quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Lição chilena de cidadania - Diário do Nordeste - 20/1/2011


Acompanhei de perto o movimento em Punta Arenas, onde não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta justa e pacífica. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.
Há mais de uma semana que as principais cidades da Patagônia chilena estão com as portas do comércio e da indústria fechadas e com os acessos aéreos, portuários e terrestres bloqueados por barricadas feitas por moradores, em protesto contra o aumento de 16,8% no preço do gás, anunciado pelo governo de Sebastián Piñera, no início do mês.
Acompanhei de perto o movimento em Punta Arenas, onde não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta justa e pacífica. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.Embora tenha como um dos seus principais articuladores a Assembleia Cidadã de Magalhães (ACM) - fórum constituído por cerca de duas dezenas de entidades da sociedade civil - a mobilização tem caráter transversal e essencialmente orgânica. A causa comum, que leva à convergência das mais diferentes forças políticas, econômicas e sociais da região, manifestadas em constantes buzinaços e bandeiraços, é a luta contra a ameaça de privatização da Enap (estatal de petróleo), o desemprego e a inviabilização do consumo de gás, produto vital para o funcionamento das empresas e, sobretudo, para a calefação domiciliar.
As reações do governo chileno à paralisação regional de Magalhães passam por mudanças no gabinete da República. Foram quatro alterações ministeriais feitas nos últimos dias: Defesa, Transporte, Trabalho e Energia. As pastas das Minas e Energia foram fundidas em uma só e entregue a Laurence Golborne, que ficou encarregado do diálogo com as lideranças do movimento. O novo ministro esteve em Punta Arenas na segunda-feira passada, dia 17, em uma tensa reunião com líderes regionais e dirigentes da ACM, que durou sete horas.
O encontro acabou prejudicado por uma inábil tentativa de negociação paralela entre Golborne e os prefeitos Vladimiro Mimica (Punta Arenas) e Fernando Paredes (Puerto Natales) e o membro do Conselho dos Municípios Emílio Bocazzi, que foram acusados de traição pelos manifestantes e representantes da Assembleia Cidadã. O resultado dessa trapalhada é que o esforço de diálogo não se traduziu em um documento de consenso, capaz de assegurar as garantias necessárias ao conforto das partes envolvidas.
O grande diferencial dessa mobilização está exatamente no fato de as pessoas, sem qualquer negação à importância da representação partidária, terem tomado a decisão de exercer seu poder de pressão política massiva, categorizando a sociedade civil em uma concreta e espetacular ação de democracia participativa. O sociólogo Manuel Rodrigues, um dos dirigentes da ACM, chama a atenção para o quanto é realmente difícil que a institucionalidade política entenda e aceite uma atuação da coletividade, sem a dependência direta das estruturas partidárias.
Por outro lado, para atrapalhar o diálogo, o presidente Piñera lançou mão da controvertida Lei de Segurança do Estado (Lei nº 12927), que permite a perseguição judicial a manifestantes e até a intervenção das Forças Armadas. Entrevistei a deputada Carolina Goic (Partido Democrata Cristão) e ela me disse que esse recurso remanescente do período de exceção é decepcionante porque causa mal-estar democrático e prejudica o diálogo na construção de soluções para o problema. Recordou, entretanto, que desde os tempos da ditadura não se viam no Chile mobilizações unindo todos os setores da sociedade, como a que aflorou na Região de Magalhães contra a alta do gás.
Em conversa com Manuel Rodriguez ele me falou da surpreendente força civil das organizações sociais de Magalhães. "O que está acontecendo aqui é algo semelhante ao movimento dos piqueteiros que derrubaram o presidente Fernando de la Rua, na Argentina". A comparação com as paralisações contra a queda vertiginosa das condições de vida, ocorridas em 2001 no país vizinho, traduz a confiança de Rodriguez no potencial mobilizador da cidadania na sua região.
O movimento tomou proporções bastante razoáveis. Pessoas de Magalhães que moram em outras regiões do Chile e no exterior estão ampliando a mobilização nas praças de armas das suas cidades de residência e em redes virtuais, organizando protestos como os que têm sido feitos na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de La Moneda, na capital Santiago. Esse tipo de mobilização tem sido chamado de ""Magallatón". No final do domingo, 16, as rádios de Punta Arenas anunciaram a solidariedade do Sindicato dos Petroleiros ao movimento.
Escutei do laboratorista José Rojas Miranda, militante do Partido Socialista, que esse fenômeno de mobilização transversal tem um histórico na cidadania na região: "O Chile como país foi descoberto antes por Magalhães. Depois, os movimentos operários, anárquicos, influenciados pela Revolução Francesa, também chegaram por aqui. O Partido Socialista foi fundado inicialmente no Chile em Punta Arenas. As reações contra a ditadura de Pinochet começaram nesta terra com o puntarenaço. Os protestos contra a alta do gás estão acontecendo dessa forma porque temos uma cidadania capaz de mobilizar-se".
A dificuldade de obtenção de um consenso está vinculada a desconfiança dos manifestantes nas propostas do governo que sejam para solução no futuro. Os habitantes de Magalhães não querem correr o risco de precisarem voltar aos tempos das fogueiras. Sobre a perspectiva de um acordo Carolina Goic acredita que "a solução virá no momento que o governo reconquistar a confiança da população com uma proposta de regulação decente, que respeite o gás que se produz em Magalhães e que garanta o subsídio permanente, e não com medidas centralistas, que não levam em conta as particularidades da região".
Na campanha eleitoral que o levou à presidência, Sebastián Piñera havia prometido em Punta Arenas que todos poderiam ficar muito tranqüilos porque a política do seu governo manteria um tratamento especial para o gás domiciliar na Região de Magalhães. O gás é um insumo indispensável e de uso massivo na Patagônia. Tanto que sempre foi subsidiado como incentivo ao povoamento e desenvolvimento da região. Magalhães produz o seu próprio gás, mas só tem direito a aproximadamente 10% dessa produção, pois 90% do produto é utilizado para abastecer a Methanex, multinacional canadense, produtora de metanol.
Dentro de uma visão eminentemente econômica, sem levar em consideração as peculiaridades regionais e os fatores sociais envolvidos na questão do uso do gás em Magalhães, com o aumento do preço o governo estaria aumentando a atratividade do setor petroleiro para a privatização. A alta do gás também serviria para inibir o consumo residencial, liberando o produto para aumentar ainda mais o fornecimento para a Methanex, que, como a maior consumidora de gás em todo o Chile, estaria pressionando o governo a cumprir compromissos que não estariam sendo honrados pela estatal de petróleo.
O aumento do preço do gás causaria forte impacto nos setores de transporte, de alimentos, do turismo e de eletricidade, uma vez que a energia da região é gerada com base em turbinas a gás. Entretanto, não é somente por esses motivos que o sentimento de indignação contra a medida do governo está presente em todos os lugares. Os habitantes da Região de Magalhães sentem-se usurpados pelo poder central e traídos pelo presidente. Nas ruas, ouve-se quem defenda a independência da região, sua anexação à Patagônia argentina ou até uma composição territorial com as ocupações inglesas no sul da América do Sul.


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