quinta-feira, 24 de maio de 2012

Marketing da má nutrição - 24.05.2012



A obesidade e outras doenças crônicas decorrentes da má nutrição têm sido uma das preocupações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que vem intensificando o incentivo a programas voltados para a minimização desse problema mundialmente tão grave quanto a fome. Seguindo essa orientação a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) preparou um conjunto de recomendações de políticas adequadas sobre a promoção e publicidade de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças.

Apesar de prioritariamente dirigidas a governos, essas recomendações servem também para deixar alertas as empresas socialmente responsáveis e os consumidores cidadãos. No prefácio do documento, que acaba de ser traduzido para o português e publicado pelo Instituto Alana, de São Paulo, a diretora da OPAS, Mirta Roses Periago, diz que as crianças de todas as regiões do continente americano estão sujeitas à publicidade invasiva e implacável de alimentos de baixo teor ou nenhum valor nutricional, ricos em gordura, açúcar e sal.

Este é um problema que ultrapassa condições sociais e econômicas, atingindo ricos e pobres, porque é uma questão de deformação cultural, alimentada pelo insustentável modelo de vida permeado pelo marketing sem limites em todo o planeta, por força do interesse comercial das grandes corporações transnacionais. Os governos não gostam nada disso porque esse marketing da má nutrição faz aumentar os gastos públicos com saúde, repercutindo também na sustentabilidade ambiental.

A promoção e a publicidade influenciam nas preferências alimentares e padrões de consumo das crianças a ponto de enfraquecerem a eficácia do aconselhamento de mães, pais, educadores e cuidadores sobre bons hábitos alimentares, colocando as crianças em risco de obesidade. E quando fala em obesidade o documento refere-se à extensão desse fator de risco, projetada em doenças não contagiosas do tipo diabetes e doenças cardiovasculares.

A OPAS/OMS parece partir da premissa de que, ao ser tratado nos áreas social e econômica, o assunto produz convergências dos mais diferentes interessados em contribuir na busca de soluções. Pode ser, mas sinto falta de abordagens específicas nos campos cultural e ambiental, onde se poderiam trabalhar mais integral e sistemicamente os pontos críticos relacionados ao sensível e à natureza. De qualquer modo, a advertência para que sejam criadas e implementadas políticas de redução da exposição das crianças ao marketing da má nutrição é um passo importante para a diminuição de riscos para a saúde infantil.

Para equalizar o entendimento do seu propósito, a Organização Pan-Americana da Saúde esclarece bem o que palavras e expressões-chave querem dizer: "Promoção", por exemplo, refere-se a todas as técnicas de marketing que levam mensagens e apelos especiais às crianças, por quaisquer mídias e em quaisquer lugares que elas frequentam, como escolas, creches, bibliotecas, instalações recreativas, clubes e parques, assim como durante eventos esportivos e recreativos, voltados para o público infantil. Entram nesse escopo ainda as mensagens dirigidas a adultos, mas veiculadas em espaços e horários acessados por crianças, como nas salas de cinema.

 A palavra "Alimento" nessa discussão diz respeito tanto a alimento saudável quanto a alimento nocivo à saúde. Outro sentido de palavra realçado no documento da OPAS/OMS é a própria palavra "Criança", definida como pessoa com menos de 16 (dezesseis) anos de idade. E, claro, a expressão "Marketing de alimentos para crianças", entendida como "mensagens de comunicações comerciais destinadas a aumentar, ou causar o efeito de aumentar, o reconhecimento, apelo e/ou consumo de determinados produtos e serviços, inclusive tudo o que contribuir para anunciar ou de alguma forma promover um produto ou serviço" (Recomendação 7, p. 11).

Ao todo são 13 orientações que resumem a decisão de sensibilizar e envolver os países americanos, respeitando o contexto de cada um, na realização de políticas, processos e procedimentos de combate à publicidade, como influenciadora nas decisões de compras e indutora de preferências alimentares. A exposição exagerada da infância às mensagens repetidas e invasivas das empresas, que recorrem ao marketing para vincular emocionalmente as crianças às suas marcas, forçando a venda de seus produtos, contraria drasticamente as boas recomendações quanto a dietas alimentares para meninas e meninos.

Os setores econômicos alimentícios, de bebidas e de publicidade podem ter nesse documento uma fonte de consciência de parte das movimentações desfavoráveis ao marketing da má nutrição atualmente existentes no mundo e que dizem respeito diretamente aos seus negócios. Documentos como esse devem ser encarados pelas empresas como oportunidade para balizá-las com relação a condutas desejáveis e, no caso daquelas ainda adormecidas no velho paradigma do neoliberalismo, despertar para buscas associadas à cidadania empresarial e à economia verde.

A publicação traz inclusive situações de políticas públicas e privadas sobre marketing de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças no continente americano. Mostra que na América do Norte empresas canadenses procuraram elas mesmas definirem classificações de consumo e que, mesmo assim, o governo está examinando opções regulatórias para controlar o marketing de alimentos e bebidas para crianças. As agências estadunidenses estão preparando, com apoio do Congresso, um "jeitinho" de mercado para isentar de restrições esse tipo de marketing. Os mexicanos contam desde 2010 com o endosso oficial de uma emenda do Código Geral de Saúde, que reconhece os efeitos negativos da publicidade de "alimentos pouco saudáveis".

O documento da OPAS não apresenta registros de providências na América Central. Na América do Sul, os principais destaques ficam para o Brasil, onde desde 2010 existe uma regulamentação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) exigindo advertências em todas as formas de propaganda de produtos alimentícios ricos em gordura, açúcar ou sal; e para a Colômbia, que incluiu uma definição clara de obesidade em suas prioridades de saúde pública (lei de 2009), sob responsabilidade do Ministério da Proteção Social e do Invima (Instituto Nacional de Monitoramento de Alimentos e Medicamentos).

 O documento da OPAS/OMS apresenta aspectos da eficácia das políticas públicas e privadas já adotadas com relação ao marketing de alimentos e bebidas não alcoólicas para crianças. Algumas diretrizes monitoradas indicam que estão sendo cumpridas. Cita casos da indústria alimentícia na Austrália, Canadá, EUA e parte da Europa. No que se refere a cumprimento de normas, monitoramentos feitos na Irlanda, Espanha e Reino Unido demonstram nível elevado de cumprimento, como é o caso espanhol da restrição ao uso de celebridades em comerciais para crianças.
Com esses estudos o documento quer demonstrar que as restrições são viáveis na prática. Dentre os casos apresentados cabe compartilhar um estudo qualitativo encomendado pelo governo francês sobre os efeitos das mensagens nutricionais naquele país. O trabalho revela que mais de setenta por cento das crianças entrevistadas afirmaram que as mensagens nutricionais as fizeram prestar mais atenção à alimentação saudável, embora mais de noventa por cento delas tenham respondido que, mesmo assim, ainda pedem aos pais para comprar bebidas e alimentos anunciados.

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sábado, 19 de maio de 2012

A inclusão dos muito ricos


As grandes transformações sociais, ambientais, econômicas e geopolíticas em curso vêm, de "revestrés", colocando em pauta os mais distintos motivos para nada ser como antes. Os diferentes contextos não deixam de ter em comum o fenômeno da seleção artificial criada pelas desigualdades. Assim, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos amargam a crise dos governos endividados, o Brasil tenta aproveitar o momento para corrigir a sua desproporcional dívida social. Em ambos os casos, parece inevitável a necessidade de tirar os muito ricos da condição suprassocial em que se encontram.

Os muito ricos precisam de ajuda para perceber o quão é importante se integrarem à vida em sociedade, a fim de se beneficiarem dos relatos cotidianos dos outros e terem oportunidades de transitar entre imaginários individuais e alcançarem a renovação do olhar que poderá levá-los a transgredir os limites do próximo e chegar a si. É que os megarricos acabam isolados nos aviões de poucos lugares, nas casas de muitos cômodos vazios e, muitas vezes, não conseguem ter sequer a liberdade de pedir licença a outras pessoas por não levarem em conta o que quer que seja consentimento.

É preocupante a situação dos muito ricos nas circunstâncias atuais. À medida que o mundo busca formas de superação dos descompassos decorrentes da falta de freios da sociedade do consumismo, eles ficam reféns do diálogo interno corrosivo, como se não tivessem problemas reais a superar. E este é o grande problema que os distanciam da reumanização indispensável à modelagem de um novo padrão civilizatório. Os muito ricos somente terão chance de reintegração ao corpo comum da sociedade se saírem da riqueza extrema que os leva a serem tão marginais quanto os muito pobres.

Do jeito que a complexidade do mundo passa olhando de lado, está difícil alguém rico demais conseguir ser pelo menos cidadão. A cidadania é uma conquista, não pode ser simplesmente comprada. E o muito rico às vezes não sabe o que é a expectativa de voto do eleitor comum, já que ele pode até bancar uma eleição de uma vez, sem estranhar o fato de que, no atacado, a democracia perde o valor e o título eleitoral fica sem sentido. Depois fica a lamentar que não sabe a razão de nos novos padrões de comportamento terem perdido o poder de influência.

A grande indignação dos filhos dos muitos ricos é quando se descobrem clones da vida extra sociedade, uma espécie de exílio, onde a apartação lhes tira a utilidade social. Nem de leis eles precisam para não serem o que são. As leis são produtos de esforços de adequação da justiça ao estágio de desenvolvimento de cada comunidade, mas para muitos dos muito ricos elas não valem nada. Independem delas para fazer o que quiserem. Vivem presos à uma distinção supostamente incontestável e lei é para quem anda solto, para quem precisa dessa coisa de respeitar os outros, de ter limites, convenções e regras harmonizadoras da coletividade.

Tamanha idiossincrasia não pode ter vida longa em um processo de mudança agressivo, no qual a cada ocasião diminui as áreas de manobra para quem fica nos extremos, confundindo desejo com necessidade. Do mesmo modo que os muito pobres terão que deixar a linha de sobrevivência, os muito ricos só terão sossego se escaparem da linha de fogo das campanhas e mobilizações contra toda sorte de alienação. Por isso, os muito ricos precisam aprender a passar a vida a limpo. Os muito pobres têm que dar a volta por cima e eles, a volta por baixo, saindo da trágica posição de marginalidade que a um só tempo os distancia e os assemelha.

 No olho do furacão, como estamos nesse momento de intensificação das crises econômicas, dos modelos de estado-nação e dos desencantos institucionais, os muitos ricos carecem de alguma política afirmativa para reintegrá-los. A concentração severa de renda e de riqueza é uma roubada, um fardo muito pesado para ser carregado em um mundo tão desigual. Isso, sabe-se bem, não é novidade; a novidade é que hoje, as pessoas estão mais atentas, com mais canais de comunicação e mais bem informadas de como essa desigualdade abismal entre os muito ricos e os muito pobres foi construída.

Aquela figura do Tio Patinhas (Walt Disney) divertindo-se com dinheiro na caixa-forte não existe mais, até porque o dinheiro hoje é praticamente virtual e esse hábito de tomar banho com moedas e cédulas não passa de história das histórias em quadrinhos. O cenário disruptivo atual sugere que os muito ricos poderiam muito bem se contentar em ser apenas ricos. O excesso de recursos muitas vezes rouba o usufruto da riqueza e isola socialmente quem é muito rico. Sem contar que boa parte dessa concentração decorre de fatores que geram os muito pobres, tais como a corrupção, o cassino financeiro, a mentalidade de colonizado e os mercados de drogas e da violência.

A expectativa de redução da riqueza excessiva tende a ser um objetivo social dos novos tempos, mas, como nos tratamentos de dependência química, os muito ricos precisam querer encontrar alternativas para o tratamento funcionar. Enquanto os muito pobres temperam a fibra em gambiarras de toda ordem, os muito ricos a atrofiam por terem tudo. A oportunidade de viver em sociedade pode ser um bom propósito para quem se encontra nessa situação de riqueza incondicional. Este é um conflito desesperador e não é bom para a sociedade que os muito ricos se desesperem, como não o é também para os muito pobres.

Para aqueles que se decidirem por recuperar o sentido de coabitação do ser social, o que não falta é o que fazer. Ações como a contribuição para que se tenha mais áreas verdes, cultivos hidropônicos urbanos, ambientes públicos mais acolhedores, professores mais bem remunerados e respeitados, acesso a bens e serviços culturais de qualidade e o recolhimento de quantias relevantes para o sistema previdenciário. São ações como essas que podem ajudar os muito ricos a passarem a ter a calorosa sensação de fazer parte de uma comunidade, deixando o território periférico do autoerotismo para sentirem o amor do semelhante na sua diferença.

Com a estabilidade ameaçada, os muito ricos têm direito à inclusão. Alguns bilionários europeus e estadunidenses partiram na frente na busca de auto-inclusão e se posicionaram a favor de que os seus governos sobretaxem os muito ricos. Pelo visto, despertaram para o fato de que não dá mais para fazer de conta que toda a desgraça social e ambiental que está conturbando o mundo não é com eles. Argumentam que estão dispostos a repartir também os sacrifícios de superação da crise. Que seja instituída, então, uma tributação pesada a situações como a de rendimentos de dinheiros operados em paraísos fiscais e a lucros sobre capital virtual especulativo.

Diante da sedimentação de uma nova mentalidade, voltada para a sustentabilidade, muitos dos muito ricos estão ficando com vergonha de fazer parte dos estratos de exclusão gananciosa. É possível que seja mesmo constrangedor ter tanta riqueza e tão pouco contribuir para o fundo público. Como tudo no mundo, esse perfil sempre teve suas exceções, com pessoas que construíram ou herdaram grandes fortunas que decidiram meter a mão no bolso e patrocinar causas sociais, ambientais e de inovação do bem.

Não é a toa que megarricos, líderes de grandes corporações europeias e estadunidenses, estejam propondo a elevação de impostos sobre os ganhos e o patrimônio dos mais abastados. Pode até não ser bondade, apenas instinto de preservação, mas o que tudo indica é que a sociedade vem cobrando coletas especiais no bojo de suas fortunas. Terão os muito ricos respostas para essa nova realidade?

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sábado, 12 de maio de 2012

O lúdico e a autobiografia – Diário do Nordeste - 10.05.2012


O que faz uma pessoa ser única é o fato de ela ser formada por si e por muitas partes de outros. Assim é com todo mundo, embora isso não seja fácil de aceitar, em decorrência do receio que temos de ser tragados pelas nossas diferenças sociais, culturais, físicas e intelectuais. Mas, querendo ou não, só existe o "eu" porque existe o "outro" e as relações sociais. Quanto mais nos relacionamos, quanto mais compreendemos que o contato estabelecido entre pessoas faz parte da constituição do si, mais nos integramos plenamente ao contexto das transformações sociais.

A busca desse "outro" e do seu lugar na constituição do si acaba de ganhar dois caminhos de reflexões e análises, com o livro "Alteridade - o outro como problema" (Ludice, 2011), organizado pelas psicólogas Fátima Vasconcelos e Érica Atem e lançado na quinta-feira passada (3/5) no auditório da livraria Cultura em Fortaleza. Nessa perspectiva, o caminho do lúdico e o caminho da autobiografia são trilhados por mais de 20 autores e pesquisadores do programa de pós-graduação em Educação Brasileira (UFC) e de outras universidades brasileiras.

A reconstrução de experiências vividas, como forma de colocar na roda os diversos "outros" da nossa singularidade está na essência do primeiro e do quarto capítulo e é oferecida pelas organizadoras como linha mestra do trabalho. Ao tratar do fato de sermos como somos por resultarmos da interação com outros indivíduos, grupos, comunidades e civilizações, a linguista Maria Conceição Passeggi sintetiza a importância das narrativas (auto)biográficas nos esforços de problematização da alteridade. Afirma que "se formar" é levar a sério a reversibilidade do trabalho de reflexão sobre si mesmo, realizado durante o processo de "biografização" (p. 35).

Identifiquei-me imediatamente com essa abordagem, provavelmente porque o recurso da narrativa (auto)biográfica está presente em todo o meu trabalho, sobretudo na construção literária e musical para crianças. Mas o segundo e o terceiro capítulos me atraíram repentinamente por recorrerem às práticas do brincar na busca do entendimento das diferentes manifestações do ser-o-outro, como substância elementar do "eu", e da crítica aos exageros da racionalidade científica que, ao produzirem o discurso competente e incensarem os donos da voz, acabam perdendo a experiência do contato e a sensibilidade distintiva entre o que está no cognitivo e o que está na afetividade e nas emoções.

A ação comunicativa na cultura da infância ocorre na liberdade que a criança tem da aprendizagem imitativa e de evocar suposições para com elas assimilar o mundo e a vida social. Como isso se dá nas circunstâncias de simulação em que o outro é digital e o seu lugar de "circulação" é virtual, é o curioso e oportuno tema abordado pelas psicólogas Márcia Duarte Medeiros e Fátima Vasconcelos. Elas procuram depreender "como a subjetividade se organiza neste enquadre relacional" (p. 91) de experienciação mediada pela tecnologia digital, onde a identidade virtual (avatar) funciona como um segundo "eu" na instabilidade do "outro" e da própria comunidade de pertencimento.

Na interface digital das telas as autoras observam o quanto multiplicamos a nossa heterogeneidade mutante, por meio de possibilidades oferecidas pelos programas e aplicativos. Questionam se o faz-de-conta nos ambientes eletrônicos seria uma situação imaginária, ao abrigo dos efeitos da realidade, e se, nesses casos, a criança estaria apenas submetida à lógica da programação, ao contrário da sua condição quando em estado de jogo simbólico. Particularmente, penso que a criança sabe que é jogo e, preservada de exposições maiores do que as normais, também sabe que jogar é diferente de brincar. Nessa pegada, o livro vai refletindo e fazendo refletir, ora como "eu" e ora como "outro".

A afirmação dos ambientes de virtualidade como contextos socioculturais, "descartada a ideia de considerar os mundos virtuais como não-lugares" (p. 100), é uma solução metodológica de grande valor "netnográfico". Deste modo, ficou bem mais natural a realização da pesquisa de campo com indivíduos e grupos que frequentam ambientes virtuais. O que não bateu bem com a minha percepção - e aqui mais uma vez o livro exerce o papel dialógico do "eu" e do "outro" - foi a definição da internet como um lócus. A internet é um sistema de comunicação em rede e não um lugar. Afinal, os círculos de convivência acontecem em espaços como as salas de bate-papo, nas praças de encontros disponibilizadas pelas empresas de serviços de relacionamentos e nas estações de jogos.

Em "Alteridade - o outro como problema", encontramos recortes de pesquisas que entrelaçam o lúdico e o (auto)biográfico na produção de insights de interpretação da condição humana. Como para mim a alteridade, mais do que uma qualidade relacional de produção do si, é um ato virtuoso a ser perseguido na busca de alternativas sociais e ambientais para a pós-hipermodernidade, inclusive na aproximação da cultura com as mensagens da natureza (A consciência ecoplanetária, DN, 26/05/2011), livros como este do Ludice (Ludicidade, Discurso e Identidades nas Práticas Educativas), são fundamentais pelo que têm de perscrutador e de abertura para o debate.

Toda verdade é provisória e o bom da ciência é saber dessa verdade. Assim, Érica Atem pôde ficar livre para investigar aspectos da "aliança científica" pela "nova infância", organizadas no plano discursivo do enunciado "Dar voz a criança", flagrado por vezes em recrudescimentos adultocêntricos. A "criança cidadã", a "criança protagonista", a "criança testemunha" e "a criança ator social" (p. 181) são algumas das expressões decorrentes da pidginização do pensamento especializado sobre a infância. A autora questiona os diagnósticos e as prescrições que consideram apenas os efeitos produzidos por essa unanimidade: "a criação de políticas para dar voz à criança" (p. 182), e a moral racional de uma epistemologia pouco afeita à valorização do desejo, da empatia, da afetividade e dos sentimentos (p. 191).

Os riscos da guetificação do mundo da criança, sob apelos como "crianças por elas mesmas" e "propiciar que as crianças falem por si", postos por Érica Atem, abrem uma janela no ponto de alteridade em que, na sua investigação sobre memórias de brincadeiras, realizada na praia de Guriú, a pedagoga Maria da Glória Feitosa Freitas, constata que "as escutas das lembranças dos idosos e dos adultos informaram sobre um papel essencial do adulto nas práticas lúdicas infantis" (p. 79). Para enxergar outras possibilidades nesses discursos intercorrentes e multirreferenciais Érica propõe o deslocamento do enunciado "dar voz a criança" da sua posição de "resposta" para a de "problema" (p. 194).

A questão da cultura lúdica na educação, abordada pelo psicopedagogo Genivaldo Macário de Castro, chama a brincadeira como modalidade discursiva na práxis da docência, pela (auto)biografia dos próprios educadores, suas "experiências fundadoras e experiências formadoras" (p. 226). Essa conversa logo chega aos linguistas Benedito Alves e João Batista Gonçalves, que analisam as aplicações do termo "lúdico" nos documentos oficiais e seus significados voltados à estética, diversão, lazer e ferramenta didático-pedagógica (p. 118). E a socióloga Celeste Cordeiro critica "o abandono de outras dimensões humanas ligadas ao espírito da ludicidade" (p.74), reforçando que o tema é bom e urgente.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

O festival da América do Sul - 03.05.2012 – Diário do Nordeste


A decoração da esplanada que se estende entre o casario do porto geral e o rio Paraguai me dizia alegremente que a cidade tinha se preparado com zelo para a festa. Luzes, decoração em tecidos coloridos, fitas brancas caindo das árvores com pingentes e versos oferecidos ao público, dois palcos e tendas de artesanato das nações sul-americanas formavam o cenário de realização do 9º Festival América do Sul, realizado em Corumbá no período da quinta (26) a segunda-feira (30) passadas.

No Palco das Américas, Dino Rocha, o rei do chamamé, e Osmar da Gaita, davam o tom da musicalidade pantaneira, enquanto o grupo boliviano Sávia Andina retribuía o acolhimento com a música do altiplano. Corumbá, que em tupi-guarani (Curupah) quer dizer "lugar distante", assumia naquela noite linda de abertura do festival, o posto de capital cultural do continente e da arte da cidadania movida por música, teatro, dança, artes plásticas, cinema, literatura e artesanato.

O clima estava agradável, com pouco mais de vinte graus, para uma cidade conhecida por seu intenso calor de lugar com solo rico em calcário, situada no coração de uma reserva natural de planícies de áreas úmidas e alagadas. O calor em abundância naquela noite se resumia ao calor humano. Adorei saber que em Corumbá as pessoas se abraçam facilmente. A cidade de pouco mais de cem mil habitantes é bem cuidada, com ruas de paralelepípedo relativamente largas, um comércio que fecha ao meio-dia, mas que fica aberto até às dez da noite, e um patrimônio arquitetônico preservado dentro do possível.

O festival mexe com toda a cidade e a cidade funciona como sede do circuito de eventos que transborda à vizinha Ladário e às cidades bolivianas de Puerto Suarez e Puerto Quijarro. Corumbá está localizada no círculo geográfico central do continente, na região fronteiriça do Mato Grosso do Sul, estado que tem limites com cinco outros estados brasileiros (MT, GO, MG, SP e PR) e com dois países (Bolívia e Paraguai). A musicalidade e a dança popular nesse entroncamento cultural é rica em catira, polca, chamamé, rasqueado, caranguejo, sarandi, revirão, piriricão e muito mais.

No final da tarde tive o privilégio de ver um ensaio do coro, da orquestra e do corpo de baile do Moinho Cultural Sul-Americano, idealizado pela bailarina Márcia Rolon, presidente do Instituto do Homem Pantaneiro. Foi emocionante ver e ouvir meninas e meninos de oito a dezoito anos transcendendo pela arte à situação de vulnerabilidade social em que vivem. A peça apresentada recebeu o título de "Luna" e foi composta pelo maestro Leonardo Sá, numa construção de afetos e integração de linguagens, envolvendo as crianças e os adolescentes do projeto.
O movimento embalado pela encantadora "A cidade lunar", música associada à passagem da "Lua Nova", na peça de cinco partes regida pela sensível e diligente Noemi Uzeda, viúva do compositor, ficou em mim, está em mim, com sua evolução de força lúdica: "Era uma cidade/ meio ao norte/ meio ao sul/ tudo se dançava/ meio samba/ meio blues/ Olha, pensa, dança e conta/ 1, 2, 3, 4 (...) Vem ver como é linda a cidade lunar (...) A lua é norte/ a lua é sul/ a lua é samba/ a lua é blues". "Luna" canta as fases da vida, os ciclos do viver e o seu incessante conflito entre o que é permanente e o que é vaidade. Curioso é que o autor morreu (2011) logo após concluir esse hino-metáfora pela elevação da autoestima corumbaense.

Surpresa boa foi o encontro que tive com o performático Ricardo Kelmer (ex-Intocáveis Putz Band), com seu "irresistível charme de insanidade". Ele me convidou para o sarau que faria no dia seguinte, voltado para a "Vida, música e poesia de Vinicius de Moraes". Desconfiei se, tirando a parte etílica, isso daria mesmo certo, mas depois que ele me apresentou a cantora Vanessa Moreno, o violonista Daniel Conti e a produtora Célia Terpins, percebi que era valendo. E no dia seguinte fui me deliciar com o divertido show cênico-musical intitulado "Viniciarte". A plateia que lotou o pátio do moinho riu, aplaudiu e certamente, como eu, aprendeu muita coisa que não sabia sobre o poeta.

A sessão do "Quebra-torto com letras" teve lançamento de livros, debates e muita comida. Quebra-torto é o nome do típico café da manhã pantaneiro, preparado com paçoca (feita com carne seca no pilão), jerimum cozido, feijão, arroz-de-carreteiro, sopa paraguaia (bolo de milho, com queijo, leite, ovos, cebola, manteiga e sal), bolinho de goma e chá queimado. Era mais que isso, mas é disso que lembro. Para quem gosta de comer, a culinária do pantanal é bem farta em carnes e peixes. Um grupo de entidades vem trabalhando inclusive a filetagem de piranha para fazer sashimi.

Pouco a pouco, a cidade vai construindo um sistema integrado de cidadania a partir da arte. Na área de música já existem parcerias com instituições de Berlim (um dos mais influentes centros de cultura da União Europeia) e de Aveiro (cidade portuguesa de culinária maravilhosa, à base de frutos do mar, produzidos em alagados monumentais conhecidos como ria). O potencial das sonoridades pantaneiras é muito grande. Basta abrir as portas das salas de música do moinho que tem maestro regendo berrante, grupos de viola de cocho e um mundo a imaginar do que resultou da trama de culturas fronteiriças do Brasil de dentro, indo até as raízes ofaié-xavante, terena, caiuá e guarani.

O Festival América do Sul é um ambiente de circulação simbólica de um continente que, diante do novo redesenho geopolítico mundial, necessita de urgente integração plena, não só economicamente (Mercosul) ou politicamente (Unasul), mas no campo das experiências organizadas de cultura. Uma política continental que seja pensada e implementada com inspiração no diálogo cultural, mas articulada sobretudo dentro do que tenho chamado de cidadania orgânica. Algo que permita a constituição de pontos de vista claros sobre a condição de diversidade, interdependência e sistemas de valores éticos e estéticos presentes na função social da arte e da cidadania.

A experiência de Corumbá no estreitamento de vínculos e na relação de reciprocidade entre o Brasil e os vizinhos da América hispânica é um exemplo de que dá para fazer ou ir fazendo alguma coisa quando a sociedade chama para si a corresponsabilidade do desenvolvimento. O trabalho de consciência ambiental e de educação social pela arte, praticado pelo Instituto do Homem Pantaneiro e pelo Moinho Cultural Sul-Americano, em parceria com entidades e empresas locais e nacionais é uma prova disso. E tudo ganha expressividade quando há convergência de interesses públicos e privados na realização de eventos integradores, como o Festival América do Sul.

O conceito de encontro está impresso na programação. O público pôde ver no mesmo palco, no mesmo dia e na mesma hora, o cantor carioca (Paulinho) Moska e o cantor estadunidense-argentino Kevin Johansen; o acordeonista gaúcho Renato Borghetti e a cantora paraguaia Perla ou a viola caipira do sul-mato-grossense Marcos Assunção, o reggae e jazz da Orquestra Jungla portenha e a pegada sonora do cantor mineiro Milton Nascimento. Tudo entre palestras, exposições, oficinas, lendas e as charmosas sacolas de lonas reutilizadas de malotes de carteiros, com broches de libélulas de vidro reciclado pela Cooperativa Vila Moinho.