sábado, 18 de dezembro de 2010

Nos bastidores do Facebook - Diário do Nordeste - 16/12/2010


A influência das tecnologias na modelagem do nosso gosto pela vida sempre esteve presente nas construções civilizatórias (...) O caso do Facebook como negócio é tão interessante e complexo quanto o que ele representa como mecanismo de bate-papo
Vi finalmente o filme "A Rede Social" do diretor David Fincher, que trata do fenômeno do Facebook. Como usuário eventual deste website de relacionamento que conecta meio bilhão de pessoas em mais de duzentos países, estou entre os que se interessam em saber o que se passa nos seus bastidores. Com edição ágil e ao mesmo tempo aparentando durar mais do que os seus 190 minutos, o drama estadunidense é uma das boas produções cinematográficas de 2010.
Diante das tantas possibilidades de reflexões a que o filme nos instiga, chamou a minha atenção o comportamento dos protagonistas, enquanto símbolos do estado de vazio ético viralizado na cultura tecnológica digital e na condição de insensíveis empreendedores da nova economia. Passei toda a sessão variando de opinião sobre os humores do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e de seus, digamos, seguidores e seguidos, já que ali não dá para chamar ninguém de amigo ou companheiro.
O filme revela o quanto essas redes têm de vínculo vulnerável por trás das maravilhosas oportunidades que elas oferecem. Uma das chaves do magnífico sucesso do Facebook é a capacidade da ferramenta de aproximar pessoas para conversas de poucas palavras e sem qualquer risco de contaminação corporal.
O traço de personalidade mais comum dos personagens é... não sei. O que dá para perceber é um conjunto de distúrbios entrelaçados. Não é narcisismo porque o narcisismo requer a presença de amor, mesmo que exageradamente a si mesmo. E o que parece é que eles não gostam nem de si. São pessoas afetadas, carentes de atenção, histriônicas, todavia centradas no jogo do domínio dos algoritmos.
Tem algo muito confuso na conduta obsessiva e compulsiva dos novos magnatas dependentes de tecnologia, de acordo com a abordagem do filme. O que representaria a arrogância nerd combinada com déficit de sociabilidade? Uma mistura de esquizofrenia com psicose grupal? Acho que não... eles não chegaram a perder o contato com a realidade... Sabem muito bem ganhar dinheiro com coerência harvardiana.
A situação problematizada é delicada. Tratei de mudar de pensamento e comecei a observar "A Rede Social" pelo que o filme mostra de vazio ético, estruturado na desconstrução da privacidade. Seria isso o significado de toda essa vida de jovens cercados por tecnologias, que convivem sem conviver e sequer duvidam de não ter dúvidas?
Mark Zuckerberg teria se aproveitado de ideias dos seus colegas de universidade para, com sua habilidade de programador de computador, ampliar o clube, compartilhando inclusive a intimidade da namorada. É como se a cultura tecnológica digital trouxesse um novo prazer, ainda sem parâmetros de disciplina; um prazer que não necessita do gostar de nada para ter sentido.
A influência das tecnologias na modelagem do nosso gosto pela vida sempre esteve presente nas construções civilizatórias. A internet ampliou vertiginosamente os nossos espaços sociais e geográficos. Claro que isso gera uma dificuldade para suportar tanta grandeza. Ao expor a privação ética de pessoas voltadas para uma ferramenta de visibilidade, o filme denuncia uma visão de mundo wiki, contraditoriamente restrita à Inteligência aplicada ao individualismo.
Em pessoas com a genialidade estritamente técnica e empreendedora de Mark não deve haver crença nem razão. Haveria o quê, então? Essa é uma incógnita. Uma causa certamente não é. Como ferramenta configuradora de novos padrões de conversa o Facebook ainda tem muito em que se aperfeiçoar. O caso mais exemplar de limitação dos seus algoritmos sociais, das suas sequências determinadas para o estabelecimento das relações entre usuários, está na ausência de mecanismos capazes de encerrar a conta de quem morre.
Quem já recebeu o aviso do Facebook para retomar o contato com alguém que já morreu tem sentido muitas perplexidades. Até onde um portal de relacionamentos estará alterando a lógica da nossa relação com a morte? Nessa perspectiva já estão sendo instalados no mercado vendedores de garantia da permanência dos usuários nas redes sociais, mesmo depois de mortos. Assim, a existência passa a ser proporcional aos anos que o cliente pode pagar para ficar "vivo" na rede, encurtando a vida eterna, que continua um serviço de exclusividade das religiões.
Quer dizer: com a internet nem tudo virou infinito. Essa sensação de que a vida eterna tem prazo de validade, associada à sensação de impotência diante do número extraordinário de informações disponíveis e de contatos que podem ser travados por meio das plataformas de conectividade, virou uma virtualidade sufocante. No filme, essa aflição das possibilidades consome a vida de Mark, enquanto ele alcança o topo da escala das grandes fortunas mundiais.
O caso do Facebook como negócio é tão interessante e complexo quanto o que ele representa como mecanismo de bate-papo e outras necessidades da cultura tecnológica digital, acrescidas a todo instante de novos e atraentes plugins, de novos componentes adicionais de funcionalidade.
Em 2004, o então "The Facebook" não passava de um mural com perfis e interesses de usuários. O filme conta que foi Shawn Fanning, o criador do Napster, quem sugeriu tirar o "The", simplificando a marca para Facebook. Aliás, abrindo aqui um parênteses, esse Fanning aparece ao longo do filme como um dos babacas do vazio ético. Assim como Mark, ele não passava de um obcecado programador de computador, quando em 1999 apareceu com a sua formidável plataforma de baixar música gratuitamente, provocando uma inflexão no mercado fonográfico.
Fanning vendeu o Napster e saiu abrindo empresas e vendendo, em uma narrativa marcada por falta de foco e ausência de motivo. Está milionário também. A impressão que dá pelas notícias que se lê do seu desempenho como empreendedor e consultor é que ele não sabe muito bem a razão de estar fazendo tudo isso. Pelo jeito, está dentro do que eu chamaria de anedonia social, ou seja, faz parte do grupo de indivíduos que não desfruta da capacidade de sentir prazer por ter uma vida em sociedade.
Mark, por sua vez, conseguiu desenvolver um inovador e eficaz sistema de publicidade direcionada e serviço de venda de cadastro de consumidores. O Facebook termina o ano de 2010 anunciando o registro da palavra "Face", simplificando mais ainda a marca, e preparando-se para lançar ações na bolsa, na expectativa de ser uma transnacional de um trilhão de dólares.
Depois de ver "A Rede Social" fiquei um bom tempo matutando sobre o comportamento dos seus protagonistas, como ícones da cultura tecnológica digital e da nova economia. O filme sugere que estamos diante de pessoas que renunciaram ao amor, à paixão e à amizade para construir um sistema de recompensas fora da função do prazer. É como se houvesse um vício no desejo de ser notado e seguido, mas houvesse concomitantemente a vontade de não ser alcançado de fato.
Embora enfadonho, o trabalho do diretor David Fincher é de grande valor, por apresentar uma versão questionadora dos mitos da genialidade de algumas mentes brilhantes que muitas vezes aparecem fora de contexto e não refletem o quanto podem ser apenas subprodutos de preferências induzidas em estado adaptativo.
O filme é baseado no livro do escritor norte-americano Ben Mezrich, cujo título, em tradução livre, é "Bilionários por acaso: a criação do Facebook, uma história de sexo, dinheiro, genialidade e traição".Parece-me bem mais que isso: os bastidores do Facebook mostram uma experiência de prazer que não está no sensório, no sexual, nem no social... e muito menos nas dimensões artística e transcendental. Talvez não seja mesmo nem prazer. Talvez não seja mesmo apenas um filme.

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