quinta-feira, 26 de maio de 2011

A consciência ecoplanetária - Diário do Nordeste - 26/05/2011

Participei com muita satisfação das comemorações do centenário de ação educativa do Colégio Santa Cecília no Ceará, realizadas no sábado passado na própria escola, em Fortaleza. As coordenadoras do evento me presentearam com o desafio de falar sobre o tema "O planeta precisa de gentilezas" para pais, mães, educadoras e educadores. Organizei o meu pensamento em três movimentos voltados ao referencial de gentileza, na sua concepção formadora de uma consciência ecoplanetária.

No primeiro movimento tratei de compartilhar uma reflexão sobre quais seriam os grandes atos virtuosos que, impulsionados pelo fenômeno criativo da intuição e da razão, tornaram-se capazes de traduzir em prática social o que a sensibilidade humana tem de melhor em sua disposição de fazer o bem. Mergulhei nas nebulosas do tempo e garimpei sete desses atos: cooperação, tolerância, generosidade, idealidade, moralidade, alteridade e gentileza.

Comecei pela Cooperação porque a atitude da colaborar mutuamente em uma mesma ação foi um dos primeiros passos evolutivos da nossa humanidade. A insuficiência da capacidade de competir individualmente para garantir a sobrevivência levou os primeiros seres humanos a flexibilizar seus instintos primitivos para reconhecerem-se semelhantes e poderem, assim, contar uns com a companhia dos outros nos embates pela perpetuação da espécie.

Depois de notar a existência e a importância do próximo, nossos ancestrais tiveram que inventar a Tolerância. Os esforços para suportar a diferença em favor da sociabilidade e da convivência provocaram a invenção do consentimento. Esse foi um enorme exercício de paciência e de humildade, pois, tolerar tem como premissa a postura de aguentar a presença convizinha e o relacionamento com alguém que tem as suas próprias necessidades, desejos e vontades.

O interesse pelo outro e o respeito por si mesmo fez nascer o espírito solidário, voltado para ações que considerassem a fraqueza do semelhante. Mista de exercício da dignidade e do amor, enquanto impulso ao querer bem e ao desejar o bem, a Generosidade passou a ser fundamental na correção das desigualdades, embora ao longo do tempo tenha sido confundida com a exibição da superioridade de quem dá sobre quem recebe. Não é à toa que existem tantas pessoas, físicas e jurídicas, construindo "boa imagem" sobre a miséria dos outros.

A descoberta da Idealidade decorreu do avanço da consciência individual para o coletivo, descortinando no ser humano o anseio de compartilhar aspirações comuns. Os ideais dos sonhos de paz, de bem-estar e de busca por um estado pleno de contentamento, que chamamos de felicidade, exigiram a intensificação da cumplicidade e o desenvolvimento do ato virtuoso da Moralidade, como condição para assegurar a liberdade. Nem sempre isso é possível porque a moral oscila de acordo com as circunstâncias, os interesses e o jogo de forças entre as correntes religiosas, filosóficas, artísticas, científicas, políticas e comerciais.

A Alteridade é uma qualidade muito difícil de ser transformada em ato. O agir considerando recíproca a visão do diferente só ocorre quando alcançamos um elevado nível de empatia, altruísmo e consciência relacional. A compreensão do que é outro e não apenas da existência do outro em si, requer aceitação do próximo pelo que ele é em seu jeito de pensar, ser e viver. Na formação da consciência ecoplanetária, a alteridade aplica-se na relação da cultura com as mensagens da natureza.

Apesar de não ser nova, a ação de ser gentil perpassa todos esses atos virtuosos em maior ou menor grau. À medida que a humanidade se desembrutece, as pessoas tornam-se mais gentis, mais amáveis, afetuosas, carinhosas e mais refinadas no modo de se tratarem. Ser gentil é ser a presença que estabiliza o outro. A gentileza se faz por realização interior (arte e espiritualidade), por comunhão externa (amizade e fraternidade) e pelo aperfeiçoamento da reaproximação do ser humano com a comunidade de vida na Terra.

No segundo movimento orientado à gentileza na perspectiva da sustentabilidade fiz uma rápida visita às metáforas que têm sido utilizadas para caracterizar as grandes transformações no comportamento da humanidade: o Caçador e o Jardineiro. Acrescentei ao debate duas metáforas criadas por mim (o Lenhador e o Lavrador), na busca de completar o ciclo que vai da pré à pós modernidade, em uma mesma inspiração de consciência ecoplanetária. Tema sobre o qual eu havia discorrido em minha coluna de 03/09/2009, neste Diário.

Retomei no debate do Colégio Santa Cecília alguns qualificativos acrescentados ao conceito de modernidade, a exemplo dos termos "supermodernidade" e "hipermodernidade" utilizados pelo antropólogo George Balandier e pelo filósofo Giles Lipovetsky, ambos franceses, e a "modernidade líquida", do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Ainda que eu prefira estas visões do caráter hiperbólico da modernidade, não deixei de destacar também a definição de "pós-modernidade", do filósofo francês Jean-François Lyotard, que associa o fim da modernidade ao fim das metanarrativas que davam suporte a sistemas, doutrinas e movimentos ideológicos.

A modernidade não acabou. O que parece um fim não passa de uma fase de transição forçada pela exaustão do comunismo, do fascismo, do capitalismo, do liberalismo e do nazismo. O chauvinismo europeu em reação às novas movimentações migratórias, o fundamentalismo tecnológico e a ideologia do consumismo não parecem em nada com o que poderá ser a pós-modernidade. Talvez a nova modelagem geopolítica mundial em franco redesenho aponte para o que o cientista político estadunidense Samuel Huntington classificou de "choque de civilizações". Ou seja, conflito de valores, instituições, religiões, histórias, línguas, tradição, enfim, embates de culturas.

No terceiro movimento, dos três com os quais procurei abordar o tema "O planeta precisa de gentilezas", realço o que, na minha observação, são os maiores e mais complexos desafios da gentileza em um mundo marcado pelo egoísmo social: a) agir sobre as causas do esgotamento dos recursos naturais do planeta; b) instituir o parâmetro da coexistência, e c) descobrir os encantos do cotidiano.

Para quem, como eu, ainda acredita que seja possível reverter o desembestar da humanidade rumo ao próprio fim, a alternativa é procurar fazer valer os nossos atos virtuosos e honrar a dádiva de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus, o que nos impõe a obrigação de divinizar a vida. Logo, temos que nos desvencilhar dos tabus e ter coragem de enfrentar questões óbvias como a explosão demográfica, a desconstrução da infância, a ingratidão para com os que construíram o que somos, o tsunami digital que prega o escancarar da intimidade como um valor social e a controversa ideia de crescimento econômico, como sinônimo de promessa de riqueza, de renda e de bem-estar.

Em cada gesto do nosso cotidiano podemos cuidar do planeta como um ser sensível do qual a humanidade faz parte. Se desejarmos escapar da metáfora do Lenhador, que avança na destruição do nosso hábitat comum, para chegarmos à metáfora do Lavrador, aquele que se sente parte da terra, que deixa a terra descansar e a cultiva com organicidade, temos que reaproximar cultura e natureza, urbano e rural, explorando a nossa vastidão interior para chegar a um estado de plenitude que faça da existência algo grandioso. Nessa jornada, privilegiar a gentileza é a trilha mais curta que nos levará a privilegiar a vida no planeta. flaviopaiva@fortalnet.com.br

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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Visões do MinC em três tempos

As diversas polêmicas envolvendo a cantora e atriz Ana de Hollanda no comando do Ministério da Cultura (MinC) nos convoca a pensar sobre o que está mesmo acontecendo para motivar o que o ministro Gilberto Carvalho (Secretário-geral da Presidência da República) chamou de "orquestração sórdida". Para tentar compreender tudo isso, revisitei os efeitos das filosofias das políticas culturais brasileiras nos governos Fernando Henrique (1995 - 2002) e Lula (2003 - 2010) e os primeiros movimentos do MinC no governo Dilma Rousseff.

A degradação da nossa ecologia cultural no governo tucano deu-se a partir da doutrina neoliberal do estado mínimo, o que fez com que os destinos da cultura fossem entregues aos interesses do mercado. A máxima da inevitabilidade da globalização econômica e o alinhamento incondicional com as políticas de planificação do mundo, lideradas pelos Estados Unidos, violou os conceitos de valor artístico e social da arte, restringido-a a uma exagerada mercantilização.

O lema do "presidente esclarecido" era levar o País ao "primeiro mundo". Em nome dessa aspiração a cultura foi vinculada, por força de lei, ao gosto publicitário e acabou resumida a produto de consumo de massa. Deu praga na nossa variedade de espécies artístico-culturais. O que valia era a relação custo-benefício, com a estética da grana deitando e rolando em nossos bens simbólicos, em total abandono de qualquer coisa que não significasse lucro.

O Ministério da Cultura de Francisco Weffort ficou a ver o desfile do império das louras do "tchan", do pagode higiênico (negros de paletó e cabeça raspada para esconder o pixaim), da proliferação do rap e do funk como recursos de protesto das periferias, da literatura esotérica e de autoajuda, da síndrome das celebridades de "Caras", do Polishop da fé tele-evangelizada, da ciência de resultados, dos programas de baixaria áudio-visual e outros shows de horrores consumidos como diversão e lazer.

Na era FHC, a nossa diversidade inventiva passou a ser vista apenas como insumo de produção em grande escala. O ideário abraçado pelo tucanato nos levou a um período de anticultura, de atração pelo que não somos, de desfiguração das essências pela sedução das novas embalagens. A representação da cultura nacional chegou a ser feita oficialmente por um hino breganejo nas comemorações do quinto centenário. Para completar, no apagar das luzes, o mercado brasileiro de livros foi praticamente entregue às editoras transnacionais de "best sellers".

Embora o crescimento da internet no Brasil tenha ocorrido logo no início do governo FHC, o mercado digital tomou gosto comercial pela cultura brasileira na era Lula. Os tempos de Juca Ferreira à frente do MinC - primeiro como secretário-executivo de Gilberto Gil e depois como ministro efetivo _ coincidiram com a instalação no País de grandes empresas do mercado mundial de conteúdos, que ocuparam estrategicamente o "share of mind" (participação da marca na percepção do consumidor) dos usuários brasileiros, com propaganda lastreada nos princípios democráticos da rede mundial de computadores e na praticidade de comunicação da telefonia digital.

Nesse cenário, o MinC desenvolveu um trabalho extraordinário de ativismo reflorestador da cultura brasileira, investindo forte na militância cultural em uma grande semeadura que contemplou manifestações artísticas e culturais dos povos indígenas e dos imigrantes africanos, europeus, árabes, asiáticos e dos vizinhos americanos, que contribuíram para a nossa sedimentação multiétnica. A cultura popular refloresceu no governo Lula, entre as ervas daninhas das ofertas anunciadas pela nova ordem de consumo e os transgênicos disseminados pelas corporações que dominam os canais das quatro telas (televisão, computador, cinema e celular) por onde escoam as induções dos hábitos massificados de consumo.

O MinC lançou mão do ferramental tecnológico disponível para fazer uma revolução, onde Pontos de Cultura reintegram a arte ao cotidiano das comunidades e teias culturais se articulam, dando unidade à nossa diversidade. Essas e outras ações estimularam novos modos de produção, em muitos dos quais o processo autoral toma as feições de criação coletiva e os coletivos assumem o fazer cultural construindo outras vias comerciais, independentes do tradicional mercado de bens e produtos. Uma maravilha que, infelizmente, não conseguiu combinar reflorescimento com estratégia sustentável de País.

As grandes corporações do mercado de conteúdos perceberam a existência dessa vulnerabilidade e viram nela uma oportunidade para conseguir insumos culturais gratuitos, como redução de custos dos seus negócios bilionários. Colocaram lobistas e patrocinaram consultores para contaminar os órgãos oficiais de cultura com a lógica da economia do mercado digital. O resultado desse descuido oficial foi o surgimento de uma cumplicidade aloprada, consciente ou não, entre os responsáveis pelos interesses do mercado e os novos produtores de bens e serviços culturais, brotados a partir do fomento feito pelo MinC, o que resultou em uma estranha versão atualizada do neoliberalismo tucano.

A situação começava a ficar crítica, quando elegemos a presidenta Dilma Rousseff e ela convidou Ana de Hollanda para ser ministra da Cultura. O tempo de gestão da nova ministra ainda é muito curto para fazermos qualquer juízo da sua filosofia de gestão, mas pelas primeiras medidas que ela tem tomado à frente do MinC nota-se que aponta para uma consciência da preservação da biodiversidade cultural, com atenção especial à valorização das madeiras de lei, que são os refinadores de arte. Nessa perspectiva, a ministra Ana dará continuidade à parte louvável do trabalho de Juca Ferreira, mas ajustando o setor ao nível que ele precisa alcançar para contribuir efetivamente com o desenvolvimento político, social e econômico do País dentro da nova conformação geopolítica mundial.

A ministra tem tomado medidas acertadas, como a retirada do portal do MinC do selo "Creative Commons", que simboliza o novo padrão de "copyright" do mercado de conteúdos, e a revisão da legislação de incentivo à cultura e de direitos autorais, comprometidas em suas essências pela ambiguidade das circunstâncias em que foram formuladas. Ambas precisam encontrar pontos de flexibilidade que as ponham em linha com os interesses mais legítimos da sociedade. Nesse aspecto, espera-se que a ministra pressione também o Ecad (Escritório de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais), por mais transparência na distribuição do quase meio bilhão arrecadado anualmente com execução pública de música.

Em apenas cinco meses de gestão, Ana de Hollanda tenta cumprir os contratos da administração anterior e dinamizar o ministério com uma cota orçamentária um pouco maior do que a arrecadação do Ecad. Mesmo assim, ela já criou uma Diretoria de Educação, para desenvolver, juntamente com o MEC, programas dirigidos a professores e estudantes, no momento que o Plano Nacional de Educação prevê que pelo menos metade dos nossos cinquenta milhões de jovens frequentarão a escola em tempo integral. O MinC está trabalhando nos projetos culturais do Brasil para a Copa de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, sem contar com o mapeamento que está sendo feito para fundamentar as políticas de Estado para a cultura, em consonância com o seu potencial econômico, político e de cidadania.

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quinta-feira, 12 de maio de 2011

Saudações alvinegras - 12/05/2011 - Diário do Nordeste


Os clubes de futebol, como tudo o que tem história, são criados, se desenvolvem, alguns desaparecem e outros conquistam vida longa e renovada, como o Ceará, que em 2014 chegará aos 100 anos de fundação, com uma torcida solar rejuvenescida no claro e escuro do tempo. O futebol se manifesta com jeito próprio entre encantos e desencantos vindos desde as mais puras fantasias de nossas infâncias.

Escolher um time é definir-se como parte de uma torcida, onde as regras da racionalidade não se aplicam. Torcer é algo muito subjetivo, que depende de diversos fatores, dentre os quais a boa fase vivida pelo time no momento em que se desperta para o esporte, além de suas próprias representações simbólicas. O direito à experiência de torcer, de ter ídolos, de partilhar sentimentos comuns com anônimos, assumindo os percalços e encantos que isso significa é engrandecedor.

Movido por essa compreensão, mesmo sendo torcedor do Ceará, procurei não forçar a preferência dos meus filhos na escolha dos seus times. O risco foi grande, considerando a má fase do Vovô nos últimos anos. Cheguei a ir ao estádio com eles, ora em jogos do Ceará e ora em partidas do Fortaleza, neste caso, atendendo a demandas provocadas por alguns dos seus amigos de escola. Ficou nisso por um período, o que foi importante para eles começarem a demonstrar interesse pelo caderno Jogada, a ver alguns jogos pela televisão, inclusive das ligas internacionais, e a comentar os resultados das partidas.

Quando percebi estava lá, o meu filho mais velho, o Lucas, de 11 anos, querendo ir ao estádio torcer pelo time escolhido por seu coração alvinegro. Desde o ano passado que passamos a ir ao estádio com mais frequência. No dia do meu aniversário, eles me deram de presente uma camisa oficial do Ceará. O mais novo, o Artur, de 9 anos, foi cúmplice na escolha do presente, mas fez questão de ressaltar que não é Ceará, nem Fortaleza, nem Horizonte, nem Guarani... Apenas gosta de jogar futebol, de disputar campeonatos em videogames e de ver as melhores jogadas na televisão.

Dois anos atrás era mais ou menos essa a posição do Lucas. Cada qual tem o seu tempo, por isso não dá para especular que decisão tomará o Artur. Enquanto isso, Lucas e eu estamos adorando a experiência única do abraço de desconhecidos que se reconhecem pela força do preto e do branco, onde a emoção fica mais à vontade. Tem sido muito rica para nós a vivência da psicologia da multidão, das filas para comprar o ingresso e para entrar no estádio, da arquibancada com pipoca, água mineral, palavrão e o "Uhhh!" uníssono provocado pela jogada que não se completou. E, claro, da explosão do gol.

Na partida final do campeonato cearense, realizada domingo passado (8/5) no estádio Presidente Vargas (PV), entre Ceará 5 x 0 Guarani (J), que deu o título de campeão arrastão ao Vovô, apreciamos algumas manifestações que ilustram bem a diversidade da comunicação nesse ambiente de diversão e catarse. Encontramos uma expressão autêntica da nossa molecagem logo que chegamos ao estádio e vimos um cartaz com a foto do Bin Laden vestindo a camisa do Fortaleza, no qual se lia os seguintes dizeres: "Confirmado, Bin Laden morreu de desgosto".

Do riso, saímos para a vaia, quando antes do início do jogo, observamos a colocação no círculo central do campo de uma propaganda da Pepsi, com as cores vermelha, azul e branca - que caracterizam aquela marca de refrigerante - associada pela torcida à bandeira do Fortaleza. Não deu outra: vaia geral. Nas arquibancadas, além da recusa do torcedor de consumir o produto daquela "publicidade tricolor", o enredo voltou-se para a falta de sensibilidade de um marketing que poderia muito bem evitar esse tipo de reação da torcida simplesmente reproduzindo a logo na sua aplicação em preto e branco.

Dentre os episódios que só é possível experienciar estando no estádio, um dos que acho mais curiosos é quando o torcedor fala baixinho com o jogador que está fisicamente no campo distante, em uma comunicação quase silenciosa: "Fernando Henrique, você me orgulha"; "Vai, Nicácio, mostra que tu é mesmo artilheiro"; "Olha, Geraldo, o Osvaldo está sozinho"; "Chuta, chuta, Thiago Humberto!"; "Ei, Mancini, bota alguém para ajudar o Iarley"... Nesses momentos o torcedor conversa sozinho, em uma situação de transferência, mas desconfio que de alguma forma o atleta escuta seu sussurro perdido na zoadaria do estádio.

A arena de esportes é um lugar de criação e de recriação conjunta, um espaço de interações. A coeducação desportiva não se resume ao preenchimento dos motivos que aproxima as pessoas nas arquibancadas; ela possibilita o exercício de diferentes modos de ver, pensar, sentir e dizer do mundo entre vozes recatadas e expansivas. Neste aspecto, gosto de acompanhar meu filho se constituindo pelos significados do crescimento social, seus movimentos em busca de ser o que é potencialmente. Sem contar que o tempo dele é também o meu tempo nessa prazerosa articulação intergeracional.

Uma das características que aprendi a apreciar no futebol é que em torno da bola há um pacto de contraversão por meio do qual nada pode ser afirmado sem levar em consideração o contraditório. Chamar o juiz de ladrão? Pode. Dizer que o técnico é vendido? Pode. Acusar o atleta de mascarado? Pode. Xingar a mãe do presidente do clube? Pode. São gritos que não necessitam de provas para serem bradados, simplesmente porque as acusações não precisam ser reais para lhes dar motivo. Na torcida, todos podem impor suas razões, sabendo que dificilmente alguém as acatará.

Fora das linhas do campo, o combustível do futebol é o falatório, a novelização, o elogiar e o esculhambar. Tudo o que acontece em uma partida nos afeta instantaneamente, nos faz chutar o nada, nos irrita, nos levar a cantar de alegria e a dizer palavrões. Vestir a camisa do time é vestir a partida inesquecível, a decisão dramática, o lance marcante. Tenho predileção por jogo bonito, bem jogado, elegante e raçudo ao mesmo tempo. Prefiro perder uma partida bem disputada que ganhar jogando feio, com movimentação travada, em busca apenas do resultado.

Da arquibancada do estádio ao sofá de casa, o torcedor contempla, vibra, lamenta e chora porque mais do que pelo resultado do jogo, ele torce também por si, pelo seu repertório de reações e capacidade de traduzir a partida em um idioma de universalidade. Esse me parece ser o grande segredo do futebol. Não é à toa que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) tem mais países filiados do que a Organização das Nações Unidas (ONU), em um placar de 208 x 192. O futebol faz a grande liga de nações em um tipo de congraçamento que transpassa culturas, ideologias, situações políticas e condições econômicas.

Torcer é como nadar e andar de bicicleta, quem aprende nunca esquece. A criança sonha em ser jogador e se vê realizando os lances mais espetaculares. Na arquibancada, troca passes com o adulto, no tempo em que este também sonhou assim. E mesmo que um se projete no futuro e o outro se traga do passado, o encontro acontece no presente. O abraço do pai e do filho na hora do gol é o abraço de quem já passou por isso com quem está descobrindo a emoção de torcer. Cada lance é um lance, cada vibração uma vibração, um olhar, um gesto, uma identidade que se pronuncia. E viva o Ceará, campeão de 2011, com palmas especiais para o Dimas Filgueiras, que uniu caráter, competência e compromisso na revitalização do coração alvinegro.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Dona Zefinha de Itapipoca - Diário do Nordeste - 5/5/2011

Teve trovão e relâmpago antes da hora de começar o evento de inauguração da Casa de Teatro Dona Zefinha, na noite do sábado passado (30/04) em Itapipoca. A chuva fez todo mundo andar com calma pelas ruas cheias de água corrente. Dos postes as luzes se lançavam ao aguaceiro em um refrescante farfalhar de brilho e negrume. Mas, como se estivesse tudo combinado, as nuvens deram uma trégua bem na hora da festa.

Quem, como eu e a minha família, chegava ao bairro do Jenipapo pelo calçamento da rua Francisco dos Santos Braga, via logo uma tabuleta que identificava na casa verde de número 321 a novidade cultural da cidade. Na parede da sala, uma galeria de cartazes de shows da banda, realizados no Ceará, no Brasil e em vários países do mundo. Tudo muito simpático, muito caprichado e consistente.

No segundo compartimento, uma luz amarela destacava na parece verde uma compilação de páginas de jornais, com matérias de cobertura dos feitos e efeitos do grupo, onde se lia em letras vazadas na tarja ao centro: "Dona Zefinha - 20 anos de teatro, música e outras invenções (1991 - 2011)". Logo ao lado, uma luminária de boneco gigante, um estandarte com a programação das atividades do mês e o início da exposição fotográfica com a trajetória da companhia resumida em dez espetáculos montados nessas duas décadas.

Um texto do ator e diretor teatral Fernando Piancó sintetiza o clique dos fotógrafos: "(...) No começo eram apresentações de teatro de rua, onde os folguedos eram a tônica dominante do grupo. Por desejo e necessidade do próprio trabalho, os componentes da Trupe Metamorfose começaram a pesquisar, estudar e experimentar instrumentos populares como a rabeca, a zabumba, o pandeiro, os pífanos, entre outros. Daí criaram a Dona Zefinha, que além de performance cênica no palco, produz uma bela fusão de sons e ritmos... com letras inteligentes, narrativas instigantes".


A Casa é uma casa típica do interior: sala de chegada, quarto da frente, sala de estar, corredor comprido, ladeando quartos, e cozinha. No primeiro quarto está sendo montado o estúdio de ensaios com revestimento acústico e, ao lado, fica o alpendre, que passou a fazer as vezes de auditório. A decoração de interior, feita pela Joélia Braga, traduz em leve e aconchegante relação estética e funcional o espírito da Casa. De uma lado do corredor, a sequência de imagens, do outro, arranjos de máscaras e lâmpadas. E no teto, uma estampada chita em cores vivas da cultura popular.

Além da sala de música (estúdio), pode-se ver porta a porta o ateliê de criação e restauro de figurinos e adereços, espaços de pesquisa, produção e um quarto com beliche e cama para o que eles chamam de hospedagem solidária. Esse cantinho para alojar visitantes, pesquisadores, parceiros e convidados para participar das atividades da Casa de Teatro Dona Zefinha é bem característico do estado de cumplicidade com que o grupo, liderado pelo multiartista Orlângelo Leal, pretende conduzir seu engenho de invenções musicais e cênicas.

Na área da cozinha, um projetor mostrava fotos e vídeos dos espetáculos da banda, sob a vigília da estatueta do Padre Cícero em cima da geladeira. Fiquei muito contente de ver artisticamente grafitada na parede final uma frase minha, retirada do encarte do CD "Zefinha vai à feira" (2007): "O que existe em certas coisas que mexem com a gente? Por que contemplamos algumas e por que viramos o rosto para outras? Somos as nossas interrogações". Parei para pensar novamente sobre isso, a partir do que estava sentindo naquele momento festivo.

O que a fixação da Dona Zefinha naquele espaço pode significar como testemunho da universalidade do trabalho do grupo? Quanto de recuperação do tecido social comunitário pode ser atribuído a um projeto como esse? Como essa decisão do grupo de plasmar a vida entre a beleza e as necessidades cotidianas será observada pelo povo de Itapipoca? Até onde os parâmetros sociais, ainda sob forte efeito da massificação, abrem espaço para o desenvolvimento da arte como expressão da subjetivação das pessoas e dos conceitos? Estará nesse tipo de projeto alguma perspectiva de caminho para a subjetividade como condição essencial ao viver autônomo, integrado e criativo?

A Casa da Dona Zefinha integra um sistema de referências de motivações, atividades e comportamento, que pode estar sendo fomentado pela viabilidade financeira proporcionada pelo Edital de Incentivo as Artes, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult). Com meios para o diálogo entre conhecimento e prática, com usos em forma de compartilhamento do pensar e do agir e com linguagens cênicas e musicais seu funcionamento certamente se converterá em uma sempre renovada produção de conteúdos e de aproximação dos elos culturais existentes à medida que cria uma zona de iluminação de gente com rosto, com valor e com direito à cultura.

Em sua disposição reconstrutiva da vida orgânica, a Dona Zefinha mostra seu jeito agregador de interferência no cotidiano estendendo seu equipamento de invenção cultural a parcerias com outros grupos e iniciativas. De saída, essa troca está acontecendo com a Orquestra Unisol, regida pelo trompetista e violinista Samuel Furtado, com a companhia de dança Balé Baião, com o Núcleo de Artes Cênicas (Nace) da Facedi/Uece e com a Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga (Agua).

Uma característica, que é ao mesmo tempo atributo e virtude na Dona Zefinha, é o fato de ela ser formada a partir de um grupo familiar coeso, talentoso e animado. O Orlângelo, o Ângelo Márcio e o Paulo Orlando são irmãos e a Joélia é casada com o Orlângelo. Mas a força afetuosa dessa característica envolve e compromete os pais, as mães, os tios e as tias deles, sem contar com os irmãos colaços, integrantes diretos e indiretos da trupe e da banda. É uma maravilha. Na montagem da Casa e para a festa de inauguração eles contaram com as habilidades e o empenho da Angelita, Gilberto, Luciano Cacau, Maninho, Mazé, Olga, Orlando Cacheado, Samuel, Tamily, Thais e Vanildo. Isso desde o serviço de carpintaria até a preparação dos comes e bebes.

A atração da noite de inauguração foi o "Jazzeira Trio", formado por Wagner Ferreira (baixo), Marcelino Ferreira (guitarra) e Rafael Teixeira (bateria), todos ex-alunos da escola de música de Guaramiranga. Eles foram os primeiros hóspedes da estalagem solidária da Casa de Teatro Dona Zefinha. E como é regra da Casa para quem for se hospedar por lá, na parte da manhã eles ofereceram à comunidade uma oficina de "improvisação e prática de conjunto", cujos participantes tiveram a oportunidade de fazer dobradinha com a Jazzeira em uma das músicas executadas à noite no alpendre.

O evento foi transmitido em tempo real pela internet. Francisco Constantino, monitor do Centro de Informática da Escola de Comunicação da Serra (Projeto Ecos), cuidou de colocar tudo no ar, mas também compartilhou, com os itapipoquenses que desejaram, um pouco do seu conhecimento de manipulação de softwares de áudio e vídeo e sobre montagem de equipamentos de transmissão.

Com suas atividades de ensaios e de produção comercial acessíveis à vida comunitária e com programações voltadas para a troca de ideias e leituras dramáticas, a Casa de Teatro da Dona Zefinha inverte a lógica das objetivações, que costumam tomar o outro como objeto. Que o digam as crianças que ficaram com a Gisa, mulher do Márcio, contando divertidas histórias no chão da sala.