sábado, 10 de dezembro de 2011

Mobilização pela infância - Diário do Nordeste - 8/12/2011

As datas comemorativas religiosas e sociais que passaram a ter o domínio útil do mercado, tais como Natal, Páscoa e Dia da Criança, têm obviamente conotação comercial. Nesses períodos, entre árvores gigantes e enfeites luminosos espalhados pelas cidades, também é comum o crescimento da quantidade de anúncios veiculados com novidades de ofertas de produtos e serviços. Até aí, se não tudo bem, pelos menos tudo coerente, não fosse a intensificação do assédio direto da comunicação mercadológica dirigida à criança.


Em seu artigo 37, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) trata da abusividade da publicidade voltada diretamente para menores de 12 anos, mas o projeto de lei que especificaria essa proibição (PL 5.921/2001) está há dez anos tramitando no Congresso Nacional, deixando aí uma esdrúxula brecha na legislação. O projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, vem há seis anos disponibilizando instrumentos de apoio, produzindo, organizando e disseminando informações sobre o tema, mas, apesar de muitos avanços em parceria com outras instituições e do fortalecimento da sociedade desperta, essa prática ilegal continua gritante.


Embora lento e gradual esse processo tem tido consequências positivas no crescente envolvimento da sociedade e na compreensão de muitos publicitários sensíveis à causa, que chegam a questionar os "briefings" focados na infância. Sabe-se, contudo, que não é fácil para esses profissionais resistirem à pressão de quem os contrata. Afinal, o dono da voz da propaganda e do marketing, o mandante do crime, é a empresa que paga a agência para fazer o serviço. A publicidade disparada à queima roupa contra a criança é um ato de agressão, no sentido do conceito de violência simbólica trabalhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 - 2002), que em sua essência é o condicionamento da convicção íntima do ser social aos padrões do discurso dominante.


No ensaio que escrevi para o Guia Brasileiro da Produção Cultural (Edições Sesc-SP, 2010), defendendo a incorporação da infância aos planos de sustentabilidade, na perspectiva da cidadania empresarial, ponderei o peso atribuído ao publicitário em si, nessa questão. "A raiz da frondosa monocultura comunicacional da propaganda e do marketing está na empresa. Foi institucionalizando a publicidade que o mercado concebeu o fenômeno do consumismo, como forma de vida dos indivíduos e dos grupos sociais. Desta maneira são as corporações que, por interesse próprio, investem na comunicação de venda dirigida à criança" (p. 325).


O discurso sedutor das peças publicitárias e da propaganda, representa a intenção legítima das empresas no exercício da competitividade. Quando, porém, essa fala é apontada para meninas e meninos, acaba gerando descompassos de identificação projetiva, em decorrência da sua dinâmica de neutralização do indivíduo, por meio da insistência de que a satisfação do desejo pode ser alcançada na compra do objeto. "Os estudos sobre esse discurso revelam que um anúncio deve mais do que chamar a atenção; deve provocar desejos que levam à ação. E se as empresas dão essa autoridade à comunicação de mercado é porque têm sido onipotentes sobre a cultura, a educação e a política" (Idem, p. 325).

Seja como for, os efeitos estressantes dessa prática ganham mais e mais evidência no comportamento das crianças "empoderadas" pela elevação precoce à categoria de consumidora. Acontece que em contraponto a isso muitos adultos resolveram agir em favor do consumo consciente e as corporações tiveram que se mexer para conquistar o reconhecimento de empresa desejada por parte desse consumidor mais inquieto, mais bem informado e mais crítico.


"Enquanto de um lado algumas empresas demonstram que estão realmente enxergando que não sobreviverão se não contribuírem para a formação da cultura do longo prazo, a maioria ainda mantém práticas degradantes, que negam o discurso das peças publicitárias e dos balanços socioambientais" (Ibidem, p. 316)


Afinado com os tempos e disposto a influir na formação de uma nova consciência empresarial, que seja capaz de perceber a importância do direcionamento da publicidade de produtos e serviços para os pais, o Instituto Alana promoveu, na semana passada (30/11), em São Paulo, uma mobilização pela infância, ocorrida em frente à sede da Mattel, empresa estadunidense, que é a maior fabricante de brinquedos do mundo... e também a principal mandante dos delitos de publicidade dirigida à infância no Brasil. O protesto foi uma maneira de expor os alarmantes dados do monitoramento da publicidade dirigida à criança, realizado pelo Alana, em parceria com o Observatório de Mídia da Universidade Federal do Espírito Santo, no período que antecedeu ao Dia das Crianças.

Por ter sido "a empresa que mais fez a sua parte com relação ao consumismo infantil", como anunciou ironicamente a coordenadora de mobilização do Projeto Criança e Consumo, Gabriela Vuolo, a Mattel ganhou o troféu de "Vencedora do Prêmio Manipuladora - Dias das Crianças 2011". A bem-humorada premiação destaca a Mattel pelas 8,9 mil inserções de anúncios para crianças, entre os dias 27 de setembro e 11 de outubro, no intervalo de seis às 21 horas, conforme aferição feita em 15 canais de TV aberta e fechada, por uma equipe de 25 pesquisadores da UFES, coordenada pelo professor Edgard Rebouças. O levantamento registrou que a criança foi o alvo de 64 % dos anúncios veiculados no período.


A estatueta em forma de fantoche de acrílico sobre base preta não foi recebida pelos executivos da multinacional. Eles não puderam desconsiderar, no entanto, a expressão pública e coletiva do descontentamento da sociedade com relação a esse tipo de prática abusiva da Mattel. O fato certamente será levado à alta direção da empresa nos Estados Unidos, que deverá analisar os riscos de continuar expondo suas marcas (Hot Wheels e Barbie, dentre outras) de modo indevido em um País, cujo processo de transformação política e social já não aceita mais determinados ultrajes neocoloniais.


Pelas ocorrências assinaladas nos últimos anos a Mattel deve estar sentindo que não dá mais para continuar atuando no Brasil como se estivesse em uma terra de ninguém. A prova de que os tempos estão mudando é que a empresa vem recolhendo milhares de produtos fabricados com problemas, a exemplo dos brinquedos contendo pequenos imãs que podem ser ingeridos por crianças e dos brinquedos contaminados com chumbo. Novidade também foi a multa de R$ 470 mil aplicada pelo Procon, após denúncia encaminhada pelo Criança e Consumo, por conta dos atributos enganosos de uma campanha publicitária da linha Max Steel.


Ao apelar diretamente às empresas para que reflitam sobre o problema, o Instituto Alana presta um relevante serviço ao mercado e à sociedade. Na carta dirigida ao diretor responsável pelos negócios da Mattel no Brasil, o Instituto Alana esclarece os motivos dos protestos na sede da empresa: "A quantidade alarmante de inserções comerciais de sua empresa direcionadas às crianças é antiética e abusiva, porque se aproveita da vulnerabilidade infantil para estimular o consumo desenfreado e sem reflexão, fomentar a amolação (´nag factor´) e o estresse familiar, além de promover padrões de beleza e valores questionáveis" (www.alana.org.br). Não se sabe que tipo de resposta a empresa vai dar, mas na hora da manifestação havia no pátio um grande boneco de Papai Noel de testemunha. E ele não fazia hô, hô, hô.

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