bem e, depois de caminharmos dois quilômetros pelas galerias da gruta, chegamos a um jardim que explodiu de verde o nosso olhar. Em clima úmido e com luz que chega por uma larga fenda, plantas com folhas gigantes, caules retilíneos e um ninho de Arara Canindé, pintando de azul e amarelo uma loca de pedra do paredão, parte alaranjado, parte verde de musgo. Tudo lindo, tudo dádiva.

Na trilha que fizemos para o Alto do Capim entramos em uma caverna com desenhos de círculos concêntricos, pássaros, répteis, redes de caça, trançados e aramados. Deparamo-nos com um tipo de recipiente, com diâmetro e profundidade aproximada de um metro, esculpido no piso, como os que vimos tempos atrás nas cavernas de São José do Piauí. Nessa caverna encontramos as pegadas preservacionistas da arqueóloga Niède Guidon, que colocou uma escada de acesso ao local, mas fechou a entrada com portão de madeira e cadeado, evitando assim a ação de vândalos que possam transitar no parque sem acompanhamento de um guia.

Na Toca do Enoque, outro sítio quem vem sendo trabalhado por Niède e sua equipe, a galeria com tartarugas, lagartos, sol brilhante, tatu, tamanduá, araras, seres aquáticos, pessoas e trançados, feitos com os pigmentos de óxido de ferro comuns na região, apresenta marcas de tiros. Nessa encosta ainda estão visíveis inscrições feitas em diversos níveis de altura por grupos humanos pré-históricos. Embaralha a imaginação ver que por alguns metros de diferença, as pinturas revelam algo em torno de dez a treze mil anos na idade dos artistas que tiveram a feliz atitude de dar atemporalidade à sua vida cotidiana.

No meio da mata paramos para observar uma pedra que é um misto de mão e de pata gigante, isolada sobre um altar, como se uma escultura da natureza avisasse que aquele mundo é sagrado. Emoção igual manifestou-se em mim quando chegamos a um olho d´água, onde samambaias, musgos e cururus escutam o chamado das raízes e do caule de uma gameleira agigantada, que segue as formas das pedras numa surrealista ascensão em busca da luz do sol, que entra misteriosa pelas frestas das rochas de arenito. É um festival de plasticidade, de contorcionismo e de cores e tons, a cintilar na textura das pedras molhadas pela infiltração das águas, sublimando a natureza.

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