quinta-feira, 24 de junho de 2010

Uma geografia das figurinhas - Coluna Diário do Nordeste - 24/6/210


Dá gosto ver tantas crianças que não se conhecem, entrosadas pelo interesse de trocar figurinhas (...) Um papel-modelo no esporte significa companheirismo entre os pares e respeito pelo torcedor

Das boas movimentações advindas com a realização da Copa do Mundo de Futebol, a agitação das crianças para completar os álbuns de figurinhas destaca-se por seu potencial mobilizador, integrador e educacional. Mobilizador, por mexer com a meninada em encontros de trocas de figurinhas; integrador, por instigar o diálogo entre as crianças, destas com os pais e dos pais entre si; e educacional, por possibilitar o exercício da busca, além de agradáveis brincadeiras etnológicas e de geografia humana.

Em Fortaleza, na Copa passada, o ponto quente das trocas de figurinhas era a banca do Cabeça, na avenida Virgílio Távora. Pouco interessava se o lugar era apertado demais ou virado para o sol, filhos e pais se apertavam como podiam na permuta de figurinhas repetidas. Uma coisa que chama a minha atenção nesse jogo da troca é a confiança que as crianças têm ao entregar largadamente seus pacotes de repetidas umas para as outras. Em várias circunstâncias percebem-se pais reticentes com essa atitude virtuosa de meninas e meninos.

Na Copa atual, os pontos de troca de figurinhas se multiplicaram. As bancas de jornais e revistas continuam sendo as âncoras, mas em diversos casos o fuzuê não acontece mais no seu interior. Na Praça Portugal, a banca localizada logo em frente ao antigo BEC tornou-se um desses pontos. O cantinho é sombreado, tem o frescor das árvores ao vento e bancos para as pessoas sentarem. Um senhor com montes e montes de figurinhas facilita a busca dos interessados em vender ou trocar.

As crianças chegam com seus álbuns, pacotes de repetidas e gabaritos com a marcação das que faltam. Querem o goleiro de uma seleção tal ou o escudo que representa um determinado país. É impressionante como elas tratam da questão dos países com simplicidade. Citam nomes de jogadores e de seleções em diversas línguas. Fazem isso com a intimidade que a educação permite quando bem conduzida. O álbum da Copa na África do Sul está em inglês, mas traz o nome de cada país em diversos idiomas. E as crianças se divertem com isso. Chegam até a deduzir que em 2014, quando a Copa for ser realizada no Brasil, o álbum será em português. Quem dera, quem dera...

Outra banca que ganhou notoriedade nesta Copa, por catalisar trocadores de figurinhas, é a da parte mais nova do Parque do Cocó. Também sombreada, com espaço suficiente para filhos e pais interagirem e área de estacionamento mais generosa. O fluxo de trocadores de figurinhas naquele ponto tornou-se intenso. Lá também tem uma moça com maços organizados por número. Ela faz trocas e vendas na calçada, e, assim como o homem da Praça Portugal, é uma boa opção para quem está faltando poucas figuras e não aguenta mais comprar pacotes fechados com repetidas.

Dá gosto ver o entrosamento de tantas crianças que não se conhecem; entrosamento motivado pelo simples interesse de trocar figurinhas. É um acontecimento desinibidor e gerador de vínculos, pois em alguns casos trocam-se números de telefones para marcar novos momentos de trocas. Aliás, em termos de sociabilidade, a contribuição da troca de figurinhas é algo muito precioso para adultos e crianças, quer no apertadinho da banca do Cabeça e da que fica em frente à sorveteria do Juarez, na avenida Barão de Studart, ou nas praças e parques, onde há bancas de revistas e jornais.

Em casa, o momento de colar as novas figurinhas é outra experiência maravilhosa de integração entre filhos e pais. Nas primeiras sentadas, com o álbum ainda praticamente vazio, tratamos de ter à mão um globo terrestre. Cada pacote aberto que trazia um jogador de um país pouco conhecido, nos levava a procurar onde ele fica no mapa. É esplêndida essa viagem intercontinental pelo encanto do esporte, pela mística da Copa do Mundo. Os meninos revelam o que sabem de geografia e perguntam o que querem saber.

Conforme o álbum vai se completando, suas páginas começam a mostrar naturalmente a existência de seleções formadas basicamente por jogadores negros, outras por brancos, outras com atletas de olhos puxados e àquelas misturadas para mais ou para menos. A conversa que vem à tona com essas diferenças é uma verdadeira farra etnológica. Os países ganham vizinhos de características e são realçados em continentes, regiões e multipolos de um só planeta. Nessas horas, o ato de torcer é Jabulani, o nome da bola desta Copa, que quer dizer comemoração.

Depois do Brasil, é comum a torcida pelos nossos vizinhos latino-americanos. Até pela rival Argentina, quando esta joga com países de outros continentes, que não a África. As seleções africanas contam com a simpatia das crianças, talvez porque elas escutem constantemente que, depois dos times de seus países, a África torce pelo Brasil. Tem ainda a figura mítica de Nelson Mandela ajudando nessa simpatia, por representar a paz entre tantas notícias de guerras. Essa descoberta saudável de afinidades regionais e culturais é um tanto prejudicada pelos exageros que parte da mídia faz com relação aos argentinos, confundindo a noção de rivais no esporte com a perigosa e indesejável percepção de que eles são nossos inimigos.

Ao observar as conversas e ao conversar nesses encontros de trocas de figurinhas e em casa na hora de colar cada uma delas, página por página, seleção por seleção, indo e voltando, reforço em mim a compreensão do alcance do esporte como aglutinador da vida social, como animador de comportamentos sadios e como fonte de conhecimento da geografia humana mundial. Nem mesmo os interesses escusos, que podem manipular resultados em função da produção, divulgação e comércio de atletas tem sido capaz de sufocar essa grandeza do futebol.

O mais lamentável no mercantilismo aloprado de craques é o fato de não haver uma preparação psicológica do atleta-produto de exportação. É triste o desserviço que prestam à cultura e à educação atitudes medíocres de alguns jogadores da seleção brasileira. No amistoso contra a Tasmânia, após sofrer uma falta, um atleta brasileiro deu uma cotovelada desnecessária no jogador adversário que, até aquele momento, poderia tê-lo como ídolo. Fez isso provavelmente apenas por se sentir superior; quando a superioridade no esporte se dá pela arte do jogo, pela habilidade da perna invisível e pela eficácia das jogadas.

É certo que não há muito o que esperar de um time dirigido por um técnico de alma pequena, como o Dunga, porém, ao ter a autorização para levar o nome do Brasil e ser historicamente reconhecida como a melhor do mundo, a seleção brasileira tem a obrigação de preparar seus atletas para que tenham consciência do seu papel-modelo. E não é esse negócio de ficar dando uma de bom-mocismo, com marketing religioso, não. Assumir um papel-modelo no esporte é ter companheirismo entre os pares e respeito pelo torcedor.

Tudo isso aparece no jogo sem cartolas das figurinhas. Quando uma criança adesiva a imagem de um atleta na página do seu álbum, ela está fixando o que aquele jogador significa para ela. No momento da troca e da colagem das figurinhas percebe-se o tanto que os atletas têm contribuído ou não para a formação das nossas crianças. E a impressão que tenho é que, via de regra, o plantel da seleção brasileira, quando não dá maus exemplos, tem contribuído menos, mas muito menos mesmo do que tem o dever e a obrigação de contribuir. A esperança é que, assim como a decoração verde e amarela das ruas, os álbuns de figurinhas ainda continuam ricos e animadores.



quinta-feira, 17 de junho de 2010

Karina Buhr foge do vazio - Coluna Diário do Nordeste - 17/6/2010

De tanto ouvir em mp3 algumas músicas da compositora e cantora Karina Buhr fiquei curioso para conhecer o Cd "Eu menti pra você", no qual ela atualiza a agenda da juventude brasileira, fugindo dos padrões predominantes no mercado fonográfico nas últimas décadas. Com a chegada da Livraria Cultura a Fortaleza, consegui finalmente comprar o primeiro álbum-solo dessa artista pernambucana, nascida na Bahia e radicada em São Paulo. Depois de pegar na capa, de manusear o encarte e acompanhar faixa por faixa, em balanço de rede na varanda, posso dizer que valeu por esperar.

Na proposta artística de Karina o sentir é matéria viva. "Eu menti pra você" é um exercício estético que aproxima música de teatro. Em poética prospectiva ela põe em cena um estranhamento orgânico, sem próteses de gravadoras, para firmar e afirmar sensíveis reações vitais ao niilismo reinante. Com a delicadeza dolorosa do lirismo vangoghiano e a não higienização sonora do espírito rabequeiro, ela ascende a um contra-niilismo mais existencial do que representacional. Trabalha com ecos de ondas cerebrais em mobilização de sentimentos e sensações para cantar, não apenas com o corpo, mas com cada célula do seu organismo.

Karina canta baixinho, sem forçar os pulmões, sem querer mostrar que é cantora; canta com naturalidade, canta com sotaque. Foge do vazio da homogeneidade e entra em sintonia com o mundo múltiplo em construção, no qual nada pode ser mais cosmopolita do que um sotaque. Para enveredar na malha da música urbana, o que ela tem de mais denso e original é o fato de ser filha da cena pop e regional pernambucana, agitada pelo mangue beat, na qual brotou a Comadre Florzinha, banda liderado por ela, na renovação da música de raiz pela trama sonora popular. Contando, claro, com a bênção do frevo, na gandaia de ritmos do carnaval de Recife e Olinda.

Desprendida do mundo abstrato das velhas novidades, Karina Buhr, que também é atriz com passagem pelo teatro oficina, dá vazão a uma musicalidade tecida em versos dramáticos que oscilam entre o tédio e a expectativa de aceitação. Gosto de ouvir seu paradoxo de falar a verdade quando diz que mente. Com base emocional de prazer modulada pela experiência, seus caprichos, inspiração e centros de recompensas não só asseguram que especifique o que não quer, como recomendam que manifeste seus anseios e desejos.

Os arranjos do disco parecem acompanhar os sinais vitais de Karina na temperatura do corpo, pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória e na dor. Isso eleva o quadro clínico e artístico do cd "Eu menti pra você" ao patamar dos álbuns que têm clima próprio, o que é bom como plataforma para lançar o nome de Karina Buhr com letras maiúsculas na órbita legítima da música plural brasileira. O trabalho conta com o auxílio luxuoso de uma superbanda, formada por músicos de primeira linha, como os nossos queridos Dustan Gallas e Fernando Catatau.

A percepção essencialista da música de Karina nos leva a detalhes das áreas de manobras da vida e do viver, como um antídoto ao niilismo de uma época em que as pessoas se sentem existencialmente paralisadas diante das incontáveis possibilidades dos prazeres efêmeros. Com a força da sua fragilidade altiva, a cantora transmuda o que seria mal-estar, por deixar claro o que pensa, o que sente e o que quer. Ao encarar de frente a angústia e a desesperança ela foge do vazio, entregando-se de forma extremada ao seu corpo, sua mente, sua alma e à transvalorização do sentir e do amar.

A negação ao niilismo, enquanto ausência de valores, me parece bater no coração da música de Karina. Mesmo quando ela chama para si o ímpeto da razão desesperada, cansada de esperar, existe um querer em busca de realização: "Minha fúria odiosa já está na agulha / E um dia poderosa poderá dizer / Que acha tudo muito pouco". O mesmo ocorre com a faixa título, na qual ela questiona o pecado original e assume a mentira como alternativa as verdades desacreditadas: "Você não podia esperar ouvir uma mentira de mim / Que pena, não sou o que você quer de mim (...) Mas eu tenho ainda um grande amor pra te dar / Quero saber se você aceita". Com isso, ela matricula um valor e, embalada por um cupido travestido de trompete em batida de marchinha, supera o romantismo retardado para acordar com guitarras pesadas.

Outra característica que chama a minha atenção na obra de Karina Buhr é o aguçado espírito crítico, digamos, 360 graus, que ela revela ao romper com um estigma imposto à juventude; o estigma de que é possível ser capaz de tudo sem necessidade de ideais ou emoções verdadeiras. "Eu Menti pra Você" é uma proposta de amor, que nega a maneira superficial e possessiva de amar. A autora e intérprete fantasia a não-fantasia e assim desacomoda a cômoda proteção das tribos de afinidades eletivas. Em "Mira Ira", balada conduzida por piano, ela diz: "Tá tudo padronizado / no nosso coração / Nosso jeito de amar / pelo jeito não é nosso não".

Ela tem razão, está tudo padronizado. Até aquele romantismo de navegar na internet com referências próprias, procurando informações e procurando amigos, caiu por terra. Quer online ou offline, os hits da rede estão uniformizando o cotidiano mais do que a televisão foi capaz. A predominância é das informações de interesses dos controladores do sistema, que oferecem inclusive listas de amigos. Diante desta confusa realidade, Karina toca a maçante e repetitiva "Telekphonen", na língua do seu avô alemão, para mostrar o vazio de alguém que liga para seu amor, se conecta com quem ama, mas não sabe o que dizer.

Ainda dentro da veia satírica que pontua a obra autoral de Karina Buhr, vale destacar a "Ciranda do Incentivo", com a qual a artista faz ironia sobre os estereótipos que de certa forma passaram a nortear os editais da chamada economia da cultura: "Eu vou fazer uma ciranda / pra botar no disco / na lei de incentivo à cultura (...) mas eu não sei negociar / só sei tocar meu tamborzinho e olhe lá". Mais do que o sentido de dança de roda infantil, a palavra ciranda pode ser entendida também como grana que rola solta em algum sistema. O resultado é uma divertida ciranda funkeada, com base eletrônica, teclados e guitarras que, certamente, não seria contemplada pelas leis de incentivo à cultura.

A tragédia da guerra também está na pauta de "Eu Menti pra Você". Com a mesma inquietação de Edvaldo Santana em "Raios do Oriente Médio" (Reserva de Alegria), diante de "Sonhos e destinos que terminam antes", e com toques de ludismo que lembram o saudoso Gianni Rodari (Um bolo no céu) imaginando o dia em que fizerem bolos em vez de bombas, Karina tenta tristemente ninar as crianças das cidades iraquianas bombardeadas: "Não importa seus amigos anjos / nem sua vontade de comer um bolo / Dorme logo antes que você morra". Depois, passeando pela linguagem teatral e musical de Bertold Brecht e Kurt Weill, ela escarra o rock-marcial "Soldat".

A fuga do vazio, do niilismo, requer espaço para a individualidade, sem isolamento: "Você não esperava / mas eu esperei / e a gente se desesperou", canta em "Plástico Bolha", um reggae em pulsão de ska e frevo, que se complementa na balada dolente "Bem Vindas": "Nessa tarde que passa mansa / e despreocupada comigo". Karina quer andar, existir, cantar, "pular contra a vontade do chão", respeitando a resistência perfeita do corpo humano: "Se bate de leve dói, se bate de com força mata". Salve, Karina.



quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sacizada na Língua do Pê - 10/6/2010 - Coluna Diário do Nordeste

Dia após dia fico mais e mais encantado com o potencial revolvedor e renovador da brasilidade, muitas vezes ainda latente na nossa memória coletiva. O mais recente impulso que tive nesse sentido foi a experimentação que fiz, em parceria com o compositor e cantor Calé Alencar, de compor uma música para a Festa do Saci de 2010, toda na Língua do Pê. Com essa investida sacizística procuramos testar a força da inter-relação entre o que somos quando dialogamos com a nossa cultura e o que podemos ser quando devolvemos ao convívio social, especialmente nos centros urbanos, a prática lúdica do exercício do avesso e da criatividade da cultura da infância.

Unir o Saci e a Língua do Pê, cujas origens estão no ato imaginativo do Brasil profundo, ocorre-me como um denominador comum para crianças e adultos. Se o Saci tem em seus atributos o hábito de ser brincalhão, gozador e de gostar de dar alguns sustos também, a Língua do Pê, por sua vez, está atrelada à diversão das parlendas e dos trava-línguas e ao fascínio dos códigos secretos, utilizados tempos atrás pelas crianças e adolescentes na tentativa de evitar que curiosos entendessem suas conversas. Ambos apresentam, portanto, um vigoroso espírito lírico, satírico, poético e brincalhão.

Por acreditar que somos uma consequência dos nossos símbolos e que o mundo real é o que está em nossas mentes, entendo que revigorar representações simbólicas populares como o Saci e a Língua do Pê é uma maneira de valorizar e revitalizar a cultura de um País que tem muito com que contribuir na trama do diálogo local e global. Para ter uma visão mais clara de tudo isso, defini a "saciologia" como uma das ciências humanas, que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação; e defini a Língua do Pê, como a gramática da infância, estruturada em sons e grafias convencionadas pelo caráter do jogo.

O Saci, como o mais representativo dos nossos mitos, tem sido chamado a colaborar com as mudanças de mentalidade em curso no Brasil. Nos últimos cinco anos, dez cidades brasileiras já formalizaram o dia 31 de Outubro como o Dia do Saci, deslocando a caracterização meramente folclórica do personagem para uma integração mais direta no meio social e cultural: São Luiz do Paraitinga, São José do Rio Preto, Angatuba e São Paulo (SP), Vitória (ES), Poços de Caldas, Uberaba e Pouso Alegre (MG), Fortaleza e Independência (CE). Sem contar que o Dia do Saci está instituído oficialmente no Estado de São Paulo e faz parte do calendário oficial da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.

A tendência de ampliação das movimentações culturais e educacionais relativas ao Saci sugere que paulatinamente sejam agregados novos elementos proporcionadores de benefícios a essa força revigorante. A Língua do Pê é um desses elementos que têm tudo para produzir sinergias nesse processo. É bem provável que as crianças e os adolescentes, que utilizam hoje o internetês, como forma apenas escrita de se comunicar, se interessem por esse idioma à parte, ao descobrirem que se trata de uma cifra fonética ancestral, com a qual dá para escrever e falar secretamente. A assimilação se dará com mais intensidade e consistência se pais e educadores entenderem a Língua do Pê como trava-línguas, por conseguinte, como um recurso para melhoria de dicção e auxílio fonoaudiológico, facilitador da articulação das palavras.

Para falar ou escrever a Língua do Pê é muito simples, basta colocar o fonema "pê", depois de cada sílaba. O meu nome, por exemplo, fica assim: Flapavipiopó Papaipivapa. Em alguns casos, a unidade sonora puxa a consoante ou o acento. O sobrenome do Calé, por exemplo, fica assim: Apalenpencapar (e não Apalenpenca"r"par). O mesmo acontece com Pererê, que fica assim: Pepereperepê (e não Pepereper"ê"pê). Há situações em que a variação é opcional. Língua, por exemplo, pode ser escrita e falada assim: Linpíngupuapá ou simplesmente linpínguapá. Esse jeito nordestino de falar a Língua do Pê veio da península Ibérica, mas há regiões brasileiras que passaram a colocar o fonema "pê" antes das sílabas.

E então, foi recorrendo à rica e divertida Língua do Pê que o Calé e eu fizemos uma música para a Festa do Saci de 2010. O título ficou assim: "Sapacipi Pepereperepê". E a letra assim: "Epeupu tepenhopo upumapa / Copoipisapa paparapa lhepe dipizeper / Poporempém sopó popossopo lhepe dipizeper / Napa linpíngupuapa dopo pepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Sopó quempem fapalapa / Epessapa linpíngupuapa / Apa vepelhapa linpíngupuapa dopo pepê / Sapabepe bempem opo quepe epeupu dipigopo / Quanpandopo dipigopo apa vopocepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê".

Desde que não seja para fins comerciais, a gravação está disponível em mp3 no meu site www.flaviopaiva.com.br (basta entrar em "Novidades" que a primeira coisa que aparece é o link para baixar). A gravação de "Sapacipi Pepereperepê" foi feita dia 23 de maio, no Teatro Violeta Arraes - Engenho de Artes Cênicas, da Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, em Nova Olinda, a 550 km de Fortaleza, com técnica de Hamilton, Huguinho e Raniel. A sanfona do Adelson Viana foi gravada em Fortaleza, no dia 2 de junho, com técnica de Lauro César. Com arranjos coletivos e a participação integral do músico e pesquisador André Magalhães, a sacizada contou com Calé (voz, violão, percussão e arranjo de base), Adelson Viana (sanfona), Samuel Macêdo (guitarra), Aécio Diniz (baixo), Hélio Filho (bateria), André Magalhães, Jaime, Lucas Paiva e Luciana Martins (percussão). O coro infantil e a barulhada foi feito por Artur, Augusto, Diana, Lucas, Luciana, Maropim, Netinho, Raissa, Raniel, Regina e Yasmim.

Gravar em Nova Olinda, no Cariri, com o apoio do Alemberg Quindins, presidente da Fundação Casa Grande e das crianças e adolescentes que tocam o dia a dia da cultura nova olindense, deu uma propriedade especial ao trabalho. A Casa Grande vem há 18 anos desenvolvendo um dos mais significativos projetos sociais e econômicos lastreados na comunicação comunitária e na cultura. O município, que tem cerca de 13 mil habitantes, respira a capacidade efetiva da gestão cultural comandada pela juventude, em programas de memória, comunicação, artes e turismo, fundados na cooperação e na corresponsabilidade. Os jovens da banda e as crianças do coro não são apenas músicos, são pequenos cidadãos que utilizam a arte como instrumento de construção social.

No domingo à noite fomos ao teatro com os nossos filhos e no mesmo palco onde graváramos a música, vimos duas apresentações que excederam as nossas expectativas. A primeira, foi a exibição do "100 Canal", uma versão do antigo cinejornal da Atlântida, feita pela meninada, que exibiu os melhores momentos do torneio de futebol local, cujo jogo havíamos assistido no dia anterior. A algazarra da platéia com os lances mudou totalmente para o silêncio compenetrado, quando os atores-manipuladores Cléber Laguna e Márcia Fernandes, da Cia. Mevitevendo, de São Paulo, iniciaram a peça Zero, que fala de um certo Senhor Z, figura melancólica que perdeu a memória da infância e tem dificuldade de viver em um lugar onde não predomine a artificialidade.



sexta-feira, 4 de junho de 2010

Um pacto pelo sentido de cidade - 3/6/2010 - Coluna Diário do Nordeste

FOTO: Diário do Nordeste

Ver. Salmito Filho (PT) reunido com os vereadores antes da Sessão.

O futuro do planeta passa obrigatoriamente pela maneira como trataremos o desenvolvimento das cidades (...) O Pacto por Fortaleza, mais do que uma referência para a macrogestão, é uma expressão de maturidade política

O lançamento na segunda-feira passada (31/5) do "Pacto por Fortaleza: a cidade que queremos até 2020", pelo presidente da Câmara Municipal Salmito Filho (PT), reacende um velho desejo da cearensidade de pensar o futuro com equidade e paz. Em 1997, com a realização da Conferência de Busca do Futuro - Construindo o Ceará 2020, em Beberibe, a sociedade quis, mas o governo não quis; em 2007, com a promoção, também em Beberibe, do Fórum Ceará - Ideias para um futuro melhor, no horizonte de 2027, o governo quis e a sociedade não quis.

Com relação a Fortaleza e sua região metropolitana, em 1997 criou-se no ambiente do Pacto de Cooperação, o Planejamento Estratégico de Fortaleza, Planefor, com o objetivo de mobilizar a comunidade pela realização do seu sonho de cidade, como espaço articulado de referências comerciais, turísticas, industriais, logísticas, culturais e de serviços das regiões Norte e Nordeste. O Planefor reunia os governos municipal e estadual, entidades dos movimentos sociais, empresas, órgãos públicos e instituições privadas, organizações não-governamentais e cidadãos de espírito público.

As estratégias do Planefor foram desenvolvidas com base em cinco eixos temáticos: 1) Região metropolitana integrada; 2) Região metropolitana empreendedora e competitiva; 3) Educação para o desenvolvimento; 4) Sociedade solidária e gestão compartilhada; e 5) Cultura, identidade e autoestima. Diagnósticos e soluções foram levantados e apontados em todas as áreas, num total de 180 projetos. Aproveitou-se muito pouco desse grande esforço e o Planefor desarticulou-se quase uma década depois.

Movimentações de orçamento participativo daqui e debates de integração ao sistema nacional de cultura dali, o certo é que Fortaleza continua sem um conceito de cidade. Por isso, qualquer intervenção que precisa ser feita no nosso território urbano é sempre coberta de chiliques e tensões desnecessárias, a exemplo do caso do estaleiro do Titanzinho... será?, do Pirambu... será?, da Barra do Ceará... será?, da Praia do Pontão... será?. Este é um exemplo típico da fragilidade conceitual de uma cidade que vem crescendo e crescendo e crescendo irresponsável e desordenadamente.

É, portanto, muito bem-vinda a iniciativa do vereador Salmito Filho, de encomendar à Universidade Federal do Ceará para, com o apoio de entidades civis, produzir em seis meses (até novembro) estudos que norteiem os rumos de Fortaleza com base em cinco eixos temáticos: 1) segurança pública e cidadania; 2) desenvolvimento econômico e social; 3) qualidade de vida; 4) mobilidade urbana; e 5) resíduos urbanos e geração de renda. O pragmatismo dessa proposta indica que aprendemos a lição de que é preciso firmar os pés no chão antes de voar.

O Pacto por Fortaleza propõe antes de tudo uma busca da compreensão do sentido de cidade, por meio da convergência de interesses na elaboração de projetos e na construção de uma agenda comum que leve à articulação de esforços entre os poderes públicos e a sociedade. Com esse pacto concretizado, a Câmara Municipal estará oferecendo a Fortaleza uma base para um processo de gestão estratégica socialmente orientada, capaz de mudar positivamente a face da cidade, pela visão de longo prazo e pela criação de um novo ambiente urbano.

A ideia geral e as áreas-alvo me parecem adequadas para o momento. Acredito, porém, que o Pacto por Fortaleza poderia ter essa parte de misto de pesquisas acadêmicas com debate sobre a cidade que queremos, como uma etapa associada à validade do atual Plano Diretor (2018), como bem definido por Salmito Filho, mas, o pacto em si poderia referencialmente ter seu prazo um pouco mais elástico. Penso em um ano-símbolo como 2026, data em que a cidade completará 300 anos. Nessas estratégias de construção de cumplicidade, de apropriação cidadã, os recursos simbólicos tornam-se fundamentais para o sucesso de empreitadas como essa, que pode resultar em uma cidade bem planejada, com urbanismo decente, uso democrático dos espaços públicos, novas formas de organização social e cultural e com melhores condições de vida da população.

Tomando o exemplo de Curitiba, que tem um histórico reconhecido de cidade administrativamente bem resolvida, o programa "Cidades Inovadoras" está sendo feito em duas perspectivas complementares e convergentes: uma, conhecida como Projeto de Desenvolvimento Local, procura mobilizar e capacitar comunidades de forma que elas próprias construam a sustentabilidade urbana; enquanto outra, chamada de "Curitiba 2030", objetiva preparar a cidade para a atração de investimentos, numa parceria da prefeitura municipal, com o Sistema Fiep e a OPTI (Observatório de Prospectiva Tecnológica Industrial da Espanha).

O próprio projeto "Brasil em 3 Tempos", do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República foi estruturado considerando que as mudanças sociais desejadas e indispensáveis requerem um processo gradual. Lançado em 2004, os objetivos da Nação foram pensados em três datas referenciais: 2007, como início de uma nova administração (segundo mandado de Lula), 2015, quando ocorrerá a conferência das "Metas do Milênio", da ONU; e 2022, momento histórico em que serão comemorados os 200 anos da independência do Brasil. O "Brasil em 3 Tempos" também parte da definição de uma base social, cultural, econômica, territorial, institucional, ambiental e internacional como dimensões indispensáveis ao desenvolvimento.

Ao trazer à memória todas essas experiências de pactos, fico pensando se não seria o caso do Pacto por Fortaleza ser trabalhado em dois tempos. Uma primeira etapa, com a data de 2020 e com os cinco eixos que a UFC vai trabalhar; e uma segunda etapa, de consolidação das recomendações, culminando em 2026, no trigésimo centenário da cidade. Para essa segunda etapa eu incluiria dois eixos temáticos: um, voltado especificamente para a cultura como fator estruturante das relações sociais, considerando que a governança democrática da diversidade cultural (ao lado das dimensões econômica, social e ambiental) é hoje entendida mundialmente como o quarto vetor do desenvolvimento; e o outro, focado especificamente na mobilização social, tendo em conta que na geopolítica multipolar da atualidade, uma condição elementar de sobrevivência é a emancipação social.

O futuro do planeta passa obrigatoriamente pela maneira como trataremos o desenvolvimento das cidades. Então, a descoberta do que aspiramos para Fortaleza em 2026 e o que estamos dispostos a fazer por ela e por nós, tem no Pacto proposto pela Câmara Municipal um grande aliado. A reinserção da universidade nos processos de formulação, implementação e avaliação da ação política é também um ponto bastante louvável no intento capitaneado pelo vereador Salmito Filho.

O Pacto por Fortaleza, em um tempo ou em dois tempos, mais do que uma referência para a macrogestão da cidade, mais do que um feixe de políticas transversais, caracteriza-se como uma expressão de exercício maduro da cidadania, do pensar o coletivo de modo estruturado e da crença no esforço coordenado entre afins e contrários. Se não esbarrar apenas nos diagnósticos, esse pacto tem tudo para contribuir efetivamente para a revitalização da imagem de Fortaleza, como um lugar fundado no debate e na corresponsabilidade, que merece destaque por ser entreposto cultural, econômico e ecológico, mas, sobretudo, por ser uma cidade de valores multitudinários.