quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O Mali e a alma do deserto (final)

Flávio Paiva

Os levantes, ataques e bombardeios ocorridos no Mali fazem parte de disputas de poder que são internas e externas. O presidente interino, Dioncounda Troaré, que pediu ajuda internacional nos conflitos, não se entende com Amadou Sanogo, comandante da junta militar golpista, que está imobilizado pelo exército francês. A França, por sua vez, tenta afirmação política e militar na conjuntura internacional ao procurar comandar a operação, mas os Estados Unidos, também em crise de referência, não acham uma boa ideia. Ambos, assim como as demais potências europeias, sentem suas lideranças na região ameaçadas pela China, que vem avançando no país, dentro de uma paciente estratégia de ocupação da África.

A China é hoje o maior parceiro comercial do continente africano, ao qual vem expandindo investimentos na recuperação e montagem de infraestrutura de ferrovias, estradas, pontes, aeroportos, casas, hospitais, escolas, fábricas, sistemas de fornecimento de água e formação técnica agrícola e industrial. Transfere tecnologia e experiência de gestão, vende produtos, presta serviços, exporta gente e abre seu mercado aos produtos africanos, conquistando confiança e recebendo petróleo e diamantes, dentre outras contrapartidas. A paisagem pintada pelos chineses não é, portanto, apreciada por Europa e EUA, ainda em situação de abalo provocado pelos efeitos da desglobalização.

A última vez que EUA e França disputaram publicamente a coordenação de tropas na África foi em 2008, quando da insurreição ocorrida no Chade, país do centro-norte africano, onde há grandes reservas petrolíferas e um lago gigantesco de preciosa água doce. A França, do então presidente François Sarkozy (2007 - 2012), tentou liderar uma força internacional de países da União Europeia, a Eufor, mas fracassou. A despeito de razões geopolíticas e econômicas, tanto Sarkozy sabia quanto Hollande sabe que "guerra santa" e "guerra contra o terrorismo" são sempre um bom remédio para baixar a temperatura de pressão popular.

Nem todos os que falam francês são franceses, pensam ou sentem em francês. Somente no Mali, além da língua oficial francesa, grupos falam dogon, gozo, hassania, peul, songhai e tamachek. Na hora de uma guerra, sabe-se lá o que se passa por dentro da cabeça de cada um, inclusive nos seus campos de vínculos com a vizinhança. Nunca é demais lembrar que o mapa da África foi desenhado de fora para dentro e que o território da alma do deserto não se limita a essas fronteiras. A linguagem comum dos povos da região do Mali parece ser a arte e, entre as artes, a música ocupa lugar de destaque.

Os artistas do Mali têm demonstrado que não querem a desagregação. Eles se movimentam e cantam com profunda vitalidade em defesa da união no país. O Mali é um lugar encantador e arriscado, onde coexistem intensamente beleza, riqueza, devastação e pobreza. O regueiro Tiken Jah (Costa do Marfim) gravou a música "An ka Wili" (Vamos subir) convocando a população a se unir para não deixar que a guerrilha divida o Mali: "O país vai deslizar das nossas mãos (...) Cadê os descendentes do Sundiata?". O MC Soumy saiu com o rap "Sini kelle ye" (Amanhã é na luta) instigando jovens a se juntarem ao exército e às tropas francesas para lutar.

Diante da brutalidade estabelecida na guerra sangrenta pelo poder político e econômico, a arte incita as pessoas a escutarem a voz do coração. Foi aí que um grupo de mais de quarenta artistas da região vestiu todas as cores dos seus tecidos da terra e lançou o canto de paz "Mali-ko", em vídeo espalhado para o mundo pela internet desde o dia 17 passado. Os sentimentos de cantoras, cantores e músicos sobre a situação têm valor significativo para uma gente que vive a música como parte da sua espiritualidade.

Entoando a tradição do "blues" do deserto, a cantora Kaïra Arby convoca uma tomada de mãos pela paz. Fatoumata Diawara (Costa do Marfim) pergunta com em sua sensualidade o que está acontecendo para pessoas do mesmo sangue se matarem. E lembra que no dia em que os povos africanos se unirem o continente será mais forte. Em marcação de "hip hop", Amkoullel entra no diálogo reforçando o convite para que todos se deem as mãos e juntos sejam mais fortes.

O guitarrista e cantor Baba Salah saca a história no tempo de Sundiata Keïta quando o Mali "era o sol que iluminava os quatro cantos do mundo". E o cantor Soumaila Kanouté pede a palavra para dizer que "o Mali é indivisível". As cantoras M´baou Tounkara, Oumou Sangaré e Fati Kouyaté cantam pela preservação dos valores, contra o risco de jogar fora a história do país e para dizer que a guerra não respeita ninguém. A dupla Amadou e Mariam louva a força da união, o cantor Mylmo apega-se aos princípios legados pelos heróis do país, citando novamente Sundiata Keïta, e a bela Nahawa Doumbia encerra o canto evocando paz na África e paz no mundo!

Ao ver, ouvir e compartilhar o videoclipe de "Mali-ko" na internet, voltei a ler com os meus filhos o surrado livrinho "Sundiata - o leão do Mali", de Will Eisner, e tirei algumas horas para me deleitar com a coleção História Geral da África, volumes IV (org. Djibril Tamsir Niane) e VII (org. Albert Adu Boahen), Unesco/Cortez Editora, São Paulo, 2011, onde encontrei muito da incrível história do Mali, na condição de império da África Ocidental.

Estavam lá os dispersos grupos de comerciantes de ouro e de sal, as aldeias do rio Níger e o início das rotas transaarianas no século IX. A agricultura, a criação de animais, a metalurgia, as caravanas de mercadores de óleo de dendê, de cobre, noz de cola, marfim, algodão e o esplendor cultural e econômico de Djenné no século XV. Que fantástica mistura de lenda com história! A hegemonia do Sasso, entre os anos de 1180 e 1230, suas guerras contra os muçulmanos e o domínio da região pelo rei-feiticeiro Sumanguru Kante, com seu corpo invulnerável ao ferro, mas que tinha como ponto fraco não poder ser ferido por esporão de galo branco.

E o Sundiata, hein? O Sundiata era um garoto quando seu povo foi destroçado pelo exército de Sumanguru. Tinha paralisia nas pernas e, por isso, foi tratado com desdém. Anos depois reuniu grupos subjugados da região e comandou uma série de façanhas militares, derrotando Sumanguru e criando o Mali, em 1235. No poder, Sundiata definiu alguns princípios constitucionais para seu país e para os povos federados, com a codificação de alguns costumes e interditos que ainda hoje inspiram as relações naquela região. Teve a sabedoria de valorizar o violão tetracórdio (balafo ou dan) utilizado pelos contadores de histórias, que havia sido popularizado por Sumanguru. No seu governo, Sundiata Keïta adotou o canto conhecido por Boloba (a grande música), composto pelos griôs para ouvir e para dançar e criou as condições para o florescimento da matemática, da literatura e da arte.

O império do Mali só entrou em declínio depois do século XV com as grandes navegações, época em que dirigiu a atenção para o litoral, em negociações com portugueses que, dentre outras coisas, trocavam um cavalo por quinze escravos inimigos. Enfraqueceu, entrou em processo de divisão e, na segunda metade do século XIX, caiu na cota da França, quando as potências europeias ratearam o continente africano para todo tipo de exploração. Foram muitos os movimentos de resistência, mas o Mali, assim como quase duas dezenas de colônias francesas na África, só conquistou a independência em 1960. Hoje, com mais de um milhão de quilômetros quadrados e cerca de quinze milhões de habitantes, vive o paradoxo de, por um lado, ser acusado de entreposto de pirataria e, por outro, de ser uma das fontes de tendência de moda e da música internacional. Paz para o Mali!!!
 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Mali e a alma do deserto (I) - 24/01/2013

Faz pouco menos de uma década que passei a dar atenção especial ao Mali, país localizado ao sul do deserto do Saara, no noroeste africano, sem saída para o mar, mas contemplado pelas divinas águas dos rios Níger e Senegal. No sentido horário, o Mali tem fronteiras com Mauritânia, Argélia, Níger, Burkina Faso (antigo Alto Volta), Costa do Marfim, Guiné e Senegal. É um país fascinante, de gente que encontrou a beleza do humano na arte, na cultura oral e na imensidão do deserto.

A minha admiração por esse país começou quando comprei o livro "Sundiata - O leão do Mali" (Editora Schwarcz, São Paulo, 2004) para ler com os meus filhos e eles, assim como eu, imediatamente colocamos essa lenda africana, contada em quadrinhos pelo genial Will Eisner (1917 - 2005), entre as nossas preferidas. Lemos e relemos tantas vezes essa história e isso fez com que passássemos a notar mais as coisas do Mali. E esse país tornou-se um lugar com importância afetiva na nossa memória.

Na abertura do livro, Eisner conta que no início do século XIII as pessoas que viviam às margens do rio Senegal eram subjugadas por Sumanguru, o poderoso rei do Sasso. Explica que ao expandir suas conquistas esse soberano, com força militar e de feitiçaria, derrotou e passou a dominar um povo mercador de sal e de ouro que havia fundado, às margens do rio Níger, uma nação chamada Mali. Nesse misto de história e de lenda, um pequeno príncipe coxo foi poupado da morte por não representar uma ameaça ao poder que se estabelecia. Essa criança era o Sundiata Keïta, que viria a ser um herói nacional.

Depois de estar com os sentidos aguçados para a existência do Mali, comecei a descobrir que o compositor e cantor afro-pop Salif Keïta nasceu lá. Daí, escutando o blues violado de Ali Farka Touré (1939 - 2006), li na capa do CD que o sujeito era malinês. E veio a Oumou Sangaré, com sua pegada contemporânea e apelo ancestral, a Rokia Traore, em refinados arranjos vocais, e, mais recentemente, numa descoberta do Lucas (13) e do Artur (11), a dupla Amadou e Mariam. Ano após ano fomos dando de escutar acidentalmente cantadores dessa terra de contadores (griôs) e suas músicas ao passo e compasso das caravanas de camelos em tempestade de areia pelas dunas do Saara.

Abro certa vez uma revista na sala de espera de um consultório médico e uma reportagem cheia de fotos impactantes mostra que, desde 2001, acontece anualmente, no mês de janeiro, um evento musical no Mali, o Festival do Deserto, inspirado nas festividades dos tuaregues, pastores e comerciantes saarianos que, depois de temporadas nômades pelos diversos países que habitam, tradicionalmente se encontram num oásis do norte do Mali, para celebrações de dança, poesia e música, para beberem uns nas fontes de experiência dos outros, saciando a sede das trocas e munindo-se de informações para tomadas de decisões. Pouco tempo depois compramos o CD duplo "Desert Blues" (Rough Guides, Hong Kong, 2010), com três horas de música em 23 faixas contendo parte da narrativa sonora do festival.

O Festival do Deserto é formado especialmente por artistas norte-africanos e de países europeus que colonizaram o continente, mas é um evento aberto também à música do resto do mundo. Mesmo com endereço definido apenas por coordenadas de latitude e longitude, com temperatura diurna de 40 graus e noturna abaixo de zero, com palco em plenas dunas do Saara, sem estrutura formal de acomodações e acesso em carro tracionado ou no lombo de camelo, o evento ainda consegue juntar até dez mil pessoas para desfrutar das apresentações da música atemporal do deserto em diálogo com guitarras e programações eletrônicas.

Com o passar do tempo, fomos sabendo cada vez mais e por diversas fontes sobre as expressões artesanais e artísticas do Mali, nas joias de Timbuktu, nas cerâmicas de Segov, nas máscaras de Dogon e nos tecidos coloridos que dão o tom do país, no seu esplendor estético e na sua força simbólica. Assim como a música, tudo isso nos faz crer na grandeza da alma cultural malinesa. Na condição de grande produtor de algodão, o Mali foi além da economia, tecendo significados e valores em panos, por meio do tingimento em tintura vegetal e de desenhos em argila rica nas propriedades do óxido de ferro.

Das imagens emblemáticas do Mali, talvez a mais conhecida seja a grande mesquita de Djenné. Diz a história que esse templo, originalmente construído entre os séculos XIII e XIV, foi totalmente refeito no ano de 1907, quando o Mali já estava sob domínio francês. Essa fantástica obra de arquitetura, feita de tijolo de adobe com revestimento de barro e amarração de tronco de palmeira, representa a forte presença do islamismo naquele país. É um templo com as paredes da mesma cor do chão, situado em uma região de clima quente e chuvoso, para onde sistematicamente deslocam-se levas e mais levas de peregrinos que, em mutirão, refazem o seu reboco em forma de oração.

Observando esses sinais exteriores de arte, nomadismo e do valor das coisas móveis que parecem constituir a base da cultura do Mali, deu vontade de ir passar umas férias por lá. No ano passado (2012), chegamos a traçar algumas rotas, via Senegal, para conhecer o Mali e ver o Festival do Deserto, mas por motivo de segurança e de vulnerabilidade logística, acabamos desistindo. O noticiário dizia o tempo todo que estava havendo muitos sequestros de turistas e que a situação política do país era bastante delicada em decorrência dos surtos de violência ocorridos no país.

O pior é que, calejados com tantas informações desencontradas, a exemplo das fantasias e verdades relativas ao Iraque, ao Afeganistão e às mobilizações da Primavera Árabe, já não sabemos medir o grau de implicações dos fatos, em situações como essa do Mali, que envolve, de um lado, os interesses de grandes corporações transnacionais de petróleo, gás e urânio, e, do outro, o que seriam ações agressivas de revoltosos ou de extremistas ligados a redes de terroristas. O que tende ao certo é que o povo malinês está novamente condenado à violência atroz, sem ter um Estado ou um clã capaz de assegurar o mínimo de estabilidade política e social.

A possibilidade de desmembramento é real. Pode acontecer no Mali o que aconteceu no Sudão, com a criação do Sudão do Sul (2011) ou na Somália, com a separação da Somalilândia (1991), ambas envolvendo a interferência de exploradores de petróleo. Os insurgentes que querem criar o território de Azawad, no norte do Mali, são identificados étnico e linguisticamente como norte-africanos, enquanto são classificados de subsaarianos os grupos que mantêm o controle da capital Bamako. O Mali não tem riquezas naturais no jogo das cobiças atuais, mas é vizinho do Níger, onde está uma grande reserva de urânio, que fornece um terço do consumo das usinas nucleares francesas, responsáveis pela maior parte da eletricidade do país, e tem fronteira com a Argélia, cuja produção de gás natural atende a um quarto do consumo da Europa.

Nos últimos quatro anos, os EUA treinaram o exército malinês para combater os chamados "terroristas islâmicos" no norte do Mali. A iniciativa acabou em golpe militar que depôs o presidente eleito Amadou Toumani Touré (2012). Essa quartelada exacerbou os ânimos da rebelião separatista, acionando levantes comandados pelos tuaregues, que tomaram as cidades de Kidal, Gao e Timbuktu, as principais do norte do país. O poder militar dos separatistas islâmicos malineses foi reforçado com o retorno de guerrilheiros anteriormente lotados nas forças armadas de Muammar Gaddafi (1942 - 2011), na Líbia. E as milícias que tomaram o norte do país querem conquistar a capital Bamako. (continua na próxima quinta-feira, dia 31 de janeiro de 2013).

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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Educação para a cidadania



As transformações sociais, econômicas e políticas vividas pelo Brasil no momento atual requerem uma educação à altura do diferencial comparativo das suas riquezas naturais e culturais: uma educação voltada à construção de um projeto de país. Para isso, cabe ao sistema educacional brasileiro ser, antes de tudo, eficiente na formação das pessoas para a cidadania. Com as proporções alcançadas na atualidade pela educação tecnomidiática e digital, esse desafio está cada vez maior, mais complexo, mais indispensável e mais urgente.

Perguntas como "qual educação?" e "qual cidadania?" passaram a exigir constantes atitudes reflexivas da comunidade educativa, tornando impreterível o investimento na preparação continuada de professores. É o que vem fazendo com que Sobral, a 238 quilômetros de Fortaleza, ocupe lugar de destaque na educação nacional. Estive lá, no sábado passado (01/12), fazendo a palestra de encerramento do VII Encontro de Educadores (de 29/11 a 01/12/ 2012) do Projeto Novos Olhares, realizado pela Escola de Formação Permanente do Magistério (Esfapem), e posso dizer que é empolgante testemunhar esse misto de orgulho e comprometimento.

Tive a oportunidade de compartilhar com educadoras e educadores de Sobral e dos municípios da sua região metropolitana, que lotaram o auditório do Centro de Convenções, uma sequência de conceitos que venho esboçando a respeito das metáforas da modernidade, dos grandes atos virtuosos da humanidade e da cultura em 4D, como recursos educativos para o fortalecimento e a consolidação da "cidadania orgânica", conforme defino o estado de participação social no qual as pessoas dão relevância ao cotidiano pela associação das suas vidas à vida do planeta.

A atual crise de significados me faz recorrer ao dilema da incompatibilidade trágica, que nos impõe a necessidade de posicionamento "por suicídio ou por esperança?" na hora de fugir do absurdo, conforme refletido pelo pensador argelino Albert Camus (1913 - 1960), a partir dos traumas de quem sentiu na pele os presságios das guerras mundiais ocorridas na primeira metade do século passado. Assim como Camus, eu acredito mais na revolta do que na capitulação diante da inutilidade e da inconsequência de muitos dos nossos esforços em favor do absurdo no curso da hipermodernidade.

O primeiro movimento da educação rumo à cidadania orgânica é a atenção para a cultura nas suas dimensões de expressão do lugar onde a vida acontece, de respeito e valorização de quem a interpreta e refina, de criação de condições para a dinamização das trocas de saberes e conhecimentos nos mundos sociais físicos e virtuais, e de oferta de conteúdos e ambientes agradavelmente distintos para quem chegar. Na economia pós-crescimento, quando rico for quem tiver um pequeno pedaço de terra e quem conseguir momentos desconectados para a reapropriação seletiva do tempo, a principal matéria-prima será extraída dos conteúdos culturais.

A educação dos sentidos e das novas maneiras de ler e de atuar no mundo é uma plataforma para a coesão e para o bem-estar social. No frescor do tempo, a memória, a história e a expectativa de destino são janelas que se abrem e se fecham em constante ressignificação. A ética, enquanto habilidade de distinguir e procurar o bom, o decente e o agradável, é um atributo natural do humano, que precisa ser refinado. A moral, por sua vez, está ligada à conduta e ao modo de agir social, portanto, trata-se de um atributo do coletivo, que varia de acordo com as circunstâncias e os contextos culturais e históricos.

O êxito da formação do ser social para a cidadania orgânica depende em muito do aproveitamento dos atos virtuosos colocados em ação pela humanidade na sua longa e intensa aprendizagem evolutiva. O que chamo de ato virtuoso é a prática social da sensibilidade no que temos de melhor na nossa disposição para fazer o bem e para contribuir com a perpetuação da experiência humana. Um ato virtuoso não é apenas uma qualidade ou um sentimento, como a bondade, a solidariedade, a honestidade e o senso de justiça, ele surge com a interação efetiva do sujeito no dia a dia do viver.

Quando digo que a cooperação é um dos primeiros atos virtuosos da humanidade, refiro-me ao modo concreto como os nossos ancestrais descobriram que na companhia uns dos outros poderiam assegurar a sobrevivência e a perpetuação da espécie. Tão atual e tão primitivo é também o ato da tolerância. Não foi fácil suportar a diferença em favor da sociabilidade, mas avançamos e o relacionamento com alguém que possui necessidades, desejos e vontades próprias acabou contribuindo significativamente para a evolução.

Do interesse pelo outro nasceu o espírito solidário e a compreensão de que todos nós temos fragilidades que merecem ser consideradas. E quando essa atenção acontece, não pela tentação de se mostrar superior ou mais forte, mas pelo impulso sincero de desejar o bem, pode-se chamar esse ato virtuoso de generosidade. Como nas hipóteses do jogo simbólico da infância, a humanidade foi encontrando respostas entre erros e acertos. Fruto da cumplicidade e do anseio de compartilhar aspirações comuns acertou mais uma vez na descoberta do que intitulei de idealidade, ou seja, o ato virtuoso da consciência individual voltada para o coletivo.

O ato virtuoso da moralidade, sob o aspecto de condição essencial para reger os costumes, o da alteridade, considerada como recíproca à visão do próximo, e o da gentileza, enquanto a presença que estabiliza o outro complementam as sete invenções sociais que atravessam o tempo em aprimoramento e que continuam fundamentais à educação para a cidadania, nesses tempos de transmigração que qualifico como Baixa Modernidade, numa alusão à Baixa Idade Média, quando há cerca de cinco séculos a crise do modelo de produção e proteção feudal deu ensejo ao Renascimento.

Não houve ainda uma ruptura que alterasse a base dos fundamentos da modernidade. A incapacidade de ouvir o outro, o cientificismo e o excesso de racionalidade no ordenamento da sociedade ainda não sofreram descontinuidade. Por isso, uso a metáfora do "lenhador" para caracterizar essa baixa modernidade. O lenhador é um predador da flora, um destruidor da própria base de subsistência, um agente da insustentabilidade. Ao deixar o solo infértil e impróprio para o florescer da vida, a figura do lenhador assume a antítese do cidadão orgânico.

Como tenho a esperança de que daremos a volta por cima e que a tendência da humanidade será reduzir as práticas infecundas do lenhador para ampliar a germinação do que temos de melhor no aprendizado da humanidade, propus também a metáfora do ser humano para a era (ainda sem nome) que virá logo após a hipermodernidade: o lavrador. O lavrador seria ou será a sublimação do cidadão orgânico, por ser alguém que cultiva a simplicidade, que faz a semeadura do que é preciso produzir para viver, usando a ciência e a tecnologia em favor do usufruto pleno do que a vida nos oferece.

A educação para a cidadania orgânica é a cidadania do lavrador, onde quer que ela aconteça, sem restrições de territórios, classes, categorias, partidos, gênero, faixas etárias ou etnias. É a reaproximação da cultura com a natureza em um fluxo mental intuído e antenado, em rede, integral e integrado, experienciado, socialmente participativo e, acima de tudo, consciente de que ser rico é ser uma pessoa de valor. Tudo vivido com o que de mais genial a inteligência humana foi e é capaz de criar e com a sabedoria de que também somos animais naturais.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Roteiros de leituras do mundo - 22/11/2012



Dos bons frutos que colhi na safra da X Bienal Internacional do Livro no Ceará (8 a 18/11/2012), destaco como um dos mais saborosos e proveitosos o conjunto de livretos da coleção "Mundo da Leitura", do Centro de Referência da Literatura e Multimeios, do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), editada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). São 20 publicações com planejamento de práticas leitoras multimidiais, resultantes de um diálogo permanente e direto daquela universidade com leitores de várias escolas brasileiras, sobretudo gaúchas, catarinenses e paranaenses.

Orientada pela evolução de novas concepções de leitura e novos jeitos de ler, a coleção, intitulada "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola" (2010 e 2011), sugere abordagens para o despertar do gosto pela leitura em diferentes suportes e linguagens, com tratamento específico para os níveis infantil, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior. Recebi esse valioso presente das mãos da professora Tânia Rösing, que esteve na Bienal em Fortaleza participando do "6º Encontro do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado do Ceará".

No texto de apresentação ela expressa categoricamente a defesa que faz da leitura multimidial em espaços educativos e culturais: "Precisamos despertar o interesse dos leitores em formação pela leitura da música, da pintura, do teatro, da dança, da escultura, da arquitetura. Precisamos mostrar o valor das histórias em quadrinhos, das charges, dos cartuns, do grafite, formando públicos interessados nessas manifestações artísticas. Precisamos valorizar as manifestações da cultura popular, ampliando nosso conhecimento e nossa sensibilidade pela pluralidade de vozes em que se constitui a cultura em toda a sua complexidade e em toda a diversidade".

A produção desse roteiro pedagógico, incluindo os volumes do projeto "Livro do Mês" (2006 a 2011), com metodologia de leitura antecipada de obras com enfoques em mídias, dialogismo e relação leitor-autor, revelam uma consciência, presente na UPF, da importância do investimento em leitura, como condição indispensável ao desenvolvimento. Para Tânia Rösing, através da leitura, as pessoas podem alcançar gradualmente patamares de criticidade na condução de suas vidas e na atuação nos mais diferentes grupos e áreas sociais. Assim, sem receio de expor suas inquietações com relação a um assunto repleto de interrogações, a Universidade de Passo Fundo oferece esse roteiro no sentido da reflexão permanente pelo estímulo à vivência de experiências leitoras.

Além do trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Centro de Referência da Literatura e Multimeios, desde 1997, incluindo a produção do programa de televisão "Mundo da Leitura", veiculado nacionalmente pelo canal Futura, a equipe de responsáveis pelas propostas de práticas leitoras com distintos públicos e meios conta com experiências colhidas no maior evento brasileiro de formação de leitores, que é a Jornada Nacional de Literatura, realizada há mais de três décadas pela UPF, com apoio da Prefeitura Municipal de Passo Fundo. Com tudo isso, a professora Tânia, que fundou e é coordenadora da Jornada e do Centro de Referência, faz questão de dizer que essa é uma equipe que ouve bem, que está aberta a contribuições, numa clara atitude de quem faz para valer.

A educação do olhar, pelo estímulo à formação da memória visual e sua vinculação com a imagem que existe na palavra em si, é apresentada pela equipe de UPF no plano da leitura audiovisual para os primeiros anos do ensino fundamental, como maneira de instrumentalizar o estudante no seu processo de construção do conhecimento. O conceito trabalhado é o de encontrar o potencial do concreto e do virtual na relação entre o signo da língua escrita e sua transformação em bytes, entre o papel em branco e o monitor, a caneta e o teclado.

No anseio de conquistar leitores, partes desse importante roteiro apresentam displicência a respeito de questões relevantes, como a da publicidade voltada para a criança. O trabalho recomenda que o educador exiba peças comerciais para crianças como se estivesse apenas fazendo uma pesquisa qualitativa de opinião e não em uma missão educacional. No capítulo "Mãe, compra para mim?" o tema chega a ser mencionado, mas perde a chance de, por exemplo, chamar a atenção para licenciamentos e usos de personagens como mascotes de vendas.

Em uma das etapas propostas para o 3º e 4º anos, a título de mostrar como são feitos os filmes de animação, a metodologia pede para o professor literalmente "Exibir aos alunos o vídeo da propaganda da Coca-Cola...". Com tantos e tantos exemplos existentes de caráter anímico no audiovisual é difícil entender a razão da escolha dessa propaganda de açúcar líquido e gasoso, num país onde cresce a taxa de sobrepeso, obesidade e refluxo. Ademais, consciente ou inconscientemente, merchandising em material didático não é nada recomendado.

O "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola" da UPF abrange ainda, para estudantes do 5º e 6º anos, as histórias em quadrinhos, charge, cartuns, tirinhas cômicas e discute símbolos vividos no âmbito da cultura popular, de massa e acadêmica. Há espaço para a dinâmica dos saberes e do conhecimento, da sabedoria e da erudição. Ao mexer especificamente na temática do folclore, o material deixa a desejar um pensamento mais descolado do passado, qualquer coisa que pudesse aproximar mais as crianças das tradições e crenças populares, estimulando-as a vivenciarem esses mitos e não apenas a estudarem sobre eles.

No bloco de uso de diferentes mídias e criação colaborativa, destinado ao 7º, 8º e 9º anos, é muito bacana a noção da riqueza de convivência em grupo e da aprendizagem com o outro, compartilhada com a juventude. O mesmo tom efusivo faz-se presente na parte do ensino médio com enfoque na literatura fantástica. Sei que nem tudo dá para estar escrito em um trabalho que se propõe a oferecer tópicos a serem complementados no ato de seu uso, mas senti falta de referências comparativas em exercícios como o de "imaginar-se em outra época"; algo como paralelos da violência entre as cidades amuralhadas medievais e as periferias dos atuais centros urbanos.

Nesse ponto de alusões comparativas, acho que cairia bem expor determinados contextos e atemporalidades, como no caso das práticas de minicontos e haicais, dirigidas ao ensino médio. O miniconto é citado como uma literatura decorrente do "tudo tão rápido e fragmentado", mas sem uma perspectiva. E os jovens precisam de horizontes. Por sua importância, esse "Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola", precisa ser mais vórtice, mais roteador, mais sinalizador de rotas. A narrativa curta e criativa, do tipo 140 caracteres definidos pela empresa Twitter para conversação global, seria percebida com mais curiosidade caso, ao ser associada ao miniconto, pudesse fazer alguma ligação da hipermodernidade lipovetskyana com a tradição japonesa, na qual o haicai surgiu como gênero poético.

A coleção "Mundo da Leitura" tem ainda um caderno extra, orientado para o período do 1º ao 4º anos, e outro destinado ao ensino superior. Todos apresentam obras literárias embasando a discussão dos temas e suportes propostos. Grandes abordagens, como a combinação da literatura com a música no processo de aprendizagem, certamente ainda estão por ser trabalhadas e retrabalhadas pela equipe desse Centro de Referência da Literatura e Multimeios da atuante Universidade de Passo Fundo, que tem dado significativas contribuições à construção do conhecimento para a aprendizagem emancipatória. 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Muito além da obesidade - 15/11/2012


Tanto quanto nos seus aspectos nutritivos, o valor simbólico dos alimentos segue várias fases da evolução humana. A história da comida teve momentos de grandes impactos, como o intercâmbio de plantas e animais favorecido pelas navegações transoceânicas do século XVI. Foi essa excepcional movimentação marítima que tornou universal, dentre inúmeros outros, o trigo europeu, o milho americano, o arroz asiático e o café africano.

Essa permutação ecológica e cultural criou as condições para a variedade de ofertas de alimentação em todo o mundo. Mas não foi bem isso o que aconteceu. A industrialização nos centros urbanos fez migrar parte significativa da população do campo para a cidade, esvaziando as áreas rurais onde se produziam os alimentos. No século passado (XX), o domínio das corporações criou a ilusão do paladar unificado e da comida massificada, estorvando o potencial da diversidade orgânica.

A preeminência da cultura consumista estadunidense instalou no mundo um padrão de oferta industrial que somente nas últimas décadas começou a ser efetivamente desafiado por organizações da sociedade. A obrigatoriedade de informar nas embalagens dos produtos a presença de insumos que podem ser prejudiciais à saúde, tais como as gorduras trans, a quantidade de sódio, açúcar ou de adoçantes sintéticos, a indicação de organismos geneticamente modificados (transgênicos) é uma conquista muito recente.

A resistência de muitas empresas que insistem em tentar desrespeitar o consumidor tem gerado uma onda de desconfiança e o aumento da vontade de participar por parte da população. Mudam-se os sentimentos, os significados, os estilos de vida e as atitudes. E é nessa conjuntura que a diretora Estela Renner está lançando o seu segundo documentário sobre o tema. Estive presente na pré-estreia do seu filme "Muito Além do Peso" (84min, Maria Farinha, 2012), na segunda-feira passada (12) no Ibirapuera, em São Paulo.

O público compareceu. Faltou pouco para lotar os 800 lugares do auditório. Isso demonstra o tamanho do interesse das pessoas pelo debate sobre a obesidade na infância, proposto pelo filme. A produção do evento caprichou. Antes da exibição teve um maravilhoso bufê de frutas e sucos e a fala de Amit Goswami, pesquisador indiano que trabalha a física quântica na relação corpo e mente. Após projetado, o documentário foi discutido no palco com a participação de Frei Betto, do endocrinologista Amélio Godoy, da ativista Ann Cooper e da diretora Estela Renner, com mediação do VJ Cazé Peçanha.

O filme de Estela Renner vai direto ao assunto. Assume o partido da infância e tem êxito na opção pela retórica da revelação. É curioso ver como as famílias obesas ou com filhos obesos se dispuseram a contribuir com a realização dessa obra, relatando experiências da má nutrição assumida por elas. A consciência de que podem servir de antiexemplo denota um quê de altruísmo nessas pessoas. Com isso, a diretora certamente sentiu-se aliviada para expor naturalmente as crianças dos grupos familiares que participaram dos depoimentos. As demais crianças que aparecem em cenas contextuais tiveram cuidadosamente seus rostos embaçados para evitar identificação.

Ao patrocinar "Muito Além do Peso", o Instituto Alana oferta para debate uma síntese viva da problemática do sobrepeso na atualidade. Por isso, esse documentário é tão importante de ser visto por cidadãos, consumidores, empresários, adultos e crianças. Mesmo que ele mexa com os nervos de algumas empresas citadas, as mais antenadas não deverão reagir frontalmente ao que Estela Renner apresenta como fato inquestionável, sob pena de terem aumento de desgaste nas imagens de suas marcas e produtos. É uma oportunidade de o mundo corporativo reavaliar seu código de ética e de conduta.

"Muito Além do Peso" é uma peça de utilidade pública. Reflete uma aderência referencial e reverencial aos Estados Unidos. Não faz mal, afinal foram eles mesmos que nos incutiram a ideia de uma sociedade refém do "fast-food". A obesidade no Brasil ainda não está no nível de gravidade dos EUA, mas poderá chegar lá, caso não revertamos a taxa crescente de 33% de crianças com sobrepeso. Reservei, contudo, os meus vivas e palmas para as cenas e depoimentos incríveis gravadas por Estela Renner e sua equipe.

É impactante a imagem do supermercado flutuante da Nestlé, invadindo as águas amazônicas, todo adesivado com marcas e produtos da multinacional suíça para assediar as comunidades ribeirinhas. Causa impacto também a revelação da menina que adora batata frita, mas diante de uma batata natural arrisca dizer que é uma cebola. As falas são intercaladas por informações e imagens de efeito comparativo rápido, como a colocação lado a lado de produtos alimentícios e de copos contendo a porção de açúcar ou de óleo neles contidos.

Chocante também é o depoimento de uma ex-funcionária do McDonalds que é mãe de uma criança obesa. Ela conta da angústia que tinha ao ver sua filha acima do peso, enquanto trabalhava em uma empresa causadora desse tipo de problema para a sociedade. Declara que pediu demissão por não aguentar mais se sentir como se fosse um traficante de drogas. Outra mãe confessa que tenta convencer o filho de que determinado alimento não é saudável, mas fica sem saber o que dizer quando o argumento do filho é o de que se aquele alimento não fosse saudável ele não apareceria sendo comido por uma criança na televisão.

O filme apregoa que problemas de educação alimentar levam as crianças obesas a uma ameaça de morte prematura, constituindo-se neste caso a primeira geração de meninas e meninos com expectativa de vida menor do que a dos seus pais. O disparate é saber que muitas das crianças que levam frutas para se alimentar no intervalo das aulas as comem escondidas no banheiro, pois se forem vistas podem sofrer discriminação, considerando que, do ponto de vista de quem quer significar alguma coisa de qualquer jeito, os alimentos industrializados são tipificados como símbolos de distinção de poder de consumo.

Depois que as luzes se acendem, a lembrança da sala escura deixa o espectador de "Muito Além do Peso" sem chance de ficar indiferente. O filme tem a mesma força do documentário "Criança, a Alma do Negócio" (49min, Maria Farinha, 2008), no qual Estela Renner trata dos efeitos da publicidade no comportamento e nos valores das crianças. É uma espécie de continuidade. Ambos apresentam o viés intrapsíquico das pessoas que são vítimas de suas próprias dificuldades de superarem a condição de obesa, e o viés do indivíduo como parte de uma sociedade doente.

A pressão contra os fatores causadores de obesidade tenderá a aumentar, visto que não tem sentido crianças com trombose, dificuldades respiratórias, hipertensão arterial, aterosclerose, intolerância à glicose, diabetes, distúrbio metabólico e todas as doenças resultantes do limite trágico da obesidade. Sem contar com os problemas ortopédicos, como os psicossociais, tipo ansiedade, depressão e isolamento social, e da busca desnorteada de como encontrar alternativas para escapar do sedentarismo.

Estela Renner trata a obesidade como um problema de saúde pública, sem cair nas armadilhas estéticas do feio e do bonito ou em preceitos morais do tipo certo ou errado. Não é à toa que a parte mais emocionante do filme é quando uma mãe diz que acha o filho bonito de qualquer jeito, gordo ou magro. E afirma que quando se esforça para que ele perca a gordura corporal que tem em demasia é apenas para vê-lo sadio. Eis a dinâmica circular da existência, sinalizando que, na combinação da racionalidade com o instinto, pode estar em processo uma nova revolução na história da comida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O PT da outra margem do rio - 8/11/2012



Alex Antunes, agitador e produtor cultural paulistano, declarado militante do Partido dos Trabalhadores (PT), publicou na semana passada, na sua página do Facebook, o texto "Por que eu elegi Haddad contra o PT", no qual aborda as possibilidades simbólicas do momento paulistano, com a eleição de Fernando Haddad, como sinal de que a potência transformadora na política brasileira ainda passa por dentro do PT. O título é caricatural, mas na argumentação percebe-se que ele se coloca contra os políticos do partido que confundem voto e militância com "carta branca para a sua burrice e truculência". Por isso, assevera, associa-se aos que, como o ministro Joaquim Barbosa, protegem "o Lula do Lula" e "o PT do PT".

Na conversa com os leitores do seu artigo-desabafo, ele afirma que não consegue imaginar momento melhor para o partido e bate de frente com as correntes petistas que estão se movimentando para "salvar" alguns condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). "O Dirceu me estuprou, e estuprou meu voto, três vezes. Sem a menor piedade (...) não elegi o PT para a presidência para corromper (...). Elegi o PT para exterminar esses coronéis dos grotões psíquicos, e não para financiá-los". Procurei ler a mensagem de Alex Antunes como uma advertência que reforça a atitude do eleitor brasileiro nas eleições (prefeito e vereador) do mês passado. O resultado concreto desse posicionamento é que o PT cresceu no Brasil (14%), mas perdeu onde, salvo raras exceções, a insensatez dos seus líderes locais vinham levando o partido à autodestruição.

O que me fascina no eleitor brasileiro é que, mesmo acossado no labirinto das desinformações e bombardeado por más intenções de pesquisas muitas vezes manipuladas, ele apresenta comportamento desviante, alterando intuitivamente os arranjos de quem quer que esteja no poder. Assim, o Brasil avança nesse incrível fenômeno que tenho chamado de democracia empírica. Nessa democracia à brasileira, o eleitor não se coloca a favor ou contra a corrente, nem orientado pela busca de margem direita ou de margem esquerda; ele atravessa um rio a cada eleição para ver o que há do outro lado. Pena que se pense e se discuta tão pouco sobre isso. Uma boa compreensão dessa sabedoria da miscigenação poderia elevar os nossos políticos ao nível dos eleitores.

Nesse sentido, a situação atual do Partido dos Trabalhadores é propícia ao que Alex Antunes chama de "refundação psíquica do PT", uma nova atitude partidária, na qual o "PT pare de tropeçar nele mesmo. Porque o PT não é dos petistas, o PT é do Brasil, o PT é do mundo". E ele carrega no tom da voz: "Na verdade, eu que peguei filiações para o registro definitivo do PT de porta em porta, nos bairros de São Paulo, para mudar o Brasil e o mundo, é que sou o DONO do PT, não o Zé Dirceu, que tentou roubá-lo de mim. Pois agora eu vim reclamá-lo (...) Por isso que eu votei e fiz campanha para o Haddad (...) Honrando sua condição de signatário do manifesto pela refundação do PT, ele fez um discurso de eleito que emitiu TODOS os sinais corretos sobre o significado de sua vitória".

A presidenta Dilma Rousseff tem dito desde o início do seu mandato (2011) que não vai "admitir malfeito" da parte de quem quer que seja. Logo no primeiro ano de governo afastou uma meia dúzia de ministros, inclusive o então da Casa Civil, Antonio Palocci, tão poderoso e petista quando o José Dirceu, que ocupou o mesmo cargo. A ministra Gleisi Hoffmann, senadora que está atualmente na Casa Civil, diz claramente que o partido está iniciando o resgate da sua credibilidade: "Já passamos uma fase muito mais difícil. Eu diria que o PT está vivendo uma fase muito boa. Está num governo bem avaliado, que está oferecendo ao povo brasileiro respostas importantes a seus problemas. Mesmo numa crise mundial, o Brasil tem tido resultados importantes na economia, na geração de emprego. E ter uma presidente que é petista com a avaliação que tem, e ter tido um presidente que saiu com a avaliação que saiu" (Folha de S. Paulo, p. A6, Poder, 29/10/2012).

Ao ser indagada sobre as críticas e as contestações que parte dos petistas está movendo contra o julgamento do Supremo e em prol dos condenados, com patéticas ameaça de denúncia do STF em organismos internacionais, a ministra é taxativa em sua posição: "Nós podemos gostar ou não gostar de como as coisas se dão, mas nós temos que respeitar resultados e instituições" (Idem). Muitos militantes e políticos que não se envergonham de situações patéticas como a emblemática cena dos "dólares na cueca", que ainda estão com a tentação de desonestidade no armário ou que não entenderam a necessidade de amadurecimento do partido, podem até achar ruim e desnecessário esse debate, mas, querendo ou não, esse assunto é importante para o PT e para o País.

Anos atrás, quando estourou o escândalo do "mensalão" (2005), houve, por parte de pessoas que sonharam e lutaram por um partido diferente, uma reação de inconformismo em vários setores do PT. Uns ficaram tentados a deixar o partido e outros debandaram logo. Embora não sendo filiado ao PT - como nunca fui nem sou ligado a qualquer partido político - defendi que seria um erro largar o partido à insolvência. Naquele momento, a convite da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital) e do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), estive reunido algumas vezes com petistas e simpatizantes do PT, para argumentar que, apesar de tudo, o partido tinha lastro histórico para pagar a dívida que moralmente passava naquele momento a ter com a população brasileira.

Naquela época, procurei refletir o escândalo do "mensalão" como uma oportunidade de aperfeiçoamento dos princípios e práticas de um partido que aprendia a sair da condição de denunciador para a obrigação de fazedor. Agora, por ocasião do julgamento do "mensalão", reforcei em mim a convicção de que, independentemente das circunstâncias e dos interesses que o conduzem, o efeito dessa ampla audiência coletiva e pública simboliza uma "expressão de passagem para um novo ciclo de renovação política" ("O julgamento de Macunaíma", Diário do Nordeste, 18/10/2012). Não há mais espaço para o tipo de heroísmo dissimulado, revelado no palco do teatro do "mensalão": "Vivia deitado, mas se punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém", como está escrito logo na primeira página do livro de Mário de Andrade (1928).

Na condição de autor de uma crônica aberta à conexão de pontos de vista, nos últimos dias tenho trocado ideias com leitores sobre as críticas de que sou benevolente com relação a Lula. Encontrei na mensagem de Alex Antunes uma boa resposta para isso e deu vontade de compartilhá-la. Em síntese, ele também poupa Lula por considerar que "fora seus desvios egóicos", o ex-presidente tem um papel "mágico" nesse processo. E como tem. Porém, o debate não é por aí. No contexto atual do PT e do País, renovar, resgatar e refundar é mais do que faixa etária, tempo de filiação e volta ao passado. Pelo bem e pelo mal, o PT é um produto cultural do Brasil, o que leva as discussões sobre o partido a não se restringirem a dirigentes e militantes. O desafio posto é o de como lidar com o tempo político brasileiro e a maturidade do partido, entre teorias, abstrações e as mensagens realistas das urnas.

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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Catarse literomusical criativa - 11/10/2012


A vida de um compositor que teima em viver de trabalhos autorais passa por uma existencial oposição recíproca entre as perspectivas oportunizadas pelas novas tecnologias e a dificuldade de pagar as contas no final do mês. Muitos desses artistas já não conseguem saber se correm ou se ficam para serem comidos pelo bicho da competitividade e da fama. É o tema do livro-CD "Na Lojinha de Um Real Eu Me Sinto Milionário", do compositor e cantor paulistano Paulo Padilha (Borandá, 2012), produção autobiográfica que inclui um pouco de vida alheia, como a da cantora que fingia ser sua própria produtora ao tempo em que entregava pizza para reforçar o orçamento (Soube, p. 19).

O tom desse trabalho de Padilha é o sentimento de inutilidade e teimosia presente no cotidiano do músico brasileiro que se vê pressionado por padrões de ofertas inclusivas de consumo, mas destituídos de qualidade no processo de discernimento. E ele canta: "O balanço tá bom só que eu não me encaixo" (Partido Baixo, p. 25). O autor demonstra total compreensão de que vive numa espécie de tempo errado e, sem saber como consertar essa realidade, trata de regurgitá-la numa catarse literomusical criativa.

O livro-CD de Paulo Padrilha é cômico e perturbador em sua função de espelho, diante de um compositor que samba os seus sentimentos e dificuldades sobre parte significativa da situação atual da criação artística. Relato sonoro, literário e visual, feito na primeira pessoa de um artista que vai transformando o cotidiano em canções e crônicas intersemióticas cheias de provocantes revelações de uma vivência marcada por toda sorte de pressão psicossocial que aflige a quem tudo pode ser delegado, por "passar o dia fazendo música" (Todo tipo de tarefa, p. 26).

Em formato alternativo dos anos 1980, a publicação recontextualiza a estética de "Somos todos assassinos", antológico livro independente do escritor mineiro Sebastião Nunes, que escracha o lado obscuro da produção publicitária. Paulo Padilha trilha a mesma ironia de um mundo no qual o dinheiro está na base das relações entre as pessoas e expõe seu olhar musical na cadência de variadas ilustrações com textos de máquina de escrever, imagens recortadas, estampas rebaixadas e, como não poderia deixar de ser, a reprodução da moeda e da cédula de um real. Na advertência grafada na página de "copyright", o espírito da coisa: "Use o bom senso. Se é para curtir e divulgar, pode espalhar! Se vai faturar, é bom pagar!"

Nessa vida de quem vive a compor até em fila de banco, às vezes o artista fica no desamparo: "Eu bato o escanteio / Corro pra cabecear / Eu mesmo faço a jogada / Sento na arquibancada e grito gol! / Toco pandeiro, frevo, samba, rock, funk, soul / Armo o circo, vendo ingresso, e vou assistir o show" (Escanteio, faixa 6, p. 21). E para quem abandona o barco, trai a causa, pula do bonde, tira o time e deixa o sujeito sem clima, ele manda um refrão encolerizado: "Vai te catá, vai te catá / Que tem, vai, vai / Vai te catá, vai te catá / Que tu tem, vai, vai" (Idem).

A situação não é nada fácil para quem se acha incompreendido e sonha com um drummondiano "mundo, mundo, vasto mundo" apreciando a sua criação. Na faixa-crônica 1, "Eu e minhas ideias geniais", o autor faz uma fala em reggae, como um cantador que recebe um mote para um xote. Ataca de Itamar Assumpção, inclusive convidando as cantoras Suzana Salles e Vange Milliet para um coro na pegada "Isca de Polícia". Como as coisas não funcionam assim, ele, na liseira, acaba viciado em telefonia, como descreve em "Pré-Pago Pai de Santo" (faixa 10, p. 31), para a qual contou com o auxílio luxuoso da Mart´nália.

Numa e outra de ficar inventando coisa, ele caiu na besteira de calcular quantas músicas cabem em equipamento de armazenamento digital e isso só contribuiu para aumentar sua angústia ao chegar a conclusão de que "Seriam necessários 34,3 metros lineares de estantes para armazenar 3.428,5 LPs e aproximadamente 9 anos, 4 meses e 26 dias para ouvir todas as canções de um tocador de mp3 com 120 GB" (p. 49). A pior conclusão estava por vir: se ouvindo um velho long-play por dia, sem repetir uma só faixa, a pessoa precisaria de uma década, não há muita razão para alguém fazer novas canções. Isso pode até ter algum fundo de verdade, mas, diante de tal constatação, a dúvida que surge para o compositor é o que ele vai fazer com o seu impulso criativo.

Tendo ou não quem vá ouvir, conseguindo ou não viver de música, o que Paulo Padrilha mostra nesse trabalho é que o compositor à vera é aquele que nunca entrega os pontos. Foi assim quando ele levantou o astral ao entrar em uma dessas pequenas lojas populares de preço único : "Na lojinha de 1 real / Eu me sinto um milionário / Vasculhando corredores /Escolhendo escorredores de prato / Cores sortidas, baixelas de plástico / Fala, filhinho / Fala o que você quer / Pega o brinquedo / Pega, eu insisto / Filosofia de hoje / Compro, logo existo" (Lojinha de 1 Real, faixa 2, p. 7). Neste samba, o compositor experimenta a sensação de "eu posso" atender a vontade do filho, cujo comportamento foi moldado pelo mercado de consumo.

Muito boa também é a crônica-canção em que o autor revela o quanto gostaria de ter a oportunidade que têm os autores de livros de autoajuda. "Sempre olho aquelas gôndolas com CDs e livros de autoajuda e fico pensando, puxa, será que algum dia terei a honra de estar aqui, dividindo o espaço com essas maravilhas da cultura de massa?" (Guia fácil para lidar com pessoas difíceis, p. 9). É o compositor em situação de exílio, de desencanto, de cara com aquele vazio da solidão de Caetano, em London, London, um vagar atento, enquanto as pessoas parecem passar apressadas com suas dores silenciosas. E o compositor fica indignado por transformar tudo isso em canção, esse "serviço sujo, que não enche a barriga dos meus filhos, q não alivia o trabalho da minha mulher, q não paga o salário da empregada, que não paga escola"... (Idem).

O pior é que ao comprar o guia na banca de jornal, ele descobre que a autora é sua mulher, aquela que consegue aguentá-lo, que tanto o atura, investiu na literatura. "Pois é... não é fácil casar com um compositor. No começo é lindo. Ele faz uma canção pra você. Suas amigas morrem de inveja. Depois começa a fazer canções pras suas amigas, com o pretexto de não magoá-las" até o dia em que, dizendo que se inspirou na história de um amigo, faz uma música para a sogra: "Minha mulher / Tá cada vez mais parecida com a minha sogra / Salga a comida, o joelho não dobra / Dorme na frente da televisão / Tá engordando, anda arrastando o chinelo de dedo / Ai meu Deus, eu tô com medo, / De enfrentar a situação" (Eu sou ela amanhã, faixa 4, p. 12). E conta conta que no começo a sogra estranhou a canção, mas quando viu que fazia sucesso nos shows, passou a pedir: "Paulo, toca aquela que você fez em minha homenagem!" (p. 13).

Na vida de compositor, essa confusão toda deixa o indivíduo com insônia e ele começa a maquinar uma forma de ter alguma serventia. Na madrugada lenta só pensa em deliberar sobre algo, em ter a sensação de utilidade. Imagina alguém implorando por uma canção, de modo que pudesse furar todos os prazos de entrega, como fazem os carpinteiros, os encanadores, pedreiros, jardineiros, técnicos de computadores, médicos, dentistas, advogados e prestadores de serviço em geral. Tem um tipo de devaneio como o da "Jenny dos piratas" de Bertolt Brecht e Kurt Weill que, ao limpar as mãos no avental inspirava a convicção de que um dia seria arrebatada por um navio de sedutores cinquenta canhões.

Em seu desejo de ser tão necessário, o compositor toma uma atitude concreta e serra as pernas da mesa e o braço do violão para fazer uma mesa de centro de sala para a festa de aniversário dos filhos. E confessa: "Fiz tudo com consciência / Paciência e determinação / Com a ciência de um bruxo / Num ritual de mutilação / Movido por um impulso / Que gritava dentro de mim / Preciso cometer um ato / Com começo, meio e fim" (Serrei as pernas da mesa, faixa 5, p. 15). À noite, os convidados fazem comentários elogiosos ao móvel... "E la nave va", nesse enredo feliniano que dá sobrevida à criatividade nesse funeral que pode até parecer, mas certamente não é da literatura nem da arte.