quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Narrativas do Brincar (final) - 9/9/2010 - Diário do Nordeste

Quanto custa para a saúde, para a assistência social e para o meio ambiente a nossa omissão com a infância? Quantas crianças poderiam ser um pouco mais felizes e se tornarem adultos mais conscientes se tivessem a oportunidade de brincar pelo menos em uma brinquedoteca de praça? Em quanto sangram os cofres públicos por falta de cuidados que comecem na hora do crescimento pelo brincar? Quanto economizaríamos em clínicas, hospitais, reformatórios, presídios e apagamentos de incêndios florestais e psíquicos se parássemos de apostar na infelicidade individual e coletiva? Onde está o lugar do Estado em tudo isso? Quais as ações dos poderes públicos, em articulação com a sociedade civil, que poderiam viabilizar o espaço público do brincar?

Percebo duas vertentes prioritárias e factíveis nesse sentido. A primeira é a qualificação dos logradouros públicos (praças, ruas...). Esses lugares precisam inspirar mais segurança. Precisam contar com equipamentos fixos e móveis, necessários ao seu uso com o mínimo de decência. Quando falo em equipamentos fixos estou me referindo, por exemplo, as pistas de skate que estão sendo construídas nos nossos centros urbanos e as brinquedotecas do programa "O Ceará cresce brincando". As pistas são espaços para a narrativa do calor táctil e os centros de referência do brincar (brinquedotecas, com acervo de livros e quadrinhos) englobam tanto as narrativas do calor táctil (brincadeiras do corpo) como as narrativas do ouvido da mente (brincadeira das palavras e do pensamento).

Houve um tempo, há cerca de três décadas, que no Polo Cultural do Benfica, a Universidade Federal do Ceará mantinha um animado teatro móvel, do qual lembro agora, ao pensar no quanto seria maravilhoso se pudéssemos contar com uma pequena lona a circular pelas praças, integrando a cultura dos bairros, fazendo costuras estéticas de sociabilidade urbana. Os nossos logradouros poderiam ter mais atrativos como o parque de brinquedos feitos pelo DIM no jardim zoológico Sargento Prata, em Fortaleza. Personagens como o Capitão Rapadura, do MINO, deveriam estar espalhados pelas praças do Ceará, assim como a figura brincalhona do Saci Pererê poderia ser potencializada em festas transetárias e transclasses sociais, capazes de aproximar escolas, pais e comunidades. Com pequenas demonstrações de respeito ao espaço público do brincar e com praças (e por que não as futuras estações do metrô?) interligadas por ciclovias, cidades como Fortaleza certamente poderiam dar saltos de bem-estar coletivo.

A segunda vertente relativa à ação dos poderes públicos voltada para a consideração da criança em seus planos de desenvolvimento é a evolução permanente das competências dos brinquedistas, esses heróis silenciosos, que trabalham com a parte mais sensível e valiosa da sociedade, que é a infância. Para isso, o que precisa ser feito não é novidade: investir na melhoria dos modos de condução do brincar e da brincadeira, na gestão do alinhamento do tempo social com o tempo do brincar, na intensificação de vínculos sociais e territoriais, no vivenciar da experiência da criança em situação de brincadeira, em arte e literatura infantil e juvenil de qualidade, em métodos claros e bons, na valorização dos gestores da educação e da cultura comprometidos com o interesse público do brincar, enfim, no apoio efetivo e constante aos diversos educadores sociais dentro e fora da escola.

Mas quais são mesmo os resultados da brincadeira como experiência? Para que serve mesmo tudo isso? Primeiro, porque brincar é essencial para a formação da subjetividade na consciência, portanto, um contraponto ao homogêneo e um fortalecedor da diversidade. Segundo, porque brincar é a melhor forma para o desenvolvimento da noção de tempo, espaço e capacidade de realização, assim como da vida social, da participação na escola e na construção do sentido de segurança. A criança que cresce na experiência da brincadeira passa a agir com mais segurança e com mais criatividade em tudo o que faz. O brincar e a brincadeira são premissas de civilidade que possibilitam o rompimento com a circularidade e permitem a troca de estilos de faz-de-conta: sai do "não importa de onde vêm os recursos, nem para onde vai o lixo", resultantes do faz-de-conta da racionalidade adulta, para entrar no sentido de sustentabilidade, do olhar o mundo com credulidade, próprios do faz-de-conta da cultura da infância.

E por que isso acontece? Porque a experiência do brincar e da brincadeira se dá em um lugar onde, para acontecerem, as coisas não precisam dos nexos da realidade. Em sua aventura pelo mundo do nonsense, da imaginação e da fantasia, a criança tem muito sobre o que "pensar"; não o pensar lógico do adulto, mas o pensar que a faz tomar a distância necessária para configurar a sua interação com as medições do mundo, sem o rigor de pesos, volumes e comprimentos. No país das maravilhas, de Lewis Carroll, a personagem Alice cresce e encolhe a todo instante, de acordo com tudo o que não precisa estar de acordo com nada. No brincar e na brincadeira, a criança aprende a adquirir novas perspectivas sobre si e sobre o seu meio e aprende a controlar as emoções nas situações mais complexas. E o mais importante é que as referências ao imaginário não desaparecem quando se tornam reais.

Por que as referências ao imaginário não desaparecem? Porque na brincadeira forma e matéria se confundem; cultura e natureza se mesclam em um processo transacional, um fluxo dialógico entre os mundos interior e exterior da criança, para que ela possa crescer na plenitude de suas faculdades humanas. Esse fluxo se dá pela liga da imaginação existente no lúdico, a zona do jogo presente em adultos e crianças; esse fluxo é alimentado pela curiosidade, a plataforma da criatividade que se constrói com mais solidez em quem brinca; esse fluxo passa pela produção de hipóteses, o não-lugar de montagem do entendimento do mundo; esse fluxo acaba chegando ao raciocínio, onde se processa o significado lógico das coisas; com isso esse fluxo pode idealizar, fazer projeções, inovar, interferir na realidade...

Os governantes que realmente querem que o Brasil passe a ser um País respeitado e considerado interna e externamente, precisam urgentemente conceber um lugar de direito para a criança nos planos de desenvolvimento do Estado. Nesse sentido, mesmo separados em ministérios e secretarias a educação e a cultura precisam caminhar juntas. Os governos e a sociedade precisam pensar juntos como fazer planos e executá-los em favor do brincar e da brincadeira. Os adultos e as crianças precisam encontrar juntos os caminhos que levem a humanidade a um novo estilo de vida, que corrija o modelo equivocado que vem ameaçando os recursos naturais do planeta e desgastando as relações entre as pessoas.

Para praticar o seu tempo, a qualquer tempo, a criança necessita ter direito à imaginação e a melhor maneira de exercer esse direito é por meio do brincar e da brincadeira. A nova criança, formada por uma combinação entre os currículos escolares e os currículos ocultos das mais variadas redes de informação e de relacionamentos, quer ter direito a procurar respostas mais convincentes para o que somos e o que queremos ser. E essas respostas estão no baú da questão política. Não há o que esperar, a vida adulta é conduzida pelas pegadas da infância e o Estado pelos rastros da sociedade.






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