quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Literatura e encantamento - Diário do Nordeste -29/09/2011

A gente às vezes passa por momentos de satisfação que não dá para descrever. Mas como em todo estado de contentamento amplo, mesmo o hiato existente entre o acontecer e o retrato falado que dele fazemos não é suficiente para segurar a voz de um coração transbordante. Desde a terça-feira passada (27) que falo da contribuição direta que os meus filhos deram em todo o processo da palestra que fiz sobre "A literatura que encanta o público de oito a onze anos", a convite do eixo de Literatura Infantil e de Formação do Leitor, da Secretaria de Educação do Estado do Ceará - Seduc.

Estavam ali, no auditório do Condomínio Espiritual Uirapuru (CEU), educadores da Seduc, representantes das Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Crede) e das secretarias municipais de educação, que acompanham o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic). O tema em si e a qualidade da plateia já davam motivo suficiente para um empolgado diálogo. O fato novo para mim, foi que pela primeira vez eu senti, vi e pude mostrar concretamente um pouco da aventura da paternidade criadora que há mais de uma década vem me levando a compor e a escrever para crianças.

Tudo começou quando eu cheguei em casa, comentei da palestra que faria e comecei a procurar nas estantes alguns livros que eu pudesse mostrar como exemplo dos conceitos orientadores da minha fala. Como a faixa de idade abordada era de oito a onze anos, os meus filhos, que estão com doze (Lucas) e dez (Artur) anos, logo se apropriaram da ideia e passaram a contribuir na escolha dos títulos. Numa hora dessas é que a gente percebe claramente o tanto que a vida é intensa e o quanto as crianças apreendem do que vivem no cotidiano. Selecionados os livros, agradeci aos dois pela colaboração e parti novamente para a tarefa solitária de elaborar o roteiro.

Embora concentrado no que iria colocar em debate, notei a inquietação deles, entrando e saindo do escritório e, por vezes, dando uma rápida olhada na tela da máquina. A princípio não atentei muito bem ao que se passava. Dei como normal aquela movimentação. Como dividimos a mesma bancada de trabalho, para as tarefas profissionais da mãe deles, as minhas e as tarefas escolares dos dois, é comum trocarmos observações sobre o que estamos fazendo. E, embalado por essa rotina, conclui a sequência da apresentação. Quando me preparava para montar o material em Power Point, o Lucas chegou para mim e disse que poderia montar a apresentação no Prezi, uma ferramenta de navegação em zoom, descoberta pela amiga dele, Lara, e já testada por eles em trabalhos escolares.

Aceitei a proposta imediatamente e passei o conteúdo para ele, que fez o design e a montagem dos textos e imagens dentro da dinâmica não-linear do aplicativo. E foi mostrando as possibilidades para mim, numa narrativa que aproxima e afasta o que se quer mostrar, de modo que quem vê, não vê onde a informação se esconde, até que ela salte do detalhe imperceptível para o primeiro plano. Com plena liberdade de organização do conteúdo, o Lucas preparou todo o material da apresentação, considerando que o que está de cabeça para baixo tem tanta importância quanto o que está aparentemente disposto em parâmetros normais, em um curioso mapa nonsense de ponto de vista.

Fui me dando conta do estava acontecendo. Havíamos lido juntos quase todos os títulos escolhidos para a apresentação; havíamos selecionado juntos parte da literatura que mais encantou o Lucas e o Artur na zona etária definida pela Seduc para a palestra; e havíamos preparado juntos a exposição do conteúdo. Como todos esses fatores haviam afluído espontaneamente para aquele trabalho resolvi convidá-los a fazer a apresentação comigo. Combinamos para que eles saíssem no intervalo da aula, pois a palestra ocorreu pela manhã, horário em que estão na escola, e eles foram com a farda do colégio fazer comigo a co-apresentação do tema; o Lucas passando os slides e o Artur fazendo fotos e me dando dicas do que eu poderia acrescentar em um ou outro aspecto.

Nunca me senti tão longamente emocionado e ao mesmo tempo tão à vontade para contribuir com um debate. Além dessa experiência de interação completa com os meus filhos, a discussão me permitiu reforçar e dar apoio ao papel da escola, enquanto espaço de possibilidades de criação e de recriação social e cultural. A escola existe para ajudar seus alunos a valorizar suas histórias de vida, suas experiências comunitárias, suas perspectivas cidadãs e para questionar o que eles desejam e necessitam em decorrência da imposição massificadora da comunicação mercadológica.

As crianças de oito a onze anos, estudantes do terceiro ao sexto ano, têm idades diferentes, mas experienciam um mesmo estágio de fronteira aspiracional, puxada para cima pela pulsão pré-adolescente. É muito importante, por conseguinte, esse cuidado especial da Seduc em buscar referências literárias que possam estar à altura da complexidade desse momento. O acesso a livros que constroem vínculos entre o sentir e o saber, que estimulam a percepção em distintos planos de realidade, que ativam a relatividade das noções e que redesenham o processo social é fundamental em um momento que a criança tem consciência do si e necessita compreender-se enquanto indivíduo que é parte do social.

A literatura tem o potencial de redescrever a vida por dentro do encadeamento do pensamento humano, desde os seus elos mais primitivos aos mais sofisticados. Ler não exige consciência do próprio raciocínio para raciocinar, por isso, na aventura literária sentir é mais importante do que entender. Para encontrar nos livros ou tablets uma grande descoberta, a criança precisa ter seu nível de leitura respeitado e contar com autores que tenham uma existência, que tenham o que revelar e façam isso com estilos simples, sem infantilismos ou exageros de compreensibilidade.

Se existe alguma coisa que deveria estar totalmente descolada de interesses comerciais na escola, é o conteúdo. Não faz sentido o equipamento escolar ser ponto de venda das multinacionais de best-sellers ou de lobbies de falsos autores que muitas vezes ocupam as bibliotecas, protegidos por barreiras do ineditismo e do paternalismo local, empobrecendo a qualidade literária dos acervos e prestando um desserviço à infância e à juventude. O ser humano é universal e a literatura que traduz essa universalidade não tem data de validade nem limite territorial. De onde quer que um autor escreva, com o sotaque que for, no contexto e na circunstância em que se encontre, o que define a sua obra é o caráter subjetivo da transfiguração que faz do real, sua força estética e sua propulsão de significados para quem lê.

Toda literatura é regional. Algumas obras literárias é que se tornaram mundialmente conhecidas pela força expansionista de suas civilizações. Em um país com tamanho nível de ingerência do mercado na educação, com a dimensão continental que tem e com as desigualdades regionais do Brasil, não é fácil trabalhar uma política pública de literatura que encante a exigente meninada dos oito aos onze anos. Mas é um desafio que se impõe. E nesse desafio, a minha opinião é que seja oferecido o que há de melhor e mais acessível da literatura local, nacional e mundial, independentemente do tempo e do espaço em que cada autor viveu e escreveu, vive e escreve. Melhor ainda se tudo isso puder contar com o auxílio luxuoso da força do sensível de outras linguagens artísticas e culturais.

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