sábado, 19 de maio de 2012

A inclusão dos muito ricos


As grandes transformações sociais, ambientais, econômicas e geopolíticas em curso vêm, de "revestrés", colocando em pauta os mais distintos motivos para nada ser como antes. Os diferentes contextos não deixam de ter em comum o fenômeno da seleção artificial criada pelas desigualdades. Assim, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos amargam a crise dos governos endividados, o Brasil tenta aproveitar o momento para corrigir a sua desproporcional dívida social. Em ambos os casos, parece inevitável a necessidade de tirar os muito ricos da condição suprassocial em que se encontram.

Os muito ricos precisam de ajuda para perceber o quão é importante se integrarem à vida em sociedade, a fim de se beneficiarem dos relatos cotidianos dos outros e terem oportunidades de transitar entre imaginários individuais e alcançarem a renovação do olhar que poderá levá-los a transgredir os limites do próximo e chegar a si. É que os megarricos acabam isolados nos aviões de poucos lugares, nas casas de muitos cômodos vazios e, muitas vezes, não conseguem ter sequer a liberdade de pedir licença a outras pessoas por não levarem em conta o que quer que seja consentimento.

É preocupante a situação dos muito ricos nas circunstâncias atuais. À medida que o mundo busca formas de superação dos descompassos decorrentes da falta de freios da sociedade do consumismo, eles ficam reféns do diálogo interno corrosivo, como se não tivessem problemas reais a superar. E este é o grande problema que os distanciam da reumanização indispensável à modelagem de um novo padrão civilizatório. Os muito ricos somente terão chance de reintegração ao corpo comum da sociedade se saírem da riqueza extrema que os leva a serem tão marginais quanto os muito pobres.

Do jeito que a complexidade do mundo passa olhando de lado, está difícil alguém rico demais conseguir ser pelo menos cidadão. A cidadania é uma conquista, não pode ser simplesmente comprada. E o muito rico às vezes não sabe o que é a expectativa de voto do eleitor comum, já que ele pode até bancar uma eleição de uma vez, sem estranhar o fato de que, no atacado, a democracia perde o valor e o título eleitoral fica sem sentido. Depois fica a lamentar que não sabe a razão de nos novos padrões de comportamento terem perdido o poder de influência.

A grande indignação dos filhos dos muitos ricos é quando se descobrem clones da vida extra sociedade, uma espécie de exílio, onde a apartação lhes tira a utilidade social. Nem de leis eles precisam para não serem o que são. As leis são produtos de esforços de adequação da justiça ao estágio de desenvolvimento de cada comunidade, mas para muitos dos muito ricos elas não valem nada. Independem delas para fazer o que quiserem. Vivem presos à uma distinção supostamente incontestável e lei é para quem anda solto, para quem precisa dessa coisa de respeitar os outros, de ter limites, convenções e regras harmonizadoras da coletividade.

Tamanha idiossincrasia não pode ter vida longa em um processo de mudança agressivo, no qual a cada ocasião diminui as áreas de manobra para quem fica nos extremos, confundindo desejo com necessidade. Do mesmo modo que os muito pobres terão que deixar a linha de sobrevivência, os muito ricos só terão sossego se escaparem da linha de fogo das campanhas e mobilizações contra toda sorte de alienação. Por isso, os muito ricos precisam aprender a passar a vida a limpo. Os muito pobres têm que dar a volta por cima e eles, a volta por baixo, saindo da trágica posição de marginalidade que a um só tempo os distancia e os assemelha.

 No olho do furacão, como estamos nesse momento de intensificação das crises econômicas, dos modelos de estado-nação e dos desencantos institucionais, os muitos ricos carecem de alguma política afirmativa para reintegrá-los. A concentração severa de renda e de riqueza é uma roubada, um fardo muito pesado para ser carregado em um mundo tão desigual. Isso, sabe-se bem, não é novidade; a novidade é que hoje, as pessoas estão mais atentas, com mais canais de comunicação e mais bem informadas de como essa desigualdade abismal entre os muito ricos e os muito pobres foi construída.

Aquela figura do Tio Patinhas (Walt Disney) divertindo-se com dinheiro na caixa-forte não existe mais, até porque o dinheiro hoje é praticamente virtual e esse hábito de tomar banho com moedas e cédulas não passa de história das histórias em quadrinhos. O cenário disruptivo atual sugere que os muito ricos poderiam muito bem se contentar em ser apenas ricos. O excesso de recursos muitas vezes rouba o usufruto da riqueza e isola socialmente quem é muito rico. Sem contar que boa parte dessa concentração decorre de fatores que geram os muito pobres, tais como a corrupção, o cassino financeiro, a mentalidade de colonizado e os mercados de drogas e da violência.

A expectativa de redução da riqueza excessiva tende a ser um objetivo social dos novos tempos, mas, como nos tratamentos de dependência química, os muito ricos precisam querer encontrar alternativas para o tratamento funcionar. Enquanto os muito pobres temperam a fibra em gambiarras de toda ordem, os muito ricos a atrofiam por terem tudo. A oportunidade de viver em sociedade pode ser um bom propósito para quem se encontra nessa situação de riqueza incondicional. Este é um conflito desesperador e não é bom para a sociedade que os muito ricos se desesperem, como não o é também para os muito pobres.

Para aqueles que se decidirem por recuperar o sentido de coabitação do ser social, o que não falta é o que fazer. Ações como a contribuição para que se tenha mais áreas verdes, cultivos hidropônicos urbanos, ambientes públicos mais acolhedores, professores mais bem remunerados e respeitados, acesso a bens e serviços culturais de qualidade e o recolhimento de quantias relevantes para o sistema previdenciário. São ações como essas que podem ajudar os muito ricos a passarem a ter a calorosa sensação de fazer parte de uma comunidade, deixando o território periférico do autoerotismo para sentirem o amor do semelhante na sua diferença.

Com a estabilidade ameaçada, os muito ricos têm direito à inclusão. Alguns bilionários europeus e estadunidenses partiram na frente na busca de auto-inclusão e se posicionaram a favor de que os seus governos sobretaxem os muito ricos. Pelo visto, despertaram para o fato de que não dá mais para fazer de conta que toda a desgraça social e ambiental que está conturbando o mundo não é com eles. Argumentam que estão dispostos a repartir também os sacrifícios de superação da crise. Que seja instituída, então, uma tributação pesada a situações como a de rendimentos de dinheiros operados em paraísos fiscais e a lucros sobre capital virtual especulativo.

Diante da sedimentação de uma nova mentalidade, voltada para a sustentabilidade, muitos dos muito ricos estão ficando com vergonha de fazer parte dos estratos de exclusão gananciosa. É possível que seja mesmo constrangedor ter tanta riqueza e tão pouco contribuir para o fundo público. Como tudo no mundo, esse perfil sempre teve suas exceções, com pessoas que construíram ou herdaram grandes fortunas que decidiram meter a mão no bolso e patrocinar causas sociais, ambientais e de inovação do bem.

Não é a toa que megarricos, líderes de grandes corporações europeias e estadunidenses, estejam propondo a elevação de impostos sobre os ganhos e o patrimônio dos mais abastados. Pode até não ser bondade, apenas instinto de preservação, mas o que tudo indica é que a sociedade vem cobrando coletas especiais no bojo de suas fortunas. Terão os muito ricos respostas para essa nova realidade?

http://www.flaviopaiva.com.br

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