quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Qual a agenda da juventude? (I) – 27/10/2011 – Diário do Nordeste

O cenário de situações degradantes posto para a juventude, com fantasmas de incerteza financeira, drogas, corrupção, desonestidade científica, idolatria da violência e outros efeitos do ocaso de uma sociedade escrava da supremacia econômica, mais do que um fim de mundo pode ser uma senha para a reinvenção política, social e cultural, inspirada na cidadania orgânica. Este foi o tom da palestra "O que sonha a juventude brasileira?", que fiz no encerramento dos debates do 1º Círculo da Juventude, da UFC, dia 21 passado, no auditório da Matemática, no Campus do Pici.

O estouro do que eu chamo de bolha da juventude vem acontecendo em diversas realidades conectadas pela ideologia do consumismo: a ascensão do hip hop e das igrejas evangélicas é um fenômeno comum decorrente do abandono cultural e da religiosidade nos centros urbanos; o êxtase paradoxal do individualismo coletivo, se expressa no estranho senso da liberdade de um apesar dos outros, muito presente na dinâmica das multidões dos solitários em rede; a matemática do dinheiro digital sugere que as pessoas não precisem de lastro e a conta não fecha; a nova morfologia da geração de renda avisa que tempo livre e bem estar pode ter ou não ligação com emprego. E assim por diante.

No estudo de projeção do nosso perfil demográfico, feito pelo Banco Mundial, e lançado em seis de abril deste ano, em 2020, da estimativa de 207,2 milhões de brasileiros, 66,2% estarão na faixa etária entre 15 e 59 anos. A leitura desse percentual tem significados diferentes quando feita por angulações do mercado e da sociedade civil. Para a estratégia economicista, um contingente tão expressivo e em "idade ativa" representa oportunidade de mais força produtiva, mais crescimento e mais lucro; já em uma visão ecoplanetária, o fato de um País ter mais da metade da população no seu intervalo entre a adolescência e a vida madura, é uma oportunidade para revisões de conceitos.

A criação de estereótipos culturais para a domesticação da juventude está presente sobretudo na fala e no comportamento das celebridades. Contando da sua dificuldade de se relacionar, a cantora Lady Gaga ilustra bem essa questão com, digamos, profunda superficialidade : "É uma coisa estranha. Se eu dormir com alguém, ele vai roubar minha criatividade através da minha vagina" (revista Vanity Fair, set/2010). Quer referindo-se a pênis ou a pendrive, o recado implícito na mensagem da performer aos seus seguidores é de que há uma deidade nos "seguidos" e que é bom estar ligado na desconfiança própria dos comuns.


No momento em que o professor Cavalcante Júnior, idealizador e coordenador do Círculo da Juventude, me sugeriu o tema "O que sonha a juventude brasileira?", lembrei-me logo de revisitar um texto que escrevi sobre o assunto na minha juventude etária. Achei agradavelmente curioso descobrir que o dia e mês da minha palestra seria o mesmo da publicação do meu artigo intitulado "O terceiro sonho" (O Povo, 21/10/1987) há exatamente 24 anos. Nesse escrito eu considero como início de uma agenda autêntica da juventude os protestos libertários desencadeados a partir da década de 1950, quando os jovens conquistaram o direito a uma convivência mais liberada e voltada para valores não materiais.

Descobri também que o que parecia distante no tempo estava mais próximo do que eu suspeitava, quando voltei nas palavras para me ver de perto. A articulação do pensar e o jeito de dizer têm lá suas particularidades, mas todas as questões que me tocam hoje estavam presentes lá, nas apreciações que fiz ao sonho hippie do "Faça amor não faça guerra" e ao sonho das sociedades alternativas do "Faz o que tu queres pois é tudo da lei". O meu argumento para a escolha desses dois movimentos, como exemplos próprios de uma agenda "da" juventude e não "para" a juventude, foi o de que eles, diferentemente dos movimentos políticos tradicionais, colocavam as pessoas como justificativa para a existência da sociedade e não a sociedade como justificativa para a existência das pessoas.

Sobre a apropriação dos elementos simbólicos desses movimentos pelo sistema de consumo, escrevi que: "Ser hippie virou moda. A contestação transformou-se em romantismo, cultuando macaquinhos em posição de ioga, consumindo incensos, gurus e conceitos completamente distorcidos" (...) "A fuga para o esotérico e os desencontros místicos para onde se dirigiram muitos adeptos das sociedades alternativas entrou em choque com a turbulenta situação político-econômica mundial, movida pela elevação do preço do barril de petróleo pelos árabes, e acabou com cheiro de patchuli". À parte de qualquer engano de expectativa, tenho chamado de social-ambientalismo participativo o ensaio do que seria o campo fértil de um novo sonho da juventude.

Depois de revisitar o que eu pensava sobre o sonho da juventude tempos atrás e de refletir sobre a condição dos jovens nos dias de hoje, resolvi fazer um exercício do que poderia ser uma agenda da juventude e cheguei a dez pontos que, suponho, caberiam nessa pauta:


01 - Encerrar o ano de 1968

Enquanto, sem um devido aprofundamento comparativo de contextos, a juventude seguir bombardeada pela vulgata de que a geração de mais de quatro décadas atrás é dona de uma genialidade atemporal e onipresente, fica difícil esperar que se motivem a grandes sonhos. O ano de 1968 é um marco importante dos movimentos de juventude euro-americanos, mas, como todo marco, não deve ser usado por necessidades narcísicas para amarrar a vida social em regressão periódica. O passado deve estar no presente como sentinela, de modo que a juventude fique livre para fazer o seu tempo.

A percepção da existência de um estado humano que nem é a infância nem a vida adulta vem do final do século XIX e foi acentuada depois da Segunda Guerra Mundial, quando os jovens, mesmo os rebeldes com ou sem causa, passaram a ser alvo do mercado de consumo. No livro "A criação da juventude", Jon Savage (Ed. Rocco) fala de como o conceito de "teenager" revolucionou o século XX, impondo modelos de consumo, de moda e de cultura; mostra como a indignação e a insurgência foi apropriada pela comunicação mercadológica, em troca de uma satisfação que embrutece, que transfere para o objeto as expectativas da realização de desejos.

02 - Escapar da Onda Retrô

O poder homogeneizante em que se transformou a internet, somado aos interesses pelo repique de rentabilidade de conteúdos que já se pagaram e a uma certa transferência de saudade de um presente de déjà vu, caracterizam bem o sentimento de nostalgia que prende parte significativa da juventude ao vintage, ao remake e às reprises. Nesta leitura (que deixa de fora os rejuvenescedores movimentos da moda no tempo), o que chama a atenção é o ar de espírito acomodado dos jovens em posição de revival, como se consumir itens testados fosse garantia de aceitação social.

Mais do que visual antigo, mais do que balada com música "demodê" e seriado clássico de televisão, a já demorada onda retrô representa o envelhecimento do moderno. Um dos símbolos mais fidedignos dessa reedição de épocas passadas era o estilo criativo e trágico, poderoso e frágil, da cantora inglesa Amy Winehouse (1983 - 2011), com seus vestidos de cintura alta e cabelos com grande volume no topo da cabeça, fazendo as vezes de mocinha ingênua e reprimida, ao passo que se consumia em seu dolorido e comovente drama pessoal.Continua na próxima quinta-feira.


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