quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O lugar dos pontos de vista - Diário do Nordeste - 24/2/2011


Na ficha catalográfica do livro "O ponto de vista do outro" (Garamond, RJ, 2010), do psicanalista pernambucano Jurandir Freire Costa, pode-se ver "Ética e Literatura" e "Psicanálise e Literatura" como expressões-chave. A literatura assume nessa obra o papel catalisador de distintas visões acerca do campo por onde gravita a crise de significados que se impõe como um dos maiores desafios civilizacionais da atualidade.

O autor recorre às "Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Philip K. Dick", como aparece explícito no subtítulo, para aproximar o leitor do entendimento do elemento discursivo, ao tratar as mais distintas dimensões do problema por meio de correspondências identificadas entre as ideias de pensadores que se debruçaram sobre a questão da ética e da moralidade e a sabedoria prática dos personagens desses dois escritores.

A circularidade estabelecida por Jurandir nos leva a tangenciar cada página com a sensação de que a fronteira do humano está na própria capacidade que temos de reconhecer e considerar o respeito aos nossos semelhantes como a perspectiva definidora do horizonte do Bem e do Mal. Desse modo, a explicação do mundo, da vida e dos poderes da mente ganha relevo com o recurso literário enquanto lugar no qual a racionalidade e a espiritualidade se complementam.

A obra de Jurandir Freire Costa é um olhar de alento diante dos constantes e intensos escândalos de toda ordem de decadência ética nas esferas pública e privada e diante da visível perda das funções normativas sociais da tradição moral judaico-cristã.

Por que um olhar de alento? Porque o autor acredita que, apesar de tudo, o discernimento moral ainda resiste. E, para respaldar sua convicção, ele recorre às histórias de aventuras, espionagem e aos melodramas de Greene (1904 - 1991) e à ficção científica de Dick (1928 - 1982), nos quais a essência da ética se expressa frente à impossibilidade.

Evidente que, para isso, o autor toma como referência algumas teses e previsões sociais que marcaram o último século, modelando muitas vezes um determinismo catastrófico a respeito de uma sociedade que passou a conhecer o preço de tudo e a não saber o valor de nada, por ter perdido a habilidade de sentir ou pensar profundamente. Grosso modo, são basicamente quatro as correntes éticas delineadas por Jurandir em seu exercício reflexivo da contradição:

a) o diagnóstico pessimista próprio dos "intelectuais de estufa", que produz um sentimento de inermidade no controle de tudo o que a própria sociedade criou;

b) a vinculação do declínio ético às ideologias de mercado, que planifica o egoísmo a ponto de sobrepujar a "vergonha" por ultraje à vida pública e a "culpa" por males feitos ao outro na vida privada;

c) a defesa da revolução laica dos costumes, que retira de cena a mentalidade religiosa, mas, com seu foco exclusivo na investigação científica, não consegue resposta às questões do sentido da vida;

d) a convicção de que os dilemas éticos e morais contemporâneos ainda podem ser pensados por vieses leigos e espirituais do Ocidente, que não foram contemplados pelas crenças de predestinação nem pela racionalidade iluminista.

Jurandir Freire localiza-se nessa última corrente, onde o significante teima em não ceder à pressão das mudanças de significado. No livro "O ponto de vista do outro", ele coloca a falta de sentido como um obstáculo às decisões morais. Talvez por isso tenha ido buscar sentido na trama de personagens da literatura livre de erudição. Nos enredos do inglês Greene e do estadunidense Dick ele conseguiu, com admirável insubmissão, problematizar o tema nos conflitos dos personagens, livrando-se de uma só vez de obedecer à cartografia acadêmica e os referenciais críticos dos clássicos da literatura.

A empreitada resultou em um trabalho bom de ler e extremamente necessário nas circunstâncias atuais, quando para muitos o egoísmo social venceu as utopias, o amor, a política e o sentido de destino. Para tratar desse cenário de desencanto Jurandir movimenta a figura do "self entrincheirado", que é o indivíduo que se sente livre para fazer escolhas, mas sem condições de assegurar que toma a opção correta, por ser psíquica e moralmente equidistante dos valores autênticos da sua coletividade.

No começo da leitura fiquei inquieto para saber o que o autor viu nos personagens em referência que reforçou a sua expectativa de que ainda não estamos com o discernimento moral comprometido. É que também trago comigo essa sensação, mas ainda não tinha conseguido encontrar uma luz que clareasse o meu sentimento. Pelo ponto de vista de Jurandir Freire Costa, descobri que mesmo saturados de dúvidas com relação ao que fazem e com fronteiras turvas, flutuantes e embaçadas separando o certo do errado, o justo do injusto, os personagens de Greene e Dick, não são indiferentes à frágil e inconstante condição humana.

É isso, assim como esses personagens, muitas e muitas pessoas ainda não se tornaram indiferentes, em que pese a banalização sistemática da ética e da moral e, no caso específico do Brasil, a anestesia dos movimentos de cidadania derivada das recentes conquistas sociais, econômicas e políticas. Ao trabalhar com histórias cativantes e exemplares, Jurandir tem o cuidado de observar que, na condição de experimento de pensamento, o objeto ficcional não é protótipo a ser reproduzido, apenas um estímulo à imaginação, ao encantamento, à emoção e um desafio para o agir ético.

Na parte em que o autor reproduz a dificuldade do inspetor Henry Scobie de cumprir a meta impossível de continuar amando a sua mulher, especialmente depois de conhecer Helen, a ponto de se revoltar contra o Jesus crucificado, acusando-O de poder sofrer em público e ele (Scobie) não, Jurandir ilustra com acertada concisão o cerne da questão, na reelaboração literária de Graham Greene: só existe amor justo quando nos tornamos sensíveis ao ponto de vista do outro. Mas o ponto de vista do outro "inexoravelmente surge no caminho como um inocente assassinado" (p. 105).

De Philip K. Dick, o livro "O ponto de vista do outro" retrata as perguntas que nortearam seus escritos: "O que é a realidade e qual a genuína natureza da condição humana". Destaca também a máxima "Falsas realidades criam falsos seres humanos", da qual Dick se valia para recorrer ao estatuto da liberdade na hora de diferenciar o ser humano da máquina. Ele invertia a hierarquia dos problemas, por meio de dúvidas acerca do mundo e do sujeito, para chegar "a conclusão de que a única realidade verdadeiramente humana é a atitude ética diante do outro" (p. 134 a 136).

Jurandir mostra como o realismo fantasmagórico era utilizado por Dick para mostrar o desgoverno de um sistema que perde a competência de corrigir seus próprios aleijões. O personagem Kongrosian, pianista do regime, tem transtornos psicológicos causados por sua condição de hospedeiro da propaganda oficial, repetida por insetos publicitários que o faziam escutar permanentemente que não havia problema incomodar o outro a qualquer hora do dia.

Para o autor, no mundo ideal de Dick "o diferente e o desconhecido jamais evocam, por princípio, o ódio, o desprezo ou impulso de destruição; evocam curiosidade, simpatia, desejo de convívio ou, em alguns casos, admiração" (p. 215), ao passo que o centro gravitacional da ética em Greene é a idéia de justiça judaico-cristã. Ambos, portanto, enriquecedores das discussões éticas e morais.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Neutralidade ou liberdade? - Diario do Nordeste - 17/2/2011


Felizmente o entendimento de que o uso da internet não é nenhum mistério reservado a iniciados está tomando forma. Aquela conversa de gratuidade, de cultura livre, de princípio colaborativo, de parque tecnológico virtual e de mídia radicalmente democrática já não ilude tanto quanto antes.

Isso é positivo porque coloca o debate em um plano mais próximo do real, portanto, mais fácil de possibilitar a descoberta de soluções necessárias ao melhor aproveitamento das maravilhas advindas desse instrumento da evolução digital. A desmistificação da parte mantida em situação de doutrina pelos lobistas das corporações de informática e de venda de conteúdos começa a acontecer pelos próprios fatos.

A competição acirrada entre as novas multinacionais que disputam o mercado de usuários de internet já não deixa dúvidas do que é retórica e o que é de vera. As pessoas estão despertando para o fato de que as moedas virtuais utilizadas para a compra de "armas" e de "vidas" em jogos eletrônicos caem na conta no final do mês.

O que parecia alguma dádiva dos deuses e dos gurus da "cultura digital" tem se tornado um evidente campo de batalha de novos negócios. Com cerca de nove milhões de usuários no Brasil o Facebook deita e rola na nossa ignorância sobre a nova economia, exorbitando preços de anúncios no País, que só perdem para a publicidade e propaganda veiculada pela multinacional de serviços de relacionamentos em suas filiais russa e australiana (Folha de S. Paulo, Mercado, 10/01/2011). Sem contar com a fonte de receita originada no comércio de perfis de usuários.

A economia digital é tão legítima quanto qualquer outra. O que sempre me incomodou foi a camuflagem da linguagem libertadora com a qual os agentes dessa economia conseguiram (e ainda conseguem) persuadir muita gente. Desfazer esse engodo continua não sendo fácil.

Basta ver a reação dos gurus (consultores) e dos adeptos (abduzidos) do Creative Commons (CC) contra a ministra Ana de Hollanda, simplesmente porque ela tomou a certeira atitude de retirar essa licença privada e que representa o novo sistema de copyright estadunidense, do portal do Ministério da Cultura (MinC).

A hipnose instalada pela falsa consciência compulsória da "cultura digital" era tão grande que até bem pouco tempo atrás nem pessoas do meio cultural conseguiam perceber de modo inteligível o mínimo conflito de interesse existente na prática do então ministro Gilberto Gil, que submeteu o governo brasileiro ao vexame de chegar a adotar oficialmente o CC, no momento em que como artista era patrocinado (turnê Banda Larga Cordel) por uma empresa de telefonia - uma das áreas mais interessadas na desapropriação autoral, como meio para baixar custos e lucrar mais na oferta de produtos culturais.

Fico contente quando tomo conhecimento de depoimentos públicos de artistas mais antenados e desassombrados, como o andarilho franco-espanhol Manu Chao, sobre os abusos da nova ordem digital: "YouTube? São ladrões. Eles ganham grana com a sua obra, e não é justo. Mas qual é o Estado que mexe com o YouTube, para proteger a vida pessoal, ou a obra dos artistas? E aí o YouTube segue fazendo grana com isso (...) Se tudo é livre para todo mundo, tudo bem. Mas e se alguém está fazendo grana com isso?" (O Estado de São Paulo, 09/02/2011).

Gilberto Gil, que já não é mais ministro, abriu com sua foto uma campanha lançada no início deste mês, vendendo inclusive faixas avulsas de música para celular (www.escute.com). "Artistas, gravadoras e fãs falando a mesma letra (...) por um preço pequenininho e dentro da lei", diz a peça publicitária da camaleônica indústria fonográfica (Folha de S.Paulo, 06/02/2011). É com relação a esses fatos, ao que há de explícito neles, que noto as coisas clareando para dar densidade ao debate.

As discussões sobre internet há muito precisavam de uma base de referências para facilitar a construção do seu Marco Civil. Sem essa clareza a regulação estatal, conduzida pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), poderia sair com direitos e responsabilidades de mais ou de menos.

O usuário, pessoa física ou jurídica, tenderia a sair prejudicado. Posta como um novo paradigma nas revelações em rede, a internet como ela é (e não como vinha sendo vendida pelos lobistas) abre um mundo de oportunidades nos planos culturais, econômicos e políticos.

"A chance de ganhar muito com pouco investimento e pequena infraestrutura" (Diário do Nordeste, 13/02/2011) é um campo que está aberto aos mais variados tipos de empreendedores e empreendimentos. Atentas a isso, muitas agências de publicidade vêm se especializando em negócios online. E não somente agências. Portais de compras, com promoções em pacotes de descontos superespeciais, como o Barato Coletivo, estão atuando com bastante sucesso em muitas cidades do mundo.

No campo do ativismo político, a força de articulação em rede tem demonstrado boa eficiência, sobretudo em casos de Estados fechados, como ocorre no norte da África. No mundo dito democrático a internet também está interferindo no jogo do poder. Tanto que a Casa Branca está preparando um projeto de lei que autorize o Estado a fazer grampo nas redes de relacionamento e nos serviços de texto e voz (Folha de S.Paulo, 05/01/2011), acesso hoje reservado apenas aos negócios da esfera privada.

As investidas desconcertantes do WikiLeaks (portal que compartilha documentos secretos oficiais) teriam sido a gota d´água para a quebra do compromisso de campanha do presidente Barack Obama com relação à neutralidade na internet. Ou seja: na perspectiva de encontrar uma saída para a crise do capitalismo, o governo norte-americano se comprometera que o Estado não interviria na internet. Entretanto, a crise foi tão avassaladora que ele interveio na economia, estatizando empresas como a General Motors (GM) e agora está se mexendo para intervir na internet por razões políticas estratégicas.

Garantir a neutralidade seria bancar o tráfego de dados sem quaisquer interferências que afetassem a economia, no melhor estilo neoliberal, deixando que o mercado se regule em nome do atendimento "aos desejos e necessidades dos consumidores". Isso seria descolar a internet do próprio contexto que a gerou, o que cairia em total artificialismo, embora saibamos que uma parte de nós é o que somos e a outra parte o que somos submetidos a ser por pressão das forças econômicas, políticas e culturais.

A nova configuração geopolítica mundial não permite essa maquiagem. Diante do que se consegue enxergar da realidade movida pelos impulsos da internet, acredito que tratar a questão no âmbito do Estado Democrático de Direito é bem mais adequado, uma vez que os interesses sociais devem ser considerados acima dos interesses econômicos. Por não terem sido tratadas assim desde o início as infovias facilitaram toda sorte de mau uso da internet, como os já tradicionais escândalos de pedofilia e, mais recentemente, a venda de drogas por estímulos bineurais, protegida por um discurso de proteção à não discriminação de conteúdos e da livre concorrência.

Concordo que as transformações em processo na atualidade até requeiram uma nova geração de leis. Como nada é neutro na vida, a minha expectativa é que os legisladores ao invés de se deterem nos adornos da neutralidade adotem o princípio da liberdade, que considera o próximo na hora de calibrar o que pode e o que não pode. Afinal, as infovias são logradouros virtuais e como tal, só precisam de alguns semáforos, faixas de pedestre e uma boa qualidade de trânsito. É o mínimo para regular a vida em sociedade. Mais dia, menos dia, chegaremos ao óbvio.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A cultura nas classes C e D - Diário do Nordeste - 10/2/2011


As criações simbólicas, as manifestações populares, os valores, as artes e a literatura não podem ser controladas pelas corporações (...) É a estética que define a ética. As pessoas necessitam de espelhos nos quais possam se reconhecer e ampliar seus horizontes.

A incorporação de um grande número de famílias brasileiras às classes C e D está normalmente associada ao mercado de consumo de itens antes adquiridos apenas por quem estava situado nas faixas de renda mais elevadas. O povo tornou-se visível porque passou a ter uma medida adequada aos parâmetros quantitativos do poder de compra. Essa configuração valorativa resultou na legitimação do grotesco como constante aspiracional descolada de uma sensibilidade cultural livre de induções comerciais.

As empresas de redes de relacionamento têm atraentes logradouros virtuais para essas pessoas; a indústria da distração oferece-lhes cantora trapezista; as corporações de telefonia disponibilizam dropes musicais; o mercado de alimentos e da linha branca cuidam para que a praticidade esteja presente em suas vidas; as montadoras fazem chover carros coloridos em longas e suaves prestações, enfim, o mundo da economia está atento para não deixar nenhuma moeda na mesa dos novos consumidores.

Seja em velhos ou nos novos modelos de negócios, o certo é que a cultura vendida para os ascendentes às classes C e D é a cultura do consumismo, do imediatismo, do nivelamento da noção de dignidade ao status de consumidor. Disfarçado de autonomia nas escolhas, o sistema de venda do consumo como ideal descartável vulgariza as artes, a literatura e as manifestações populares da cultura, produzindo uma grave impassibilidade intelectual e existencial.

Para quem ainda está experimentando o sabor de comprar, não é fácil escapar dos estímulos dos padrões de reconhecida predominância e de baixa busca por reflexão. Transpor as fronteiras dessa novidade que deu ânimo à vida privada imediata de tanta gente, para poder intervir em situações práticas de aproveitamento das possibilidades individuais e coletivas, é quase uma ameaça à satisfação de ser ou parecer semelhante aos demais.

E quem são os demais? Quem são os inspiradores daqueles que passaram a ter alguma renda, dos que melhoraram seus ganhos e estão na linha de tiro da economia de um impessoal mundo urbano-industrial-eletrônico competitivo? Pensando bem, a nossa escassez de papeis-modelo é assustadora. A sensibilidade cultural para dignificar a vida está cada vez mais rara nas nossas elites e isso perturba os critérios seletivos do amplo contingente de migrantes para as classes C e D.

Diante da atenção especial que os extremos requerem e diante dessa circunstância de vazio de sentido, a sociedade organizada, os poderes públicos e a parte mais decente do mercado, que está disposta a criar valor compartilhado, precisam chamar as artes e a literatura para uma relação mais estreita com a base da pirâmide. É a estética que define a ética. As pessoas necessitam de espelhos nos quais possam se reconhecer e ampliar os horizontes que se abrem a todo instante dentro de si.

Por que muitas empresas estrangeiras e nacionais estão investindo pesado no desenvolvimento de produtos específicos para esses novos consumidores, adequando composição, embalagem e especialmente preços de produtos, para alcançar resultados surpreendentes, e não se vê ações agressivamente semelhantes quando se trata de atrair usuários de cultura? Há de se pensar nessa questão, mais dia, menos dia. Do contrário, os avanços sociais conquistados até agora terão pernas curtas, serão mentirosos e o Brasil terá abandonado a chance de ser um País de inspiração sustentável.

A concentração cultural brasileira talvez seja mais alarmante do que a concentração de renda. Por inércia não dá para esperar uma manchete de jornal anunciando que a classe C puxa a produção e o consumo cultural. Não há como as pessoas procurarem produtos e serviços culturais de qualidade se é difícil até saber que eles existem. O crescimento do poder de consumo da população como um todo deve instigar novas formas de entender e pensar a gestão da cultura. Ao Estado, cabe cuidar para que os novos consumidores não fiquem à mercê do mercado.

As criações simbólicas, as manifestações populares, os valores, as artes e a literatura não podem ser controladas pelas corporações. Na região Nordeste, onde houve a maior inserção de pessoas no mercado consumidor brasileiro é urgente que sejam criados espaços de interlocução entre os órgãos de cultura dos nove estados, incluindo nessa catálise a articulação com as políticas de educação, cidadania, meio ambiente, cidades, ciência e tecnologia, turismo, esportes e juventude.

Do compositor Chico César, na Paraíba, ao Professor Pinheiro, no Ceará, as secretarias de cultura dos governos nordestinos têm o privilégio de contarem com secretários que representam as linguagens da música, da história, do jornalismo, do teatro, das artes plásticas e da produção cultural. Em tese, dá para fazer um esforço de conversa com os emergentes para descobrir como oportunizar o acesso dessa gente à cultura, tanto no que diz respeito à produção como ao consumo. Do mesmo jeito que a campanha do Classic Chevrolet, da GM, mostra que o carro "não é só meio de locomoção, mas uma conquista familiar", a comunicação das políticas de cultura também pode trabalhar mensagens com sinalizações afetivas associadas a hábitos e sonhos.

Aliás, esse é um esforço para ser feito nacionalmente, já que a massa de renda dos brasileiros das classes C (com renda familiar de 3 a 10 salários mínimos) e D (1 a 3) vem movimentando nada menos que R$ 900 bilhões por ano e a tendência é que, sem as sutilezas das referências de outros estilos de vida, a nova classe média continue gastando o que tem e o que não tem para manter o status das infinitas atualizações, geralmente desnecessárias, de produtos e serviços homogeneizantes, normalmente anunciados como enaltecedores de diferenças.

A cultura como um todo, mas especificamente no âmbito das supostamente mais vulneráveis classes C e D, também carece de atenção e de ação incisiva do Ministério da Cultura, das secretarias estaduais e municipais do setor, que atuam nos entroncamentos de consumo. O Brasil tem um destacado número de cidades médias nas quais estão concentradas grandes movimentações econômicas. São núcleos urbanos que puxam o comércio dos municípios de entorno e que podem ser facilmente identificados até por serem centros de luminosidade nas fotos noturnas feitas pelos satélites.

Tomando como exemplo alguns desses entroncamentos localizados no Nordeste, dá para dizer facilmente, sem precisar pesquisar, que Juazeiro do Padre Cícero e Sobral (CE), Feira de Santana e Vitória da Conquista (BA), Mossoró (RN), Imperatriz (MA), Caruaru (PE), Arapiraca (AL), Campina Grande (PB) e Picos (PI), estão entre as cidades que polarizam várias outras e podem muito bem servir de nodo para um desenho de um mapa da cultura voltado para um suporte de comunicação próximo às classes C e D na região nordestina.

O recorte a que me refiro não tem a pretensão de substituir qualquer ação existente. O que é prioritariamente apreensivo no consumismo da cidadania emergente brasileira é que a ação unilateral e unidirecional do poder econômico possa debilitar algumas oportunidades de fortalecimento cultural, indispensáveis ao desenvolvimento do País. O movimento de ascensão social iniciado com as transferências de renda, o aumento de empregos, a melhoria dos salários e o acesso ao crédito, pede evolução e, para isso, novas estratégias precisam ser pensadas e postas em prática, antes que as conquistas inclusivas entrem em deterioração.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

De Ushuaia a Punta Arenas - Diário do Nordeste - 3/2/2011


Essa expedição pela Terra do Fogo une a experiência do contato com cada lugar com informações leves e agradáveis (...) A imensidão daquele lugar, com seus belos e múltiplos recortes de ilhas e canais, impacta o nosso sentido de grandeza.
A primeira ideia era zanzar com a minha família em carro alugado pela Patagônia argentina e chilena. Depois, descobrimos que, por conta das barreiras de segurança levantadas contra tráficos e violências, não daria para passar pela fronteira nessa condição.
Como não há um mal que não traga um bem, a agência Tour de Monde, sempre antenada com destinos inusitados, sugeriu a alternativa de fazermos de barco o trajeto de Ushuaia, na Argentina, a Punta Arenas, no Chile, pelos canais da Terra do Fogo. Não poderia ter sido melhor.
A Terra do Fogo é um dos lugares mais emblemáticos do planeta. Recebeu este nome de Fernando de Magalhães (1480 - 1521), quando o navegador português descobriu a região em 1520, a serviço do reino espanhol. É de se imaginar a perplexidade que ele chamou para si ao deparar-se com um sem-número de fogueiras fixas (quando nas ilhas) e móveis (quando dentro de canoas) em brilho fugidio por trás das brumas.
Os habitantes do ponto mais austral do mundo andavam nus e tinham cerca de um metro e meio. Mesmo em temperaturas abaixo de zero grau, viviam praticamente em suas canoas e só desciam para acampamentos rápidos em busca de abastecimento de carne de guanaco e de frutas silvestres. Suportavam os ventos frios e a água gelada em situação de nudez porque untavam os corpos com óleo de lobo marinho e baleia e com azeite de peixe, permanentemente aquecidos pelo fogo.
No Museu Yámana, em Ushuaia, vimos esse povo nu em diversas fotos datadas da segunda metade do século XIX. Inacreditável, mesmo com todo o sentido químico daquela fantástica "plastificação" térmica. Só me conformei com essa descoberta depois que, já nas proximidades de Punta Arenas, vi na Ilha Madalena os pinguins carinhosamente distribuindo nos corpos uns dos outros a substância segregada por suas penas para servir de impermeabilizante do frio nas águas geladas.

Havíamos conhecido Punta Arenas quinze anos atrás, quando ainda não tínhamos filhos, e naquela época visitamos a pinguineira do Seno Otway, a 65 quilômetros a noroeste da cidade, mas sequer desconfiamos que aquele gesto paciente de um pinguim acariciando o outro está ligado a algo tão prático dos cuidados com a sobrevivência. Naquele recôncavo a população de pinguins não chega a dez por cento dos 70 mil casais que cavam seus ninhos no barro da Ilha Madalena e, para se localizarem, zurram literalmente como jumentos.
É pelos meses de janeiro e fevereiro que os filhotes ganham autonomia nas colônias da espécie pinguim-de-magalhães. Passear por essa região nesse período é bom para quem quer conhecer de perto essa ave marinha típica do pólo sul e muito tranquilo porque a temperatura nas horas de passeio está, via de regra, por volta dos sete graus e o dia tem dezoito horas de sol. Mesmo com o constante e frio vento patagônico, o dia estava claro na manhã que visitamos a pinguineira da Ilha Madalena.
Na expedição ao Cabo de Hornos, o clima ajudou como pôde. O Stella Australis, que é um barco da indústria chilena, projetado especificamente para navegar na região, enfrentou mar aberto e estreitos canais entre ilhas para chegar a esse bloco de rochas, descoberto em 1616, que é o ponto de encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico.
Desembarcamos em botes e subimos uma escada de 160 degraus, com chuva fina, vento frio e uma temperatura de dois graus Celsius. O topo, onde fica o farol está a 425 metros de altura. Do alto, observamos o fim do mundo. Apenas 600 quilômetros separam aqueles mais de 55 graus de latitude sul das geleiras da Antártica.
Entre um pouco de chuva e um pouco de presença solar, conhecemos a baía de Wulaia, na Ilha Navarino. A emoção muda de semblante como muda a geografia. Além do contato com a ampla variedade de organismos, do tipo líquen e musgo, de vidas marinhas e vegetação de bosque, vimos dois condores planando, com suas asas de mais de três metros de envergadura, e caminhamos na praia em que o naturalista britânico Charles Darwin (1809 - 1882) parou para conhecer os canoeiros Yámana e colher material de pesquisa, na viagem que fez a bordo do navio Beagle (1833), quando formulou a "Teoria da Evolução das Espécies".

Não é em vão que a parte da Cordilheira dos Andes que ocupa a Terra do Fogo é chamada de Cordilheira Darwin. Com picos de dois mil metros, cobertos de capas de neve compactada que, nesse período (verão), degelam em forma de cascata. A área está cheia de glaciares, que são massas de gelo muitas delas milenares.
Entramos pelo fiorde Keats e ancoramos na enseada Agostini para conhecer o glaciar Aguila. Caminhamos pela praia de seixos e mexilhões, contornamos a lagoa e ali estava ele, o imenso bloco de gelo azul. Em um outro trajeto da nossa viagem conhecemos um glaciar preto, no Cerro Tronador, da província de Rio Negro, na Argentina.
Os glaciares impressionam pelo que representam na história da terra. Lembro-me da primeira vez que vi um, o glaciar Grey, no parque das Torres del Paine. Não sou muito de beber, mas naquele dia tomei uma dose de uísque com gelo milenar apanhado com a própria mão.
Desta vez não deu para subir até Puerto Natales, com os nossos filhos, para compartilhar essas outras paisagens patagônicas. Tivemos que alterar o nosso roteiro de viagem por conta da justa paralisação do povo da Região de Magalhães contra um acintoso aumento no preço do gás, insumo vital para quem vive em um lugar tão frio.
Do jeito que deu para ser, a viagem foi muito boa e proveitosa. O trecho de barco entre Ushuaia e Punta Arenas vale por si umas férias. Em Ushuaia o meu filho Artur, que gosta de caranguejo, devorou boa parte de uma centolla, que é o caranguejo gigante das águas frias do Canal de Beagle; em Punta Arenas, o irmão dele, o Lucas, participou das manifestações contra a alta do gás, empunhando a bandeira de Magalhães e a Andréa foi bicada por um pinguim.
Ushuaia é o centro político da zona austral argentina e Punta Arenas, a capital da região chilena de Magalhães. No século XIX, ambas foram presídios de criminosos reincidentes e presos políticos; ambas são embelezadas por uma arquitetura de casas de tetos coloridos e ambas abrigaram colonos croatas, iugoslavos, suíços e espanhóis. Ushuaia está no Canal de Beagle, pelo lado da Ilha Grande da Terra do Fogo, e Punta Arenas, no Estreito de Magalhães, no extremo continental.

Em um grupo de 140 passageiros, de 19 nacionalidades, embarcamos no navio Stella Australis, com suas cabines de janelas panorâmicas e uma tripulação de ecléticas habilidades. Pâmela, Dominique, René... alguns nomes ficaram gravados pela simpatia e pela atenção confortável dos tripulantes. Ao longo do cruzeiro, eles se revezavam em palestras sobre temas relacionados às expedições, na hora do desembarque e nos momentos de recarregarmos as energias.
Esse cruzeiro de expedição pela Terra do Fogo, ligando Ushuaia a Punta Arenas, une o aprendizado da experiência do contato com cada lugar e uma agradável viagem com informações leves sobre a flora, a fauna, a geografia, a etnografia e a história dessa espetacular região sul da América do Sul.
A imensidão daquele lugar, com seus belos e múltiplos recortes de ilhas e canais, impacta o nosso sentido de grandeza e nos aproxima de qualquer senso perdido de contemplação. O cenário de silenciosas montanhas nevadas, glaciares, cascatas, bosques, aves e animais marinhos, torna-se ainda mais encantador pelo que significa de história natural, geografia humana e a cultura das grandes navegações.