quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A música na educação - Diário do Nordeste - 18/11/2010

A rigor, todos somos música. Não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música e os que ouvem (...) Por ser bem distribuída em todas as áreas do cérebro a música tem importância inquestionável em nossas vidas

O ano que vem será um ano muito importante para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica (Infantil e Fundamental) nas escolas brasileiras. Os sistemas de ensino do País têm até agosto de 2011 para se adaptarem a obrigatoriedade do exercício da música nas escolas, conforme determinado no texto da lei federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008.

A criação de condições para a formação artística, voltada para a cognição, a sensibilidade e a socialização estudantil, coaduna-se com as ações de reflorestamento cultural que vêm sendo implementadas pelo Ministério da Cultura em todo o País. A opção pela experiência envolvente da música é fundamental como componente intrínseco do cotidiano a um processo educativo inspirado na diversidade da cultura brasileira.

Em toda a história da humanidade a música esteve presente de alguma forma. Mesmo em épocas pré-linguísticas são evidentes os sinais da música como parte do dia a dia das pessoas e das comunidades. É comum vermos nas escavações arqueológicas a descoberta de instrumentos musicais que atestam a capacidade dos nossos ancestrais de lidar com padrões sonoros complexos.

A rigor, todos somos música. Alguns aprendem teoria musical ou a tocar instrumentos, mas não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música, os que cantam, os que tocam e os que ouvem, dançam, cantarolam e sentem sua presença no corpo e na mente. O que há, pode-se dizer, são pessoas inibidas de praticar suas habilidades musicais e pessoas que, ao se refinarem, refinam a música, merecendo assim manejo especial de madeira de lei na biodiversidade cultural.

O ato de cantar é mais natural do que falar. Para falar nós precisamos necessariamente usar um código reconhecido de comunicação, quer saibamos escrevê-lo ou não. Entretanto, para cantar basta deixar os sentimentos fluírem, agudo como o agudo dos pássaros e graves como o tom grave dos mamíferos. Em linhas gerais, inventar a canção foi mais simples do que inventar a fala. Contudo, fixar uma ou outra por meio de sinais adequados de transmissão talvez tenha grau semelhante de dificuldade e prazer.

Desde criança que gosto de inventar música. Com o saudoso amigo Pandé, fizemos o hino do nosso time de futebol; com o amigo Félix, costumava musicar romances de cordel. Fazia isso como uma movimentação espontânea da vontade, seguindo uma característica da musicalidade das sociedades nativas e africanas que se fundiram com o canto nômade dos aventureiros que povoaram o sertão. Dos aboios às cantigas de campo, a cognição musical está presente em minha vida por sincronia histórica do lugar onde nasci.

Na busca incessante de entender como pensamentos, sentimentos, esperanças, desejos e manifestações estéticas se originam, muitos estudiosos atribuem à música o poder de desencadeá-los. No livro "A música no seu cérebro" (Civilização Brasileira, RJ, 2010), o músico e neurocientista canadense Daniel J. Levitin, afirma que "a música pode ser a atividade que preparou nossos antepassados pré-humanos para a comunicação, por meio da fala, e para a flexibilidade eminentemente representativa e cognitiva necessária para que nos tornássemos humanos" (p. 294).

Afirmações como essa respaldam a decisão do Ministério da Educação e reforçam a ideia de que a música na escola não deve ter como objetivo preparar instrumentistas e cantores, nem transmitir gosto. Nada impede, porém, que essa prática estimule o talento daqueles inclinados a serem refinadores. Minha expectativa é que essa política abra espaço para que o estudante marque um encontro de caráter sugestivo com o que há de mais vibrante e desejante na essência humana.

Sempre tive comigo a sensação de que o modelo mental de um povo pode ser compreendido a partir da sua música. Uma mente germânica tem a sofisticação da música de Bach, Wagner e Beethoven, dentre outros compositores excepcionais, e os limites de conservadorismo que essa sofisticação impõe. Uma mente brasileira vive a se reinventar à flor dos neurônios, mas em geral ainda se desconhece no requinte das obras dos seus refinadores mais geniais como Villa-Lobos, Severino Araújo e Elomar Figueira de Melo.

A entrega do patrimônio musical brasileiro ao bel-prazer do mercado fonográfico, especialmente nos anos de neoliberalismo, causou danos extremamente graves no tocante à contribuição da música na atualização do desenho do nosso modelo mental. Por ser distribuída em todo o cérebro, e não apenas no hemisfério direito como se acreditava antigamente, a música tem importância inquestionável em nossas vidas. "O ato de ouvir, tocar e compor música mobiliza quase todas as áreas do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os subsistemas neurais" (LEVITIN, 2010, p.15).

Venho há uma década fazendo a experiência de associação da música à literatura, dentro da convicção de que ler e cantar é receber do jogo dos sons e das palavras a oportunidade de produzir visões. No livro/cd "Flor de Maravilha", combinei vinte histórias e vinte músicas; no livro/cd "Benedito Bacurau", experimentei o uso de vinhetas intercalando onze textos de literatura recitada; no livro/cd "A Festa do Saci", a música principal surge na história em uma composição coletiva dos personagens; e no livro/cd "A casa do meu melhor amigo", que lançarei no próximo dia cinco de dezembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, a música acontece inseparavelmente ligada ao contexto de cada um dos dez capítulos.

O que tenho aprendido com as respostas dos leitores a essa prática é que a liga da literatura com a música potencializa as emoções, não no sentido de orientar os sentimentos como ocorre com as trilhas sonoras no cinema, mas de dar mais volume às palavras, expandindo a noção de realidade no espaço de liberdade de interpretação que é disponibilizado ao leitor no campo que rebenta entre o que está escrito e que está cantado. Integrar a música ao fluxo de informações sensoriais faz bem à imagística da mente na sua construção de significados.

O processo cognitivo tem muita relação com as frequências vibratórias dos sons dos fonemas e das notas musicais. A vivência simultaneamente literária e musical aciona a consciência que temos das coisas para que possamos nos abrir às representações organizadas pelo ensino. Existem conteúdos que só encontram eco em nossa compreensão quando refletem nossos enunciados de sentimentos e emoções. Assim, o estudante pode se destravar da racionalidade para jogar com os pensamentos e seu próprio jeito de sentir o mundo.

No fenômeno perceptivo é muito importante que haja nodos de gratificação como inspiradores de estado de ânimo. Um dos grandes desafios da educação na atualidade é a busca de alternativas à aprendizagem que não desperta interesse por não ter a flexibilidade de estar no nível de habilidade de cada estudante. A minha experiência com o livro/cd, no qual a partitura integra o estatuto das ilustrações, tem demonstrado que a integração de linguagens multiplica as dimensões de trânsito da imaginação e da compreensão.

Os estudos de Daniel Levitin dizem que ouvir música aprimora os circuitos neurais, ajudando a preparar a inteligência para os desafios da linguagem e da interação social. Dentro de uma perspectiva cultural e educacional, o exercício do músculo da imaginação e da cognição, proporcionado pela reincorporação da música ao cotidiano escolar, é fundamental na reinvenção do Brasil



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