quinta-feira, 28 de abril de 2011

Uma didática ao anticonsumismo - Diário do Nordeste - 28/4/2011

A educação para o consumo passa obviamente pelo uso racional do dinheiro, pela priorização do que é mesmo necessário e pelo aprendizado em favor de escolhas responsáveis na hora da compra de bens e serviços. Passa também pelas leis de proteção e de defesa do consumidor e pela própria consciência que cada pessoa ou grupo de pessoas tem da sua força de pressão sobre o mercado. Mas passa, antes de tudo, pelo modo como inspiramos uns aos outros em simples e caseiros comentários cotidianos.

Uma das formas desse educar, que mais me parecem tranquilas e de grande eficiência, está nas observações despretensiosas que normalmente fazemos diante dos acontecimentos. Tudo o que testemunhamos no próprio lugar ou o que sabemos pelo noticiário e por meio de redes de relacionamento dá margem a comentários educativos. A riqueza das contradições constitui uma inesgotável fonte de formação, o que faz da apreciação espontânea uma prática educacional desenvolvida em uma série de circunstâncias.

Os exemplos que facilitam o compartilhamento da nossa maneira de ver a questão do consumo que não mede consequências surgem a todo momento e nos mais variados domínios e situações. Tomando como referência o caso do recolhimento, na semana passada, das peças da coleção "Pelemania", das lojas Arezzo em todo o Brasil, é possível despertar um sem-número de conversas e atitudes. Afinal, a empresa respeitou o posicionamento dos consumidores, após intensos protestos nas mídias de relacionamento contra a venda de produtos confeccionados com peles de animais.

O interessante é que essas manifestações traduziram uma rejeição ao uso de peles verdadeiras, a despeito de certificados de origem, o que demonstra o crescimento da intolerância da sociedade diante de certas práticas contra a natureza. Rejeição essa que alcançou as modelos que levaram para as passarelas e comerciais as bolsas, bijuterias e estolas da grife, feitas de peles de coelhos e raposas. Uma delas, Emily Germano, respondeu às acusações na própria internet: "Gente sou apenas uma modelo, não uso e nem compro pele de animais, parem de me chingar!!!" (sic).

Independente de ela ter escrito xingar com "ch" - o que infelizmente acabou desviando a atenção de muita gente do foco do problema - dentro da resposta da modelo revela-se uma grave sutileza, normalmente identificada no posicionamento de muitos profissionais que servem à promoção do consumo, embora não comprem nem usem os produtos a que atribuem valor e dão visibilidade. Levantar dúvidas sobre essas posturas e comentá-las com os filhos é fundamental na paciente e complexa missão de desconstrução do consumismo.

A mesma reação alienada e alienante de Emily foi demonstrada pela cantora Sandy no mês passado, quando questionada pela colunista Mônica Bergamo (FSP, 08/03) sobre a associação da sua imagem de boa moça à cerveja Devassa: "Essa é uma discussão que não cabe a nós, artistas. Somos contratados para fazer propaganda. Se é bom para nós, a gente vai lá e faz. Todos são autorizados a beber. Essa responsabilidade não cabe aos artistas. Essa discussão é para psicólogos, deputados, especialistas. Não quero me meter".

Ao afirmar que não quer se meter nessa questão - mesmo metida até o último cheque do seu contrato - Sandy se coloca como se não tivesse nada a ver com o crescimento do consumo desordenado de álcool por adolescentes, embora seja uma cantora identificada com esse público. Sua desculpa é semelhante a da modelo da Arezzo. Uma pede para não ser alvo de xingamentos, por não usar nem comprar pele de animais, e a outra, se esquiva das críticas sob o argumento de que "a gente não precisa gostar exatamente do produto para fazer a propaganda". E, talvez para não desagradar o patrocinador, jura "por Deus" que experimentou e gostou da cerveja.

Na didática da conversa solta não é necessário fazer qualquer atalho para dizer quem tem ou não razão. Basta deixar o assunto circular. Se tiver como alimentar o tema com contrapontos, então, a possibilidade de êxito aumenta. Na mesma coluna (20/02) uma entrevista com o Rivaldo, ex-jogador da Seleção Brasileira de Futebol, chamou a minha atenção. Ele sustenta que não há fortuna no mundo que o leve a fazer propaganda de bebida alcoólica. "Sou um atleta e quero ser um exemplo, principalmente para as crianças que gostam de esporte". Depois de uma declaração dessas, a percepção de que lucrar com a imagem tem vínculo direto com o respeito a quem precisa dela para se espelhar fica naturalmente disponível para ao discernimento de cada um.

E quando esse tipo de recurso não faz parte das práticas familiares e escolares? Ora, as crianças ficam sem a oportunidade de referências comparativas e quase sempre embarcam no cruzeiro do consumismo. Achei muito sintomáticas as respostas de umas mães que foram entrevistadas pelo repórter Paulo Sampaio (Fashion Kids reúne ´socialitezinhas´, OESP, 03/04), tendo como recorte a participação das filhas em um desfile de moda infantil, que acontece no shopping Iguatemi de São Paulo: "A minha filha quer óculos Chanel, Prada. A gente gosta de coisa boa, elas aprendem", anuncia o alheamento de uma; "Eu não imagino minha filha colocando uma roupa da Renner nem para dormir", complementa o preconceito da outra.

Estou escrevendo esse texto em São Paulo e aqui é bem nítida a condição da infância amuralhada, embora essa seja uma sina comum das meninas e dos meninos dos grandes centros urbanos. Não sei não, mas dá uma tristeza saber dessas crianças sempre confinadas em lugares fechados, tendo como horizonte apenas os contornos das janelas dos carros e as telas dos celulares, computadores, cinemas de shopping e televisões, por meio das quais buscam enxergar referências condicionadas aos objetos do consumismo e ao vazio de experiências reais das celebridades. Tanto que passear de limusine tem sido o presente de aniversário escolhido por muitas crianças paulistanas.

Por mais deploráveis que possam ser tais situações faz bem comentá-las abertamente em casa. Pode ocorrer dos nossos filhos acharem fantástico algo que não aprovamos, como pode acontecer de eles se colocarem em posição extrema apenas para testar as nossas convicções. Sejam quais forem as posições por eles tomadas, trata-se de uma vivência preciosa no processo de redução das indeterminações que fomentam os conflitos próprios das tentativas de ser alguém em um mundo onde os sinais de adequação das utopias parecem perto demais da sobrevida do lúmpen.

A apreciação desprendida de juízo imediato cria ambiente para o conforto das considerações e facilita o exercício educacional, sedimentado pelas interrogações que cada fato aporta ao instante. E temos que começar esse exercício o mais cedo possível. As corporações de produtos infantis, que vinham atraindo a meninada com games, filmes e best-sellers de possessões, demônios incontroláveis e situações apocalípticas, começam a atacar com marketing neonatal, iniciando o assédio à infância com brindes de produtos a recém-nascidos ainda na maternidade.

Um bom comentário a ser ventilado nas ocasiões propícias é o que põe na conversa a atenção com que a lei observa a criança mesmo em letras voltadas para adultos. É o caso da nova legislação antifumo da Espanha que proíbe as pessoas de fumarem em parques infantis, e da lei estadunidense que não permite a ninguém fumar em carro com crianças. Esses casos servem para os nossos filhos saberem que nem tudo está perdido.


segunda-feira, 25 de abril de 2011

Dimensões do jogar e do brincar - Diário do Nordeste - 21/4/2011


A reflexão sobre o brincar na sociedade contemporânea é uma das linhas de abordagem do mestrado em Estudos da Criança, da Universidade do Minho, em Portugal. Foi para conversar acerca desse assunto que no sábado passado, 16, recebi em minha casa a mestranda Luciene Silveira que, sob a orientação do professor Camilo Cunha, vem desenvolvendo em sua dissertação o conceito de cultura vinculado a jogo e brincadeira, como impulsores de criatividade, motricidade e sociabilidade.

O tema me encanta e está tratado por diversas angulações no meu livro "Eu era assim - Infância, Cultura e Consumismo" (Cortez Editora), o que fez com que a pesquisadora me procurasse para essa conversa a respeito do comportamento infantil, da necessidade de mais espaços para brincadeiras, da cultura lúdica e sua diversificação conforme a condição social, o contexto, os valores, as referências simbólicas, as expectativas e possibilidades da criança e suas potencialidades para o desenvolvimento integral, como alicerce da vida em sociedade.

Combinei com a Luciene que compatilharia com você, leitor, os pontos principais da gravação que ela fez comigo e ela gentilmente concordou.

Ela quis saber inicialmente o que representa para mim o jogar e o brincar, na dimensão ontológica. Respondi que no plano do ser enquanto ser, jogar e brincar representa o lúdico, que é próprio da condição humana, independentemente de idade. Daí a importância da combinação da brincadeira com regras, que é o jogo, com a experiência espontânea do brincar, que se realiza exclusivamente ao sabor da imaginação.

E na dimensão antropológica? - ela perguntou. Respondi que, considerando as variações das características dos lugares e dos povos, jogar e brincar integram o âmbito da cultura, que também é própria da condição humana, em todas as suas fases. Uma boa ilustração para esse quê de memória biológica e social é a transfiguração da função de algumas armas, tais como o bumerangue, a espada e a pipa (arraia), quando convertidas em brinquedos.

Assim, o jogar e o brincar englobam nessas duas dimensões um estado complementar de ancestralidade, de experiência de tempo presente e de perspectiva evolucional, cujos fluxos, percebidos ou não, constituem os vínculos inventivos para a exploração prática do real. É a imaginação possibilitando que a criança, mais do que assimilar o meio, desenvolva formas de interferir na sua relação com o ambiente em que vive.

Luciene Silveira quis que eu dissesse o que entendo por cultura e suas dinâmicas. Respondi que cultura é a construção social da realidade. O que possibilita que o real seja configurado de diferentes modos. Cada povo, cada sociedade, cada civilização constrói a sua percepção de realidade, por meio da qual se sustenta culturalmente. Ao se relacionar com o mundo, agindo no cotidiano, produzem interpretações do real que não necessariamente são as mesmas. Neste aspecto, precisamos separar o que há de comum no humano em si do que existe de diferente em sua visão desenvolvida a partir da trama da coletividade.

A história está cheia de exemplos de encontros e choques de realidades, modeladas por diferentes culturas. A realidade da civilização grega, fundada no pensamento refinado, nas leis, na arte, no esporte, na riqueza mitológica e nas ágoras, foi derrotada pela realidade romana, estruturada no poder bélico. A realidade dos preceitos sociais estabelecidos pela força da espiritualidade indiana foi dominada pela realidade inglesa, inspirada no princípio da pirataria. Os processos de ocupação das Américas e das Áfricas, decorrentes das grandes navegações, provam bem as diferentes realidades, definidas pelos modelos mentais de colonizadores e colonizados.

A pesquisadora da Universidade do Minho e eu estamos de acordo com o pensamento do filósofo francês Gilles Brougère, quando este diz que "é necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidade de interpretação, portanto, de cultura, para haver o jogo". Ela fez um recorte no tema e me perguntou qual a relação entre jogo e cultura, na perspectiva educativa e formativa. Respondi que entendo essa perspectiva como definidora de fronteiras na preparação do ser social. É nela que se dá o aprendizado do ganhar e do perder, do aprender a esperar, enfim, do respeito aos padrões determinados nas regras do jogo.

A relação entre jogo e cultura tem grande importância na busca por uma sempre melhor integração das pessoas consigo mesmas e no convívio social. É através desse exercício que todo um conjunto de sensibilidades se desenvolve. Sensibilidades no que diz respeito à tolerância, à alteridade, à memória coletiva e à relação com o espaço e com o tempo. Então, considerando o jogo como leito natural do lúdico e a realidade construída como fruto da cultura, entendo essa relação como condição de relacionamento e sentido de destino indispensáveis para que a humanidade realmente evolua.

Que caminhos ideais e que dificuldades eu observo quando penso em relação intermulticultural, me indagou Luciene Silveira. Respondi que o entrelaçamento de realidades concebidas por diferentes culturas ocorre à medida da percepção de existência de umas com as outras e na forma que elas se dispõem a se relacionar. A complementaridade, a inter-relação e a coacessibilidade são pontos fundamentais dessa questão. Os caminhos ideais passam pelo respeito à diversidade e pela reciprocidade das diferenças. A partir do momento em que um povo compreende que só tem a ganhar com a diferença do outro, tudo fica mais rico e mais harmonioso.

O registro do caráter de sociedade aberta brasileira vem desde o início da colonização, se considerarmos os relatos de antropofagia como recurso de assimilação das características positivas do outro. Salvo em circunstâncias específicas, geradoras de desconfiança, o estrangeiro sempre foi bem recebido no País. Dos relatos do mercenário alemão Hans Staden, que teria escapado de rituais de antropofagia dos Tupinambá, aos textos de historiadores que contam do bispo Sardinha, devorado pelos Caeté, vemos o quanto sentimos necessidade de incorporar o diferencial externo para melhorar a nossa vida. Foi movido por essa noção que Monteiro Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo, como ambientação de brasilidade aberta ao diálogo com tudo o que se passa no mundo, de forma a apreender qualidades globais.

No que tange às dificuldades, coloquei que o mundo inteiro enfrenta o problema das intensas e obstinadas tentativas de hegemonia, sejam econômicas, geopolíticas ou culturais. Os esforços para destruir o referencial do outro, apenas por gana de dominação, levaram o mundo ao atual estado de alerta social e ambiental. Entretanto, torna-se cada vez mais evidente que a reconstrução do planeta carece de compartilhamento. Não dá mais para ser apenas um dizendo o que os outros devem ser e fazer.

Para concluir reforcei a importância do jogar e do brincar como exercício de autoconhecimento e de tomada de consciência da noção de pessoa. Essa prática de se reconhecer na relação com o meio fortalece o sentido de apropriação da realidade construída e das condições de transformação dessa mesma realidade. A imaginação permite ao ser que joga e que brinca o arejar do dom de ressignificar a cultura, para que ele possa construir realidades, consolidando a virtude comum da ética e aperfeiçoando os parâmetros morais do respeito mútuo nas mais diversas realidades.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A idolatria da violência - Diário do Nordeste - 14/04/2011

Nada reabilitará o massacre das crianças na escola de Realengo, quinta-feira passada, no Rio de Janeiro. Não há o que reabilitar. As famílias perderam suas crianças, o bairro perdeu suas crianças e as crianças perderam a vida da forma mais brutal e infundada. A melhor maneira de dignificar suas memórias é tentar fazer da tragédia um observatório e uma plataforma de atitudes voltadas para a infância no Brasil.

A presidenta Dilma Rousseff encerrou a cerimônia oficial da qual participava naquele dia para prestar condolências ao deplorável fato até então inédito na história do País que governa há apenas cem dias: "Esses brasileirinhos que foram retirados tão cedo da vida". A fala em choque e o semblante contristado de Dilma revelaram sua compreensão do tamanho do desafio que temos pela frente para nos tornarmos realmente "um país sem miséria".

A miséria brasileira é maior do que se imagina, porque não se restringe a indicadores como carência material, insuficiência de recursos ou taxa de analfabetismo funcional. O pior da miséria brasileira está nos distúrbios resultantes do abandono da vida simbólica a que relegamos nossa cultura. O assassino teve acesso a emprego, a escola, mas tinha carência de sentido porque, como a maioria das crianças do nosso País, era vitima do não-ser e da massificação do isolamento, como padronização comportamental.

A falta de exercício da dimensão subjetiva, que se nutre nas vivências e convivências culturais, anula a noção de singularidade e de originalidade, fazendo com que o indivíduo perca a autonomia das suas preferências para se condicionar às interinfluências do meio. Destituído da sensibilidade de apreciação e não apenas de repetição, o matador assina na execução de inocentes a sua lealdade à relação fetichista com a violência.

A chacina, em casos como esse, é uma emancipação reversa, um ato de afirmação da falência existencial. O assassino se inclui pelo potencial de atenção que pode causar. A carta que ele deixou é clara em seu delírio valorativo diante da demonização extrema do nada com nada. Ao abater energicamente aquelas crianças ele quis eliminar de vez a inocência, como quem considera imoral a força criativa da infância e sua desconformidade ante um punhado de regras sociais que estabelecem o limite do humano em si mesmo e não no semelhante.

Matar a "ingenuidade" é acabar com a possibilidade de manutenção da esperança. A criança é uma ameaça ao cultor do não-real porque ela olha à vida com credulidade. Então, não adianta repudiar a crueldade do assassino e continuar permitindo a morte lenta da infância no cotidiano do modelo social insustentável que praticamos. Se a violência ocorrida na escola de Realengo mostrou-se primitiva é porque o princípio da idolatria da violência é primitivo. Diluído no dia-a-dia e nas mais diversas formas de avatar, o sacrifício da imaginação e do lúdico vai dilacerando a infância, deixando-a sem sangue para que apodreça higienicamente diante das telas.


Para quem por atos ou omissões contribui com a matança lenta da infância, a deformação coletiva derivada da formatação de homogêneos e obedientes consumidores não passa de ficção. O que a distingue da dolorosa tragédia de Realengo é o choque da perversidade assumida pelo matador. Muitos choraram apenas pelo efeito de condolência desse impacto. Porém, juntamente com a expressão de tristeza estampada no rosto da Presidenta da República, ao lamentar o fato, certamente muitos outros brasileiros sentiram o peso da gravidade da situação.

O que está em questão é a desvalorização da vida real, como abertura de cena para a atuação das drogas, do capitalismo corrosivo e das mensagens de uma vida melhor depois da morte. Na visão do indivíduo que, sem o aconchego de uma cultura que dê beleza ao seu olhar, perde a condição de se reconhecer no mundo físico, o vazio, o nulo ganha importância transcendental. Por isso, em seu esforço adaptativo do prazer, ele mata o corpo, mata a inocência, mata o amor, mata tudo o que para ser pleno necessita de mais alguém.

O matador representa os que não suportam mais os limites da realidade e por isso querem deletá-la. Ele entrou na escola em forma de avatar e não como pessoa. Com sua identidade secreta de indivíduo digital, modelado em madrugadas e mais madrugadas de solidão à frente do computador, quis, com seu distúrbio de julgamento, provar que não existe mais outra coisa que não seja "reality show", messianismo virtual e a verdade psíquica da idolatria da violência. O suicídio no clímax do massacre é uma demonstração do pleno gozo de um corpo que não existe de fato, apenas em imagem de jogo.

A recente campanha de lançamento do "game" intitulado "Dead Space 2", cujo protagonista tem transtornos psíquicos mortíferos, trouxe consigo a mensagem "sua mãe odeia isso", como convencimento aos aficionados em jogos eletrônicos de extermínio. O caderno "Folhateen", de um jornal paulistano que assumiu editorialmente a mudança do conceito de juventude para "teenager", apresentou na segunda-feira, 11, a seguinte dica para o estrelato virtual: "Crie um personagem. Vale ser rebelde, ultracolorido ou tosco: o importante é se destacar entre a multidão".

Tomei esses dois exemplos apenas para mostrar como as bases para a idolatria da violência vêm sendo construídas tanto no desvalor do "marketing" da desconstrução parental quanto na mais "ingênua" das indicações de conquista de visibilidade a qualquer custo. Some-se a isso, a publicidade dirigida à criança, em induções do consumo exagerado, a baixa qualidade conceitual dos produtos e serviços destinados à infância, a banalização da arte, a ausência de espaços públicos agradáveis e apropriados para o brincar e a falta de papéis-modelo, em quem se inspirar, e teremos potenciais matadores da realidade.

Na última "Super Amostra Nacional de Animês" (Sana Fest), realizada em Fortaleza (29 e 30/jan), deu para perceber claramente a concentração de todo tipo de ícone de violência. O que antes parecia simplesmente uma feira de divulgação e venda de produtos da indústria de cultura de massa japonesa para exportação, agora tem garota com suástica tatuada no braço, patrocínio de empresa de segurança (em um evento para a juventude é no mínimo estranho) e camisetas com mensagens do tipo: "Seja um matador, seja uma celebridade" e "Gostei de você, vou matá-lo por último".

Houve um tempo em que os psicopatas tinham o fetiche de matar figuras públicas. Foi assim que Martin Luther King e John Lennon foram assassinados. Nos últimos tempos, esse tipo de fantasia mórbida está se voltando para filhos que matam os pais que não querem emprestar o carro ou para antecipar a herança, e para casos de massacres em "shoppings", estações, cinemas e escolas. São crimes típicos da privação de intimidade com os símbolos sociais edificantes que só a cultura, como ambiente de livre exercício desejante, pode proporcionar.

Por ser capaz de inspirar propósito ao que aparentemente pode até não ter causa final, a criança torna-se alvo vulgar desse tipo de imolação. Como não há como pensar em adulto sadio com o desaparecimento da infância, resta-nos deixar a complacência de lado e dar um sentido ao luto pelas crianças de Realengo. O atirador não está sozinho. No dia do massacre alguém criou um falso perfil do assassino no Orkut e rapidamente a página teve mais de mil e quinhentos seguidores, até que também muito rapidamente foi excluída. Pelo jeito, não estamos muito bem de ídolos.


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Como se fosse na mesa de bar - Diário do Nordeste - 7/4/2011




Foi começar a ler "Trem Doido" (Editora Limiar) o novo livro do jornalista Mouzar Benedito, e sentir logo a chegada da voz de Elis Regina cantando "Saudade dos Aviões da Panair", de Milton Nascimento e Fernando Brant. A canção, que tem subtítulo "Conversando num bar", virou trilha sonora do meu ouvido interno e com ela segui causo por causo, num agradável testemunho de que não existe mesmo nada nesse planeta que não se fale em uma mesa de bar. Isso mesmo, esse livro é uma mesa de bar disfarçada de antologia pessoal de momentos contáveis.

O texto é fluido e bem calibrado aos trejeitos do autor, com toda a sua bem-humorada anarquia diante dos fatos e atos. Mouzar chega com o seu simpático ar de mico-leão-dourado e abre a guarda do leitor para sintetizar e recriar coisas que fez e que viu em relatos que mistura sem-vergonhice e aguda observação social própria da sua experiência e cheia de cortes irônicos na realidade. É um livro de quem se define pelo que é, e não pelo que teria desejado ser; um livro de andarilho, com suas pequenas histórias marcadas pela ausência de fronteiras.

Com mais de vinte livros publicados Mouzar Benedito, 64, apresenta uma versatilidade de gêneros que vai da biografia à ficção. Já escreveu a vida do irreverente jornalista gaúcho Barão de Itararé, do escravo abolicionista baiano Luís Gama e do romântico gatuno italo-paulistano Gino Meneghetti, e uma série de histórias de detetive, assinada como Saphira Minds, pseudônimo antes utilizado para fazer o horóscopo de uma revista feminina. Segundo ele, como "safira" nas geraes quer dizer masturbação e "minds" em inglês significa mente, as leitoras da revista "Querida" achavam o máximo, embora não soubessem que no fundo o nome da astróloga queria dizer "masturbação mental".

Mouzar já publicou também livros de humor, um de "memórias burlescas da ditadura" e o recente "João do Rio, 45", no qual narra o cotidiano da Vila Madalena, notável bairro de São Paulo, na voz da parede de uma das casas ocupadas pelos estudantes que, na década de 1970, invadiram a área para do jeito que desse morar perto da Universidade de São Paulo. Num exercício livre de metalinguagem ele aborda os ouvidos de uma das casas da rua João do Rio com ingredientes literários inspirados nas pegadas do cronista carioca que dá nome à rua. É assim que conta da movimentação que transformou aquele bairro em um disputado recanto boêmio da cidade.

O livro não tem floreios gráficos. É um livro e pronto. Conta com uma ilustração aqui e outra acolá, feitas pelo cartunista Ohi, mas o que vale mesmo é a conversa solta. O autor escreve porque escrever faz parte da sua vida, ora como protagonista, ora como escritor. Tudo o que aprendeu como engraxate, barbeiro, seleiro, caixeiro, estudante, contador, geógrafo, professor, pesquisador de cultura popular, tradutor e jornalista tem relação direta com seu grolado literário, o que faz com que as ações narradas nunca sejam gratuitas. Os causos e as crônicas de Mouzar se movem e se locomovem com ele até saltar na estação do "Trem Doido", uns tomando juízo e outros não.

O título do livro alude a uma das formas como os mineiros chamam "mulher bonita". O autor ressalva que a única coisa que essa gente não chama de trem é o trem, "quer dizer, o trem de ferro". É no trem de livro que Mouzar senta com o leitor para se embrenhar Brasil adentro, tendo como distração favorita a arte de zanzar, beber e jogar conversa fora. A leitura é ágil e divertida. "Trem Doido" põe nos trilhos uma reconstituição de acontecidos, revigorada pela magia oral que faz a memória de mesa de bar. Ouve-se a entonação do autor, quando ele diz coisas como "Era uma violência enorme" (p.22). Tem eloqüência na escrita.

Os assuntos e as abordagens são elásticas. Em uma das crônicas, Mouzar conta do dia em que estava dependendo de uma autorização da primeira-dama mato-grossense para fazer uma pesquisa de cultura popular com artesãos locais. Como se fosse pouco alguém ter que se submeter a esse tipo de procedimento, apenas porque a mulher se sentia dona daquelas pessoas, a demora na sala de espera foi irritante. Ao forçar a entrada, ele e o fotógrafo que o acompanhava foram atendidos na presença de algumas senhoras da sociedade, ocasião em que deixou sair devagarinho uma bufa bem fedida e a primeira-dama autorizou rapidamente tudo o que eles queriam (p. 56-57).

Mas nem tudo é avacalhação no "Trem Doido". Em outra parte do livro, Mouzar Benedito relata a satisfação de descobrir em Juazeiro da Bahia uma instituição criada por inspiração em um trabalho que ele havia feito para o Guia Rural Abril, sobre agricultura apropriada ao semiárido. Após escutar uma palestra do diretor do Instituto Regional de Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA) sobre as atividades desenvolvidas pela organização, Mouzar se apresentou para ele e comentou sobre a matéria que havia feito para a revista da editora Abril. Diz que o diretor "arregalou os olhos" e declarou: "Esta ONG surgiu a partir de uma grande reportagem que vocês fizeram sobre a agricultura apropriada para o Nordeste!" (p. 72-73).

Para ilustrar a variedade de enfoques constantes nos causos e crônicas do livro, além de cerveja e cachaça, é bem comovedora a história que Mouzar conta do Miguel Turco, um comerciante libanês (e não turco) com quem ele trabalhou quando tinha quinze anos. Quando Miguel percebia que a pessoa era pobre ele vendia a mercadoria a preço de custo sem o freguês saber. "Não se exibia, não transformava essa ação em ´caridade´, não humilhava o sujeito que não podia pagar os preços normais" (p.112).

O autor pertence à categoria dos que chutaram o pau da barraca dos valores burgueses para experienciar a aventura da insubordinação dos caminhantes. Sua matriz está no talco e no álcool da barbearia, na sola e na cola da sapataria, no calor e no ardor da terra, na lavra da palavra, enfim, na mistura de habilidades com que percorreu com gosto o País pelos atalhos. Buliçoso e puxador de papo, camarada e bonachão, materialista e ´saci´ólogo, ele caiu fora do centro gravitacional dos estereótipos e da busca do entendimento das contradições dessas metades para viver e contar a sua tresloucada e solícita humanidade.

Querendo ou não, "Trem Doido" dá um sentido para o vagar, para a vida de quem não se cansa de mexer com o que está quieto, ao desafiar a alma das histórias de perambulação, conferindo memória a si e aos amigos com quem compartilha a noção dos dias, das horas e de lugar no mundo. Transbordando do que resta das situações que a existência lhe impõe e do que se acumula com a sua verve inventiva, Mouzar Benedito solta a língua, solta o verbo preso na absurda normalidade hilariante. É mesa de bar. Boteco puro. Verbosidade olho no olho, lembranças em trânsito e outras sensações que dialogam com quem pega esse trem.

O melhor de Mouzar é que ele senta à mesa como se fossem vários. Tem conversa para tudo quanto é roda. É um autor de muitos temas. Fala e escuta como quem oferece ou pede carona na sua viagem ou na viagem do outro. Deslocar ou deslocar-se para onde for e do jeito que for é um segredo que ele faz questão de espalhar. Quando isso acontece em livro, como é o caso de "Trem Doido", ele trata o leitor como um convidado a interpelá-lo sobre a transformação dos afazeres em farra e da experiência em terreno fértil de recordações. E como uma recordação puxa outra, continua ressoando em mim a voz de Elis cantando que "em volta dessa mesa existem outras falando tão igual". É o "Trem Doido" pedindo passagem.