quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

De Ushuaia a Punta Arenas - Diário do Nordeste - 3/2/2011


Essa expedição pela Terra do Fogo une a experiência do contato com cada lugar com informações leves e agradáveis (...) A imensidão daquele lugar, com seus belos e múltiplos recortes de ilhas e canais, impacta o nosso sentido de grandeza.
A primeira ideia era zanzar com a minha família em carro alugado pela Patagônia argentina e chilena. Depois, descobrimos que, por conta das barreiras de segurança levantadas contra tráficos e violências, não daria para passar pela fronteira nessa condição.
Como não há um mal que não traga um bem, a agência Tour de Monde, sempre antenada com destinos inusitados, sugeriu a alternativa de fazermos de barco o trajeto de Ushuaia, na Argentina, a Punta Arenas, no Chile, pelos canais da Terra do Fogo. Não poderia ter sido melhor.
A Terra do Fogo é um dos lugares mais emblemáticos do planeta. Recebeu este nome de Fernando de Magalhães (1480 - 1521), quando o navegador português descobriu a região em 1520, a serviço do reino espanhol. É de se imaginar a perplexidade que ele chamou para si ao deparar-se com um sem-número de fogueiras fixas (quando nas ilhas) e móveis (quando dentro de canoas) em brilho fugidio por trás das brumas.
Os habitantes do ponto mais austral do mundo andavam nus e tinham cerca de um metro e meio. Mesmo em temperaturas abaixo de zero grau, viviam praticamente em suas canoas e só desciam para acampamentos rápidos em busca de abastecimento de carne de guanaco e de frutas silvestres. Suportavam os ventos frios e a água gelada em situação de nudez porque untavam os corpos com óleo de lobo marinho e baleia e com azeite de peixe, permanentemente aquecidos pelo fogo.
No Museu Yámana, em Ushuaia, vimos esse povo nu em diversas fotos datadas da segunda metade do século XIX. Inacreditável, mesmo com todo o sentido químico daquela fantástica "plastificação" térmica. Só me conformei com essa descoberta depois que, já nas proximidades de Punta Arenas, vi na Ilha Madalena os pinguins carinhosamente distribuindo nos corpos uns dos outros a substância segregada por suas penas para servir de impermeabilizante do frio nas águas geladas.

Havíamos conhecido Punta Arenas quinze anos atrás, quando ainda não tínhamos filhos, e naquela época visitamos a pinguineira do Seno Otway, a 65 quilômetros a noroeste da cidade, mas sequer desconfiamos que aquele gesto paciente de um pinguim acariciando o outro está ligado a algo tão prático dos cuidados com a sobrevivência. Naquele recôncavo a população de pinguins não chega a dez por cento dos 70 mil casais que cavam seus ninhos no barro da Ilha Madalena e, para se localizarem, zurram literalmente como jumentos.
É pelos meses de janeiro e fevereiro que os filhotes ganham autonomia nas colônias da espécie pinguim-de-magalhães. Passear por essa região nesse período é bom para quem quer conhecer de perto essa ave marinha típica do pólo sul e muito tranquilo porque a temperatura nas horas de passeio está, via de regra, por volta dos sete graus e o dia tem dezoito horas de sol. Mesmo com o constante e frio vento patagônico, o dia estava claro na manhã que visitamos a pinguineira da Ilha Madalena.
Na expedição ao Cabo de Hornos, o clima ajudou como pôde. O Stella Australis, que é um barco da indústria chilena, projetado especificamente para navegar na região, enfrentou mar aberto e estreitos canais entre ilhas para chegar a esse bloco de rochas, descoberto em 1616, que é o ponto de encontro dos oceanos Atlântico e Pacífico.
Desembarcamos em botes e subimos uma escada de 160 degraus, com chuva fina, vento frio e uma temperatura de dois graus Celsius. O topo, onde fica o farol está a 425 metros de altura. Do alto, observamos o fim do mundo. Apenas 600 quilômetros separam aqueles mais de 55 graus de latitude sul das geleiras da Antártica.
Entre um pouco de chuva e um pouco de presença solar, conhecemos a baía de Wulaia, na Ilha Navarino. A emoção muda de semblante como muda a geografia. Além do contato com a ampla variedade de organismos, do tipo líquen e musgo, de vidas marinhas e vegetação de bosque, vimos dois condores planando, com suas asas de mais de três metros de envergadura, e caminhamos na praia em que o naturalista britânico Charles Darwin (1809 - 1882) parou para conhecer os canoeiros Yámana e colher material de pesquisa, na viagem que fez a bordo do navio Beagle (1833), quando formulou a "Teoria da Evolução das Espécies".

Não é em vão que a parte da Cordilheira dos Andes que ocupa a Terra do Fogo é chamada de Cordilheira Darwin. Com picos de dois mil metros, cobertos de capas de neve compactada que, nesse período (verão), degelam em forma de cascata. A área está cheia de glaciares, que são massas de gelo muitas delas milenares.
Entramos pelo fiorde Keats e ancoramos na enseada Agostini para conhecer o glaciar Aguila. Caminhamos pela praia de seixos e mexilhões, contornamos a lagoa e ali estava ele, o imenso bloco de gelo azul. Em um outro trajeto da nossa viagem conhecemos um glaciar preto, no Cerro Tronador, da província de Rio Negro, na Argentina.
Os glaciares impressionam pelo que representam na história da terra. Lembro-me da primeira vez que vi um, o glaciar Grey, no parque das Torres del Paine. Não sou muito de beber, mas naquele dia tomei uma dose de uísque com gelo milenar apanhado com a própria mão.
Desta vez não deu para subir até Puerto Natales, com os nossos filhos, para compartilhar essas outras paisagens patagônicas. Tivemos que alterar o nosso roteiro de viagem por conta da justa paralisação do povo da Região de Magalhães contra um acintoso aumento no preço do gás, insumo vital para quem vive em um lugar tão frio.
Do jeito que deu para ser, a viagem foi muito boa e proveitosa. O trecho de barco entre Ushuaia e Punta Arenas vale por si umas férias. Em Ushuaia o meu filho Artur, que gosta de caranguejo, devorou boa parte de uma centolla, que é o caranguejo gigante das águas frias do Canal de Beagle; em Punta Arenas, o irmão dele, o Lucas, participou das manifestações contra a alta do gás, empunhando a bandeira de Magalhães e a Andréa foi bicada por um pinguim.
Ushuaia é o centro político da zona austral argentina e Punta Arenas, a capital da região chilena de Magalhães. No século XIX, ambas foram presídios de criminosos reincidentes e presos políticos; ambas são embelezadas por uma arquitetura de casas de tetos coloridos e ambas abrigaram colonos croatas, iugoslavos, suíços e espanhóis. Ushuaia está no Canal de Beagle, pelo lado da Ilha Grande da Terra do Fogo, e Punta Arenas, no Estreito de Magalhães, no extremo continental.

Em um grupo de 140 passageiros, de 19 nacionalidades, embarcamos no navio Stella Australis, com suas cabines de janelas panorâmicas e uma tripulação de ecléticas habilidades. Pâmela, Dominique, René... alguns nomes ficaram gravados pela simpatia e pela atenção confortável dos tripulantes. Ao longo do cruzeiro, eles se revezavam em palestras sobre temas relacionados às expedições, na hora do desembarque e nos momentos de recarregarmos as energias.
Esse cruzeiro de expedição pela Terra do Fogo, ligando Ushuaia a Punta Arenas, une o aprendizado da experiência do contato com cada lugar e uma agradável viagem com informações leves sobre a flora, a fauna, a geografia, a etnografia e a história dessa espetacular região sul da América do Sul.
A imensidão daquele lugar, com seus belos e múltiplos recortes de ilhas e canais, impacta o nosso sentido de grandeza e nos aproxima de qualquer senso perdido de contemplação. O cenário de silenciosas montanhas nevadas, glaciares, cascatas, bosques, aves e animais marinhos, torna-se ainda mais encantador pelo que significa de história natural, geografia humana e a cultura das grandes navegações.





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