sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Futebol com preço, mas sem valor (II)

Enquanto parte do futebol europeu se fortalece com gestão profissional e com a criação de laços entre jogadores e torcida, o futebol brasileiro não consegue mais formar times consistentes porque está ancorado na cartolagem de vantagens recíprocas de faturamento de giro rápido de atletas. Clubes como o Barcelona representam um novo ciclo, moldado na eficiência desportiva, na transmissão de valores educativos, na multiplicação e internacionalização de franquias de escolinhas e na valorização de atletas polivalentes, aptos ao jogo em equipe, sem dispensar o brilho pessoal.

Em que pese a imagem de clube economicamente pujante, administrativamente eficaz e socialmente responsável, o Barcelona tem sido criticado nos últimos anos por ter negociado um espaço em seu uniforme para uma dobradinha de propaganda da Fundação Catar com o Unicef. Essa crítica é feita inclusive por Johan Cruyff, lendário craque holandês, identificado como um dos principais treinadores do estilo de jogo do time catalão. Cruyff acha que o Barça está obcecado por dinheiro. E seu ponto de desconfiança é a relação direta do clube com o Catar, emirado árabe cheio de petrodólares e petroeuros, que sediará o Mundial da Fifa em 2022.

Seja como for, em campo o Barcelona impressiona, encanta e puxa para cima a discussão sobre o futebol em todo o mundo. A goleada no Santos, mostrou com classe o quanto o sistema vigente no Brasil, mesmo lucrativo para os cartolas, move-se em sentido contrário a uma tendência de gestão que respeita o futebol como uma paixão sem, no entanto, deixar de tratá-lo como negócio. A derrotada santista poderia ter sido de qualquer outra equipe brasileira, do grupo circunscrito à manipulação de regras e preços de jogadores.

A ganância da cartolagem no Brasil explora a arte do futebol nacional, como antes explorava pau-brasil. Com a ascensão do teletorcedor, os resultados dos jogos, assim como a sequência das telenovelas, parecem se desenrolar conforme pesquisas de audiência. O torcedor que vai ao estádio passou a ser uma espécie de figurante de partida, papel de parede das arquibancadas; um tipo coadjuvante das marcas que patrocinam as transmissões. Isso faz com que a situação degradante do futebol brasileiro (derrotado em sua glória, mas vitorioso na exportação de atletas) seja um desafio a ser superado apenas com muita pressão das torcidas.

O torcedor precisa saber que ele tem a força para impor a construção de regras mais honestas para o funcionamento dos clubes e campeonatos. Para isso, talvez devesse ir além das tentativas de influenciar apenas técnicos e jogadores. O urro nos estádios, nas recepções dos aeroportos, nos dias de treino, poderia ser voltado também aos patrocinadores, boicotando seus produtos e suas marcas, quando esses patrocinadores agredissem o andamento dos times, interferindo negativamente em escalações e nos resultados.

A vaia que a Pepsi levou da torcida do Ceará, na final do campeonato cearense de 2011 e que fez a multinacional mudar a sua marca para preto e branco, quando voltou a entrar no gramado do PV, em jogos do alvinegro no Brasileirão, é uma prova de que há algum acatamento quando a torcida protesta. É de presumir-se que uma campanha de cancelamento em massa de assinaturas de canais de transmissão de jogos poderia surtir efeitos imediatos de atenção aos interesses do torcedor-consumidor.

Jogo de corpo não é falta no futebol. Na luta pelo fortalecimento dos clubes e do futebol brasileiro também não. Um movimento pacífico para tentar estancar a sangria de talentos até que cairia bem. Os europeus criaram algumas regras para limitar o número de jogadores estrangeiros nos clubes, evitando a asfixia dos atletas locais. Mesmo que o "jeitinho" dado pelos dirigentes de times daqueles países tenha partido para o recurso da dupla nacionalidade, o resultado da aplicação dessa barreira é de melhoria continuada.

O torcedor brasileiro poderia muito bem pugnar por limites na desova de craques; uma espécie de período de defeso dos atletas brasileiros ainda imaturos profissional e psicologicamente. Foi possível com crustáceos e peixes, ainda que muitas empresas de pesca burlem esse impedimento legal. Fazer algo parecido no nosso futebol, seria uma questão de preservação de um esporte que está profundamente identificado com a cultura brasileira. Talvez precisemos inventar um Ibama da bola, com a competência de desenvolver e executar políticas públicas voltadas para os cuidados com esse patrimônio nacional que são os nossos talentos futebolísticos renováveis.

A canibalização dos clubes pela cartolagem não é tão distinta do que vem acontecendo negativamente em muitas empresas, cujos bens e direitos são assaltados por executivos integrantes de esquemas rotativos de headhunters, que só pensam nos próprios bônus. No modelo de negócio altamente vitorioso no imediatismo, preponderante no futebol brasileiro, a situação é semelhante. Os velhos e apaixonados "olheiros" foram chutados para fora de campo por "caçadores de cabeças" do futebol com preço, mas sem valor.

A situação reflete-se em games como o "Cartola FC", um jogo de transação virtual de jogadores, no qual os usuários realizam compras e vendas de atletas, cujo preço sobe ou desce conforme seus desempenhos nas partidas do Brasileirão. É bem interessante esse exercício de apostar na atuação futebolística real, com efeitos nas arenas dos computadores. O que soa ruim é a legitimação da simbologia da cartolagem na denominação do jogo, dificultando que novas versões abram espaço para a valorização da descoberta de bons jogadores, fora dos territórios dominados pelos cartolas.

Por ser um esporte de origem inglesa, o futebol brasileiro herdou das tradicionais cartolas londrinas - chapéus pretos, com parte superior cilíndrica e elevada - uma identificação para a sua classe de dirigentes esportivos. Entretanto, as ações inconfessáveis de bastidores de muitos desses dirigentes, resultaram na aplicação pejorativa da palavra "cartola" a todos que enriquecem na gestão de clubes de futebol. E, como um tumor maligno metastático, o sistema da cartolagem está muito enraizado no País; o que é lamentável e revoltante.

O hábito de ganhar tubos de dinheiro, em detrimento da sustentação dos clubes e da degradação da imagem do futebol brasileiro, configura-se um ato ilegal e imoral de concentração e de vandalismo dos cartolas. Isso vale também para a questão regional, onde a formação de grandes equipes é prejudicada, debilitando o nível das competições nacionais. Basta observar que quando técnicos e jogadores se destacam nas equipes periféricas, o regulamento do campeonato brasileiro permite que, dentro do mesmo certame, eles sejam comprados pelos chamados grandes clubes, nem que seja apenas para neutralizá-los.

O pior é que, desesperançada, muita gente começa a planificar o valor dos atletas, nutrindo um certo desprezo pelos craques. Ora, os craques são jogadores admiráveis, na alegria do jogo, no lance inesperado, e não para ter o time como seu dependente. O Santos de Pelé, tinha também Gilmar, Pepe e Coutinho... o Botafogo de Garricha, tinha Nilton Santos, Didi e Gérson... o Palmeiras de Luís Pereira, tinha Ademir da Guia, Leivinha e Edu... o Boca Juniors de Maradona, tinha Perotti, Benitez e Pasucci... assim como o Barcelona de Messi, tem Xavi, Iniesta e Puyol. Agora, mais do que craques, os bons ciclos nas vidas desses times, contaram com a combinação de técnica, tática e visão coletiva. Quer dizer, antes de preço, é preciso ter valor.

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