quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Coluna Flávio Paiva - Diário do Nordeste - 30/9/2010

A compreensão de que arte e política são inseparáveis me aproximou de pronto dos fundamentos da 29ª Bienal de São Paulo, que está aberta ao público no pavilhão do Parque do Ibirapuera, desde o dia 25 deste mês, estendendo-se até o dia 12 de dezembro. Estou alinhado com os que, dentre outros atributos, admiram na arte a sua atitude subversora do senso comum. Com esse espírito visitei a Bienal na quarta-feira passada, dia 22, por ocasião do coquetel para convidados do Itaú Unibanco, patrocinadores do evento. Por quase quatro horas me deleitei com o que em tão pouco tempo foi possível apreciar dos mais de 800 trabalhos de 159 artistas selecionados.

Embora tenha me deslocado pelas praças, corredores e compartimentos dos três pisos do pavilhão, carregando o peso da impressão de estar sendo vigiado por um grande consenso internacional de curadores apegados à preferência pelo que o vídeo e a fotografia representam na arte contemporânea, saí contente da minha visita porque saí confuso e pensativo. Atribuo a causa dessa minha feliz inquietação ao efeito dos contrastes entre a inseparabilidade da arte e da política, princípio organizador da Bienal, e a relativa efetivação desse princípio, no que
diz respeito à indistinção feita entre o que é arte e o que não passa de uso e técnica da tecnologia digital para o registro da realidade.

A liberdade de reler, de reinventar e de interferir no real está no genoma político da arte. Tive dificuldade de sentir essa afirmação nos pronunciamentos estéticos do conjunto dos trabalhos expostos. A maioria me pareceu perto demais da fisionomia de marginalidade já espetacularizada pelas mais diversas mídias de massa. É certo que a articulação desses relatos tem grande valor social e político, mas correm o risco de reduzir a função política da arte e o papel social do artista a uma mera crônica das nossas fraturas expostas. Esse tipo de decalque de circunstâncias, composto por referências visuais agressivas das desigualdades, acaba por deter no espelho das imagens o que está por trás delas.

A apropriação direta da realidade não necessita da arte, sob o aspecto de desestabilização da ordem dos sentidos. Cada qual faz a sua parte, matando, roubando, reprimindo, ameaçando, se omitindo, denunciando, demolindo, ateando fogo nas matas, nos mendigos e até filmando e fotografando tudo isso. Os estímulos de ficção instalados no cotidiano seriam assim os destinatários de si mesmos, por terem como endereço a vulnerabilidade humana.
Os exageros na repercussão dos painéis "Inimigos" de Gil Vicente, nos quais o autor aparece executando, sem direito de defesa, personalidades nacionais e internacionais, demonstram a superficialidade da nossa expectativa com relação à arte.

Ao comentar a polêmica gerada em torno do trabalho de Gil Vicente, a cantora Mona Gadêlha, com quem tive a satisfação de fazer todo o percurso da Bienal, lamentou a predominância desse tipo de discussão em um evento tão grandioso. A autora de "Salve a Beleza" é pouco afeita ao uso do recurso da agressão de forma demasiadamente direta na arte, por acreditar mais na sutileza que nos instiga à reflexão nas entrelinhas.
Concordo com ela, embora aceite com mais facilidade as manifestações agressivas na arte, desde que suportadas por referências culturais e estéticas que as justifiquem.

Assim, vi os painéis de Gil Vicente mais como uma legítima indignação contra os sistemas representativos do que como traços rudimentares de carvão sobre papel. Esse ato de catarse me fez lembrar o palhaço Tiririca que se tivesse expondo suas peças de campanha na Bienal, sob o pretexto de expressão humorística da antipolítica, estaria contribuindo muito mais com a sociedade do que as levando ao ar no horário eleitoral gratuito. Na Bienal, e
las certamente teriam tanta repercussão quanto o trabalho de Gil Vicente e seriam mais expressivas do que a plotagem factual de Roberto Jacoby sobre a campanha presidencial.

Da forma que está conceituado, o trabalho que ocupa o vão central do pavilhão da Bienal deixa a desejar. Nuno Ramos, seu idealizador, fez um amplo viveiro no qual aprisionou três urubus, destacando-os como símbolo da negação, do luto, do carniceiro... O autor foi traído pelo senso comum e sua criação perdeu força. No céu da arte política a figura do urubu pegaria melhor se planasse em alguma corrente de ar aquecida pelo discurso transgressor da noção cultural e socioambiental dominante. Fora da caixa, a metáfora de um urubu preso significa a prisão de um agente de saúde da natureza e, consequentemente, uma forma de assegurar a liberdade de toda e qualquer sorte de carniça política e social.


Só por nos levar a turbilhões de pensamentos como esses a Bienal já cumpre a função política da sua ação cultural, que é oferecer exemplos de como, entranhada em si mesma, a arte é capaz de tecer uma política. Deixei o Parque do Ibirapuera naquela noite com a cabeça nadando a braçadas no "infinito próximo" do meu mar de interrogações. O título da 29ª
Bienal é um trecho do poema "A invenção de Orfeu", de Jorge de Lima (1895 - 1953): "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". A sensação de que a moda (e não a média) das obras expostas tem um frágil caráter artístico não evitou que eu reforçasse em mim a ideia de que enquanto houver arte o ser imaginativo não se deixará afogar.

Movido por essa disposição de apreciar as obras que d
ão dimensão oceânica aos mais simples copos de água, procurei não me deter ao que era inédito ou remontado, nacional ou internacional. A velha instalação de Anna Maria Maiolino está entre as obras que me fascinaram por seu caráter de atualidade radical: em uma sala toda branca, uma mesa preta aguarda os comensais em frieza sombria, com pratos servidos à base de terra adubada, da qual brotam fios de arroz e feijão. Trata-se de uma fala política extremamente revolucionária, por fustigar com impetuosa delicadeza os conflitos da geopolítica agrária e suas implicações no mundo dos negócios e na segurança alimentar.

A fotografia de Alessandra Sanguinetti também compõe a fração de obras que causam impactos próprios da arte em sua dimensão política. Dispostas em paredes que fatiam o tempo, as imagens de Sanguinetti mostram com volumosa textura de luz e sombra mais e melhor do que normalmente se vê. Em uma parede, a série procura interpretar o imaginário afetado pelo real nos últimos dias da infância das primas Belinda e Gille, uma bem magra e a outra gordinha. Na parede de frente, conta como as limitações do contexto social podem sufocar, mas não impedir que a fantasia siga seu curso de liberdade na cultura da infância. Neste aspecto, é maravilhosa a foto em que Gille, já adulta, amamenta um bebê, ao passo que sua filha mais v
elha fecha-lhe os olhos com as mãos, para que adivinhe quem é...

Do jeito que for, a 29ª Bienal reafirma sua importância como voz da arte contemporânea. Trabalhos como o congelamento de pêndulos e prumos, de Tatiana Trouvé; a coreografia de cabeças sobre manto branco, de Lygia Pape; e o redário de Rochelle Costi são essencialmente envolventes. Dessa paisagem mental fazem parte ainda as projeções de Kutlug Ataman, com a inquietante teatralização da mendicância; o mural gráfico paulofreireano de Jonathas de Andrade;
as fotos com denso relevo pictórico de Rodrigo Andrade; e as bandeiras nacionais sem cores, que Wilfredo Prieto intitulou simplesmente "Apolítico" para, deste modo, politizar mais ainda a sua intervenção.





quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Os poemas das nossas portas - Diário do Nordeste - 23/9/2010


Na nossa casa resolvemos deixar as portas permanentemente abertas. O canal de entrada e saída é a poesia (...) Quando lidos, os poemas transformam-se em pensamentos, em emoções e em comportamentos

Quando tocamos a campainha na casa de alguém, normalmente observamos a porta, corremos o olhar por sua superfície e, quando ela se abre, aquele olhar contido pela madeira, pelo vidro translúcido, pelo metal, deixa escapar para dentro da casa uma série de pensamentos lembrados ou não que produzimos naqueles instantes. Da mesma forma que ao ser aberta a porta permite a nossa passagem; enquanto que fechada, ela isola a visita em sua própria mente.

Na nossa casa resolvemos há um bom tempo deixar as portas permanentemente abertas. Quem quer que chegue ao andar onde moramos pode ir logo "entrando" enquanto atendemos à campainha. O canal de entrada e saída é a poesia. É por meio de dois poemas, aplicados nas duas portas, que nos comunicamos imediatamente com quem chega a nossa casa. Não há sequer o número do apartamento nessas portas, apenas a conexão da poesia.

Poemas abrem portas porque inspiram os encontros. Escolhemos dois poemas para cumprir essa função de cicerone em nossa casa; dois poemas que fossem extremamente profundos e ao mesmo tempo extraordinariamente leves; poemas que sintetizassem as antenas da nossa alma e as raízes da nossa cultura. Esses atributos foram identificados em "Ítaca", do poeta grego-egípcio Constantin Cavafis (1863 - 1933) e em "Terra Bárbara" do poeta quixadá-fortalezense Jáder de Carvalho (1901 - 1985).

Ambos são casa e porta porque falam da aventura de sermos de um lugar e de termos um espírito nômade. Ambos são travessia e território de movimento porque contam do que existe de eterno em nosso tempo de passagem. Ambos dão sentido de grandeza à existência e à espiritualidade, porque nos colocam em contato direto com as nossas dimensões reais, simbólicas e imaginárias. Com "Ítaca" e "Terra Bárbara" a plenitude da vida se manifesta como uma proeza individual e coletiva, marcada pela instigante ardência do viver.

O exercício de escolha de um poema-síntese do que somos é maravilhoso. Penso que cada pessoa deveria pelo menos ensaiar esse mergulho de auto-sondagem cultural, independentemente de querer ou não colocar na porta de casa o poema apanhado nas profundezas de si mesmo. Mais desafiador e empolgante ainda é compartilhar o achado com quem se mora, com quem se vive, para que a poesia seja fixada na porta com o máximo de cumplicidade. Para que os poemas coubessem nos espaços das portas da nossa casa e ficassem agradáveis de ler fiz uma pequena adaptação na estrutura dos textos, de modo a tornar mais visível o que neles identificamos como nossa tradução.

O poema de Constantin Cavafis, evocado da "Odisséia de Homero", está aplicado na nossa porta porque engrandece a vida, ao desejar que ela seja longa, e por nos conclamar a priorizar o que nela realmente vale a pena, pela elevação da alma na construção da experiência de ser e viver. Em uma das portas do nosso apartamento o poema "Ítaca" está escrito assim:

"Quando partires de regresso a Ítaca, / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogônios, e outros monstros, / um Posêidon irado - não os temas, / jamais encontrarás tais coisas no caminho, / se o teu pensar for puro, / e se um sentir sublime teu corpo toca. / Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. / Mas não te apresses na viagem. / É melhor que ela dure anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, / rico do que foi teu pelo caminho, / e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. / Sem Ítaca, não terias partido".

As buscas da minha adolescência me levaram a ler a "Odisséia de Homero", que relata o retorno do rei Ulisses (Odisseu) à ilha de Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Foi uma prova de percepção do mundo. Algumas das passagens do livro nunca mais deixaram de ser imagens fortes em minhas recordações. A necessidade do líder de ouvir o canto das sereias, mas não se deixar tragar pelo seu poder de atração é uma delas. Dentre outras, destaco também a parte em que Ulisses se reencontra com o seu fiel cachorro; o primeiro disfarçado de mendigo, para poder saber o que se passava nas entranhas do seu reino, e, o segundo, largado aos monturos por uma sociedade que dava como morto o seu soberano.

O poema de Jáder de Carvalho, natural do veio poético e da árida política do sertão, eleva à vida ao seu patamar mais íntegro, ao desafiar o senso comum dos códigos morais dominantes, com padrões antropológicos que primam pela experiência libertadora da ética e suas balizas culturais. Foi na infância, quando eu morava no coração do poema, que senti seu pulsar na voz da professora Terezita Barroso; depois, já em Fortaleza, ganhei o livro das mãos do próprio autor, e dele extraí os versos de "Terra Bárbara" que estão escritos assim na outra porta do nosso apartamento:

"Na minha terra, / As estradas são tortuosas e tristes / como o destino do seu povo errante. / Viajor, se ardes em sede, / se acaso a noite te alcançou, / bate sem susto no primeiro pouso: / - terás água fresca para a tua sede, / - rede cheirosa e branca para o teu sono. / Na minha terra, / o cangaceiro é leal e valente: / jura que vai matar e mata. / jura que morre por alguém e morre. / Eu sou o índice do meu povo: / se o homem é bom - eu o respeito. / se gosta de mim - morro por ele. / se, porque é forte, entendesse de humilhar-me / - ai, sertão! / eu viveria o teu drama selvagem, / ou te acordaria ao tropel do meu cavalo errante, / como antes te acordava ao choro da viola".

A resposta dada até hoje pelas pessoas que nos visitam é que os poemas antecipam sentimentos calorosos e espontâneos de boas-vindas. As reações variam, embora apresentem um ponto em comum: uma porta que tem um poema exposto em sua parte mais visível não é uma porta que apenas serve para fechar e para abrir; ela faz com que o visitante se torne ativo por menor que seja o tempo de espera. A simples noção de que existe uma poesia escrita na porta já inicia uma compreensão sobre a casa e sobre os que nela moram.

Quando lidos, os poemas transformam-se em pensamentos, em emoções e em comportamentos. Às vezes o visitante não tem tempo para ler os textos, antes de a porta ser aberta de fato, e pede para concluir a leitura. Em outras ocasiões demonstra quase uma desculpa de invasão, como se tivesse olhando pelo buraco da fechadura. É que a poesia tira o aspecto opaco e translúcido da porta, expondo toda a nudez da identidade e da afetividade de quem dela se aproxima pelo lado de dentro da casa.

A leitura do poema-síntese que alguém escolhe para aplicar na porta de casa parece rebobinar a consciência que temos uns dos outros, ora abstraindo memórias esquecidas e ora esboçando novos espaços de sua efetiva compreensão. A poesia de porta é um gesto particular de distinção, um jeito prévio de acolher as pessoas que chegam a nossa casa, antes de tomá-las entre os braços e solicitar que entrem.

Essa experiência vem me ensinando que, ao sair de casa, é muito bom ler na porta que "fechamos" um pouco da poesia que nos revela. Todo dia espero o elevador lendo um ou outro trecho de "Ítaca" e "Terra Bárbara", quando não, seus textos inteiros. A sensação que me dá é que tenho um lugar para regressar, mas que não é um lugar comum e sim um lugar que resume o mundo; um lugar onde deixo armada uma rede cheirosa e branca; um lugar que transforma o vaivém da luta cotidiana em uma viagem esplêndida.


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A potência dos pobres - Diário do Nordeste - 16/9/2010

Confirmada a tendência de eleição da candidata Dilma Rousseff à Presidência da República, abre-se um novo ciclo de desafios na redução das desigualdades no Brasil, que é a integração dos pobres ao desenvolvimento. Com Lula, dentre várias conquistas históricas, os desafortunados passaram a ter algum poder aquisitivo, o acesso ao mercado de consumo e o início do trânsito pela diversidade cultural, mas tudo ainda muito vinculado à ordem das necessidades básicas. O passo seguinte, num eventual governo Dilma, é o da criação das condições para a cidadania ativa, com os pobres podendo colocar seus desejos dentro do sistema representativo. Se, com Lula, o diálogo foi aberto com o povo, com Dilma, esse diálogo poderá ser estabelecido com a pessoa.

Reforcei esse meu sentimento ao ler o livro "Pobres, Resistência e Criação" (Cortez, 2010) da socióloga Monique Borba Cerqueira, que abre novas angulações para a interpretação quase sempre unidimensional do universo dos pobres, centrado no discurso valorativo da impotência. A autora rompe com a linearidade dos diagnósticos que resumem a figura do pobre a uma vítima do regime de falta, normalmente lastreados nas estatísticas de um mundo moral confinante. É comum a circulação de informações que mostram o que são os pobres, porém é incomum informações que revelem o que eles podem ser. O distanciamento do pobre do tipo social "ideal" leva à discriminação porque o realizar-se fora dos controles estabelecidos é radicalmente punido por desenvolver a sua potência criativa.

O estudo de Monique Cerqueira propõe um novo diálogo no qual o pobre possa se colocar além dos movimentos inteiramente "úteis" da vida, para que a população se reinvente para além das fronteiras que caracterizam toda situação concreta de mera sobrevivência. Esta é uma obra que denota grande senso crítico a segregação dos "carentes" e seu esvaziamento de sentido na vida das pessoas pobres, restringindo-as aos afazeres rotineiros e ao ócio forçado. Quando a autora diz que "a pobreza não é apenas uma palavra destinada a designar, é o lugar de confinamento do pobre" (p. 23), ela oferece uma insuspeitada visão da dinâmica da dominação política e social pelo viés do simbólico. Considerar a potência do pobre é ter coragem de liberar as forças da vida para que se realize em caminhos irregulares.

A força moral que empurra o pobre à beira do abismo da autoconservação inibe a sua capacidade de produzir vida na própria vida. Monique Cerqueira nos instiga a afetos e paixões, como modo de transvalorar o conceito de pobre para a dimensão de aproveitamento do seu potencial, que o conjunto da sociedade poderá ter com o que pode surgir de novo e profícuo dessa parcela subjugada ao apagamento de si. Tudo o que vem do pobre tende a ser visto como repulsivo e por isso é mal tolerado. Do pobre só deve ser apropriado o que ele tem a dar para a manutenção de privilégios, concentrações de riqueza e pretextos para consolo de consciências. Talvez por isso, a autora tenha recorrido a personagens do cinema e da literatura, não somente para facilitar a explicitação das entrelinhas de suas histórias, mas também para desarmar o nosso preconceito.

O livro põe nessa roda de conversas e reflexões três personagens emblemáticos que, embora vivam sob o signo da escassez, põem à prova a possibilidade de uma desobediência plural e criativa. Com a imagem docemente trágica de Carlitos, de Charles Chaplin; com a figura atrevida da sensual Gabriela, de Jorge Amado; e com a atitude de recusa da introvertida Macabéa, de Clarice Lispector, nos damos conta do que significa um cotidiano alheio às obrigações instituídas socialmente; o que significa desejar o bem-viver mesmo em situação de pobreza; e o que significa não se dar a conhecer ante a pressão dos códigos, regras e estereótipos que patrulham a vida comum. Frente a frente com os convidados do mundo da ficção nos sentimos mais à vontade para procurar entender, à luz das ciências sociais, os alcances nefastos do olhar de estranhamento dirigido aos pobres.

O pobre, na noção vigente questionada pela socióloga, é aquele para quem se planejam intervenções; aquele que está sempre em algum lugar de subtração chamado "pobreza", onde resiste cercado pela dramaticidade do seu próprio sofrimento. A autora justifica sua busca de conhecimento da vida adversa por meio da ficção, argumentando que esta permite a aproximação e o transbordamento do sentir, em seu poder de indeterminação. "Todos os personagens analisados são atravessados por um fluxo de vida insuperável, uma desobediência sem limites; eles desconhecem qualquer enquadramento soberano" (p. 40). Assim, a escolha de Carlitos, Gabriela e Macabéa foi feita em função do que eles representam de potência humana no enfrentamento de contextos marcados por profunda ausência do indispensável para viver.

É atraente como a autora traz para o real as reelaborações da arte e da literatura. Carlitos não teme o fracasso social porque não elabora a vida como desastre, mas como uma experiência de recriação fecunda; Gabriela supera o anonimato dos rejeitados não apenas por ter uma beleza que agride as mensagens estéticas da pobreza, mas por ter pleno desejo pela vida e, com isso, conseguir a inversão das potências comprimidas na ideia de pobreza, tornando a existência um ato de obstinação e beleza; e Macabéa age como alguém que "não é", desafiando a lógica da representação, o que a torna alvo de uma depreciação moral que a acua em sua invisibilidade. A sondagem daquilo que é singular em personagens de ficção que conseguem percursos fugidios à situação de pobreza, dá um toque diferencial à leitura do livro "Pobres, Resistência e Criação".

O caminho apontado por Monique Cerqueira para levar à integração do pobre ao desenvolvimento é o do reconhecimento e consideração da sua pulsão desejante. "Somente uma ética criadora é capaz de quebrar a modelagem do sujeito, torná-lo inventor, autônomo, apto a criar novas sensações, modos de agir, pensar, experimentar o próprio corpo, intensificando e explorando todas as suas possibilidades" (p. 150). No prefácio, o psicólogo Sylvio Gadelha sintetiza o livro como "um trabalho que toma a vida como aquilo que tem a potência de ativar o pensamento, e este como aquilo que pode afirmá-la incondicionalmente" (p.12). Esse princípio de vontade de potência quebra, segundo a autora, a ordem hierárquica que submete à vida, rompendo a neutralização da impotência, fazendo desaparecer o problema da infinita insuficiência e criando alternativas aos insustentáveis padrões de vida estabelecidos. flaviopaiva@fortalnet.com.br



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Narrativas do Brincar (final) - 9/9/2010 - Diário do Nordeste

Quanto custa para a saúde, para a assistência social e para o meio ambiente a nossa omissão com a infância? Quantas crianças poderiam ser um pouco mais felizes e se tornarem adultos mais conscientes se tivessem a oportunidade de brincar pelo menos em uma brinquedoteca de praça? Em quanto sangram os cofres públicos por falta de cuidados que comecem na hora do crescimento pelo brincar? Quanto economizaríamos em clínicas, hospitais, reformatórios, presídios e apagamentos de incêndios florestais e psíquicos se parássemos de apostar na infelicidade individual e coletiva? Onde está o lugar do Estado em tudo isso? Quais as ações dos poderes públicos, em articulação com a sociedade civil, que poderiam viabilizar o espaço público do brincar?

Percebo duas vertentes prioritárias e factíveis nesse sentido. A primeira é a qualificação dos logradouros públicos (praças, ruas...). Esses lugares precisam inspirar mais segurança. Precisam contar com equipamentos fixos e móveis, necessários ao seu uso com o mínimo de decência. Quando falo em equipamentos fixos estou me referindo, por exemplo, as pistas de skate que estão sendo construídas nos nossos centros urbanos e as brinquedotecas do programa "O Ceará cresce brincando". As pistas são espaços para a narrativa do calor táctil e os centros de referência do brincar (brinquedotecas, com acervo de livros e quadrinhos) englobam tanto as narrativas do calor táctil (brincadeiras do corpo) como as narrativas do ouvido da mente (brincadeira das palavras e do pensamento).

Houve um tempo, há cerca de três décadas, que no Polo Cultural do Benfica, a Universidade Federal do Ceará mantinha um animado teatro móvel, do qual lembro agora, ao pensar no quanto seria maravilhoso se pudéssemos contar com uma pequena lona a circular pelas praças, integrando a cultura dos bairros, fazendo costuras estéticas de sociabilidade urbana. Os nossos logradouros poderiam ter mais atrativos como o parque de brinquedos feitos pelo DIM no jardim zoológico Sargento Prata, em Fortaleza. Personagens como o Capitão Rapadura, do MINO, deveriam estar espalhados pelas praças do Ceará, assim como a figura brincalhona do Saci Pererê poderia ser potencializada em festas transetárias e transclasses sociais, capazes de aproximar escolas, pais e comunidades. Com pequenas demonstrações de respeito ao espaço público do brincar e com praças (e por que não as futuras estações do metrô?) interligadas por ciclovias, cidades como Fortaleza certamente poderiam dar saltos de bem-estar coletivo.

A segunda vertente relativa à ação dos poderes públicos voltada para a consideração da criança em seus planos de desenvolvimento é a evolução permanente das competências dos brinquedistas, esses heróis silenciosos, que trabalham com a parte mais sensível e valiosa da sociedade, que é a infância. Para isso, o que precisa ser feito não é novidade: investir na melhoria dos modos de condução do brincar e da brincadeira, na gestão do alinhamento do tempo social com o tempo do brincar, na intensificação de vínculos sociais e territoriais, no vivenciar da experiência da criança em situação de brincadeira, em arte e literatura infantil e juvenil de qualidade, em métodos claros e bons, na valorização dos gestores da educação e da cultura comprometidos com o interesse público do brincar, enfim, no apoio efetivo e constante aos diversos educadores sociais dentro e fora da escola.

Mas quais são mesmo os resultados da brincadeira como experiência? Para que serve mesmo tudo isso? Primeiro, porque brincar é essencial para a formação da subjetividade na consciência, portanto, um contraponto ao homogêneo e um fortalecedor da diversidade. Segundo, porque brincar é a melhor forma para o desenvolvimento da noção de tempo, espaço e capacidade de realização, assim como da vida social, da participação na escola e na construção do sentido de segurança. A criança que cresce na experiência da brincadeira passa a agir com mais segurança e com mais criatividade em tudo o que faz. O brincar e a brincadeira são premissas de civilidade que possibilitam o rompimento com a circularidade e permitem a troca de estilos de faz-de-conta: sai do "não importa de onde vêm os recursos, nem para onde vai o lixo", resultantes do faz-de-conta da racionalidade adulta, para entrar no sentido de sustentabilidade, do olhar o mundo com credulidade, próprios do faz-de-conta da cultura da infância.

E por que isso acontece? Porque a experiência do brincar e da brincadeira se dá em um lugar onde, para acontecerem, as coisas não precisam dos nexos da realidade. Em sua aventura pelo mundo do nonsense, da imaginação e da fantasia, a criança tem muito sobre o que "pensar"; não o pensar lógico do adulto, mas o pensar que a faz tomar a distância necessária para configurar a sua interação com as medições do mundo, sem o rigor de pesos, volumes e comprimentos. No país das maravilhas, de Lewis Carroll, a personagem Alice cresce e encolhe a todo instante, de acordo com tudo o que não precisa estar de acordo com nada. No brincar e na brincadeira, a criança aprende a adquirir novas perspectivas sobre si e sobre o seu meio e aprende a controlar as emoções nas situações mais complexas. E o mais importante é que as referências ao imaginário não desaparecem quando se tornam reais.

Por que as referências ao imaginário não desaparecem? Porque na brincadeira forma e matéria se confundem; cultura e natureza se mesclam em um processo transacional, um fluxo dialógico entre os mundos interior e exterior da criança, para que ela possa crescer na plenitude de suas faculdades humanas. Esse fluxo se dá pela liga da imaginação existente no lúdico, a zona do jogo presente em adultos e crianças; esse fluxo é alimentado pela curiosidade, a plataforma da criatividade que se constrói com mais solidez em quem brinca; esse fluxo passa pela produção de hipóteses, o não-lugar de montagem do entendimento do mundo; esse fluxo acaba chegando ao raciocínio, onde se processa o significado lógico das coisas; com isso esse fluxo pode idealizar, fazer projeções, inovar, interferir na realidade...

Os governantes que realmente querem que o Brasil passe a ser um País respeitado e considerado interna e externamente, precisam urgentemente conceber um lugar de direito para a criança nos planos de desenvolvimento do Estado. Nesse sentido, mesmo separados em ministérios e secretarias a educação e a cultura precisam caminhar juntas. Os governos e a sociedade precisam pensar juntos como fazer planos e executá-los em favor do brincar e da brincadeira. Os adultos e as crianças precisam encontrar juntos os caminhos que levem a humanidade a um novo estilo de vida, que corrija o modelo equivocado que vem ameaçando os recursos naturais do planeta e desgastando as relações entre as pessoas.

Para praticar o seu tempo, a qualquer tempo, a criança necessita ter direito à imaginação e a melhor maneira de exercer esse direito é por meio do brincar e da brincadeira. A nova criança, formada por uma combinação entre os currículos escolares e os currículos ocultos das mais variadas redes de informação e de relacionamentos, quer ter direito a procurar respostas mais convincentes para o que somos e o que queremos ser. E essas respostas estão no baú da questão política. Não há o que esperar, a vida adulta é conduzida pelas pegadas da infância e o Estado pelos rastros da sociedade.






quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Narrativas do brincar (I) - 2/9/2010 - Diário do Nordeste

A brinquedoteca da cidade de Cruz fica em uma agradável praça, com ladrilhos que têm forma de macaca e jogo da velha (...) Construir um "Espaço de Referência do Brincar" é uma questão de compreensão, de compromisso sincero com o sentido público

Brincar é uma situação encantatória por meio da qual nos preparamos para tomar consciência da nossa humanidade e do mundo que nos cerca. Particularmente, trabalho com duas narrativas do brincar em seu ato concreto, que é a brincadeira: a narrativa do calor táctil e a narrativa que acontece pelo ouvido da mente. Uma, está associada aos jogos para os quais utilizamos os tradicionais cinco sentidos; a outra faz parte do conjunto de sensações resultantes da combinação de sentidos e da força reveladora das palavras. Ambas constituem-se, portanto, um direito humano, o direito à brincadeira do corpo, das palavras e do pensamento.

Tomei essas narrativas do brincar como base para a palestra que proferi sobre "A criança nos planos de desenvolvimento do Estado", na última segunda-feira (30), no Plenário 13 de Maio da Assembleia Legislativa, a convite da Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Estado do Ceará - APDM.CE e do Unicef. Presidida pelo deputado Artur Bruno, a Sessão Solene, que tratou da certificação dos educadores sociais (brinquedistas), do programa "O Ceará cresce brincando", me deu a oportunidade e a satisfação de compartilhar o que penso e o que proponho sobre esse tema tão instigante, necessário e urgente.

Na nova realidade mundial, agitada pelas transformações de significados decorrentes dos arranjos da multipolaridade, da virtualidade, da biotecnologia, da transgenia, da nanotecnologia e da sustentabilidade, o brincar e a brincadeira começam a aparecer, ainda que bastante incipientes, como indispensáveis na reconstrução do mundo. Por sua natureza espontânea e sua incomensurável liberdade de experimentação, brincar é uma das mais claras alternativas de busca de equilíbrio psicossocial diante do emaranhado de crenças e descrenças que rondam os tempos atuais, ainda marcados pela supremacia do economicismo, da vulnerabilidade do pensamento e da palavra, do uso da religião como suposto recurso de cidadania (o sagrado está ficando perto demais), da crise da política, da neutralização da infância readultizada e da escola (pública ou privada) como ponto de venda cativo do mercado de consumo.

O determinismo dos fatos é outro aspecto de entrave à evolução de uma mentalidade favorável à infância como elemento de mudança positiva. Sabemos que é uma dureza promover o desenvolvimento em um país colonizado e em um estado perversamente estigmatizado como pobre. Mas o Brasil e o Ceará não cabem mais no reducionismo desses estereótipos. Provamos nos últimos anos o sabor da impossibilidade, ao nos reposicionarmos com autonomia no diálogo interno e externo. Temos uma nova elite em formação, embora ainda confusa do seu papel; temos uma nova cultura se pronunciando, embora ainda em estágio conflituoso de afirmação; temos anseios por uma nova educação... e tudo isso requer novas formas de intervenção pública. Nesse contexto, pensar a criança é pensar no traçado de uma nova rota; é optar pelo brincar e pela brincadeira em sua dimensão estruturante.

Na quinta-feira passada (26) fui ver de perto um dos 14 espaços de referência do brincar, do programa "O Ceará cresce brincando". A brinquedoteca da cidade de Cruz, a pouco menos de 300 quilômetros de Fortaleza, pelo litoral oeste, fica em uma agradável praça, com ladrilhos que têm forma de macaca (amarelinha) e jogo da velha, adornados pela plasticidade cosmológica das carnaúbas copérnicas, típicas da região. Vi crianças e adultos entrando e saindo nos espaços de contação e de jogos, como o vento e a luz que passavam pelos cobogós da simples e funcional arquitetura do pequeno prédio. As brinquedistas atentas e comprometidas me falaram de cultura e cidadania, ao mostrar a diversidade de opções de jogos e brincadeiras e ao contar do cotidiano do seu trabalho, extensivo aos distritos e à interação com os mais velhos.

Quando vejo essas coisas encho-me de esperança. Penso em quantos parabéns merecem os gestores públicos que são capazes de ver grandeza nas pequenas realizações. Construir um "Espaço de Referência do Brincar" não custa tanto. É uma questão de compreensão, de compromisso sincero com o sentido público da política. A infância precisa desse tipo de atenção e de espaço. As crianças já não suportam mais a pressão do agendamento das obrigações diárias, as tentações do consumismo, a pouca clarificação dos novos arranjos familiares, a desconstrução das referências de proteção espetacularizadas no noticiário de casais que se matam e pais que matam os filhos e o abandono ao mundo virtual dos games de violência e do cyberbulling ao sabor comercial das quatro telas (cinema, televisão, computador e celular).

O currículo escolar está cada vez mais impraticável. A grade de cinco disciplinas básicas (Português, Matemática, História, Geografia e Ciências) vem sendo inchada com o acréscimo de Filosofia, Sociologia, Artes, Música, Cultura Afro-brasileira, Cultura Indígena... sem contar com a introdução de temas obrigatórios, tais como os Direitos da Criança e do Adolescente, Direitos dos Idosos, Meio Ambiente, Consumo Consciente e Educação para o Trânsito. A criança fica desencorajada de ir à escola e a evasão aumenta. Por que ao invés disso, não se fazem interações didáticas, evitando o estresse escolar? As novas tecnologias estão aí para facilitar esse tipo de adequação. Sinceramente, não há mais do que a necessidade de uma nova disciplina, que poderia ser "Ética e Estética", englobando filosofia, artes, música, cultura popular, culinária, religiosidade, modas e modos. Se em História não cabe cultura afro-brasileira, cultura Indígena e até sociologia é porque nossas fontes escolares precisam sair das deformações herdadas da história única.

Precisamos aliviar a escola, deixar de jogar para a responsabilidade escolar tudo o que a sociedade e o estado não conseguem resolver. Precisamos distinguir o que é eixo, do que é transversal e do que é satélite. Para completar, temos ainda ruídos pedagógicos como o "politicamente correto", que ao camuflar o mal deixa de fazer um bem do ponto de vista educacional; a onda das "oficinas de reciclados", que no anseio de reprocessar e reutilizar o lixo troca muitas vezes a exceção pela regra e deixa de reforçar a denúncia contundente ao desperdício; as publicações de preços baixos, sem qualidade de texto e ilustrações ruins, que abarrotam as feiras de livros e as calçadas das escolas em nome do acesso à leitura, e temos o paradidatismo, essa praga de produção de livros, apostilas, CDs e DVDs, nos quais a racionalidade burra do adulto acaba sufocando a sabedoria da imaginação.

Os efeitos colaterais decorrentes dessas situações repercutem diretamente na saúde, na vida social e no meio ambiente. Na saúde, afeta o campo psicológico (depressão, intolerância...) e o campo físico (distúrbios nutricionais e metabólicos...). Estudos do IBGE (2008 - 2009) revelam que um terço das crianças brasileiras, entre 5 e 9 anos, está acima do peso, e que muitas delas são obesas famintas, com diabetes adquirida. Na vida social, é notório o aumento da busca de satisfação, por meio do consumo de drogas, e o crescimento da violência, em casa, nas escolas, nos shoppings e nas ruas. Na relação com a natureza, é visível o desrespeito, a destruição e a desarborização crescente das cidades, vide o exemplo triste do que vem acontecendo com Fortaleza. (Continua na próxima quinta-feira, 09/09/2010).