quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A cultura nas classes C e D - Diário do Nordeste - 10/2/2011


As criações simbólicas, as manifestações populares, os valores, as artes e a literatura não podem ser controladas pelas corporações (...) É a estética que define a ética. As pessoas necessitam de espelhos nos quais possam se reconhecer e ampliar seus horizontes.

A incorporação de um grande número de famílias brasileiras às classes C e D está normalmente associada ao mercado de consumo de itens antes adquiridos apenas por quem estava situado nas faixas de renda mais elevadas. O povo tornou-se visível porque passou a ter uma medida adequada aos parâmetros quantitativos do poder de compra. Essa configuração valorativa resultou na legitimação do grotesco como constante aspiracional descolada de uma sensibilidade cultural livre de induções comerciais.

As empresas de redes de relacionamento têm atraentes logradouros virtuais para essas pessoas; a indústria da distração oferece-lhes cantora trapezista; as corporações de telefonia disponibilizam dropes musicais; o mercado de alimentos e da linha branca cuidam para que a praticidade esteja presente em suas vidas; as montadoras fazem chover carros coloridos em longas e suaves prestações, enfim, o mundo da economia está atento para não deixar nenhuma moeda na mesa dos novos consumidores.

Seja em velhos ou nos novos modelos de negócios, o certo é que a cultura vendida para os ascendentes às classes C e D é a cultura do consumismo, do imediatismo, do nivelamento da noção de dignidade ao status de consumidor. Disfarçado de autonomia nas escolhas, o sistema de venda do consumo como ideal descartável vulgariza as artes, a literatura e as manifestações populares da cultura, produzindo uma grave impassibilidade intelectual e existencial.

Para quem ainda está experimentando o sabor de comprar, não é fácil escapar dos estímulos dos padrões de reconhecida predominância e de baixa busca por reflexão. Transpor as fronteiras dessa novidade que deu ânimo à vida privada imediata de tanta gente, para poder intervir em situações práticas de aproveitamento das possibilidades individuais e coletivas, é quase uma ameaça à satisfação de ser ou parecer semelhante aos demais.

E quem são os demais? Quem são os inspiradores daqueles que passaram a ter alguma renda, dos que melhoraram seus ganhos e estão na linha de tiro da economia de um impessoal mundo urbano-industrial-eletrônico competitivo? Pensando bem, a nossa escassez de papeis-modelo é assustadora. A sensibilidade cultural para dignificar a vida está cada vez mais rara nas nossas elites e isso perturba os critérios seletivos do amplo contingente de migrantes para as classes C e D.

Diante da atenção especial que os extremos requerem e diante dessa circunstância de vazio de sentido, a sociedade organizada, os poderes públicos e a parte mais decente do mercado, que está disposta a criar valor compartilhado, precisam chamar as artes e a literatura para uma relação mais estreita com a base da pirâmide. É a estética que define a ética. As pessoas necessitam de espelhos nos quais possam se reconhecer e ampliar os horizontes que se abrem a todo instante dentro de si.

Por que muitas empresas estrangeiras e nacionais estão investindo pesado no desenvolvimento de produtos específicos para esses novos consumidores, adequando composição, embalagem e especialmente preços de produtos, para alcançar resultados surpreendentes, e não se vê ações agressivamente semelhantes quando se trata de atrair usuários de cultura? Há de se pensar nessa questão, mais dia, menos dia. Do contrário, os avanços sociais conquistados até agora terão pernas curtas, serão mentirosos e o Brasil terá abandonado a chance de ser um País de inspiração sustentável.

A concentração cultural brasileira talvez seja mais alarmante do que a concentração de renda. Por inércia não dá para esperar uma manchete de jornal anunciando que a classe C puxa a produção e o consumo cultural. Não há como as pessoas procurarem produtos e serviços culturais de qualidade se é difícil até saber que eles existem. O crescimento do poder de consumo da população como um todo deve instigar novas formas de entender e pensar a gestão da cultura. Ao Estado, cabe cuidar para que os novos consumidores não fiquem à mercê do mercado.

As criações simbólicas, as manifestações populares, os valores, as artes e a literatura não podem ser controladas pelas corporações. Na região Nordeste, onde houve a maior inserção de pessoas no mercado consumidor brasileiro é urgente que sejam criados espaços de interlocução entre os órgãos de cultura dos nove estados, incluindo nessa catálise a articulação com as políticas de educação, cidadania, meio ambiente, cidades, ciência e tecnologia, turismo, esportes e juventude.

Do compositor Chico César, na Paraíba, ao Professor Pinheiro, no Ceará, as secretarias de cultura dos governos nordestinos têm o privilégio de contarem com secretários que representam as linguagens da música, da história, do jornalismo, do teatro, das artes plásticas e da produção cultural. Em tese, dá para fazer um esforço de conversa com os emergentes para descobrir como oportunizar o acesso dessa gente à cultura, tanto no que diz respeito à produção como ao consumo. Do mesmo jeito que a campanha do Classic Chevrolet, da GM, mostra que o carro "não é só meio de locomoção, mas uma conquista familiar", a comunicação das políticas de cultura também pode trabalhar mensagens com sinalizações afetivas associadas a hábitos e sonhos.

Aliás, esse é um esforço para ser feito nacionalmente, já que a massa de renda dos brasileiros das classes C (com renda familiar de 3 a 10 salários mínimos) e D (1 a 3) vem movimentando nada menos que R$ 900 bilhões por ano e a tendência é que, sem as sutilezas das referências de outros estilos de vida, a nova classe média continue gastando o que tem e o que não tem para manter o status das infinitas atualizações, geralmente desnecessárias, de produtos e serviços homogeneizantes, normalmente anunciados como enaltecedores de diferenças.

A cultura como um todo, mas especificamente no âmbito das supostamente mais vulneráveis classes C e D, também carece de atenção e de ação incisiva do Ministério da Cultura, das secretarias estaduais e municipais do setor, que atuam nos entroncamentos de consumo. O Brasil tem um destacado número de cidades médias nas quais estão concentradas grandes movimentações econômicas. São núcleos urbanos que puxam o comércio dos municípios de entorno e que podem ser facilmente identificados até por serem centros de luminosidade nas fotos noturnas feitas pelos satélites.

Tomando como exemplo alguns desses entroncamentos localizados no Nordeste, dá para dizer facilmente, sem precisar pesquisar, que Juazeiro do Padre Cícero e Sobral (CE), Feira de Santana e Vitória da Conquista (BA), Mossoró (RN), Imperatriz (MA), Caruaru (PE), Arapiraca (AL), Campina Grande (PB) e Picos (PI), estão entre as cidades que polarizam várias outras e podem muito bem servir de nodo para um desenho de um mapa da cultura voltado para um suporte de comunicação próximo às classes C e D na região nordestina.

O recorte a que me refiro não tem a pretensão de substituir qualquer ação existente. O que é prioritariamente apreensivo no consumismo da cidadania emergente brasileira é que a ação unilateral e unidirecional do poder econômico possa debilitar algumas oportunidades de fortalecimento cultural, indispensáveis ao desenvolvimento do País. O movimento de ascensão social iniciado com as transferências de renda, o aumento de empregos, a melhoria dos salários e o acesso ao crédito, pede evolução e, para isso, novas estratégias precisam ser pensadas e postas em prática, antes que as conquistas inclusivas entrem em deterioração.

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