quinta-feira, 7 de julho de 2011

A república feminina (I) - 7/7/2011 - Diário do Nordeste


O Brasil está há seis meses sob o comando de uma mulher. Uma mulher que colocou outras mulheres na liderança dos principais programas do governo e na sua coordenação política. As ministras Miriam Belchior (Planejamento), Gleisi Hoffman (Casa Civil) e Ideli Salvati (Relações Institucionais) têm currículo sólido, competência testada e um indiscutível compromisso com o País. Olho para elas e não vejo o poder mudando o corpo, vejo a nação mostrando a alma.

Por outro lado, escuto um renitente discurso masculino ancorado na negação e um tanto ansioso para frear a efetiva confirmação da representação feminina na política. É até compreensível que, oscilando entre a comédia e o drama, haja uma relutância diante do fantasma de uma inconsciente desforra histórica. A insistência no transplante de um determinado padrão de domínio para o âmbito da diferença de gênero é uma simplificação desastrosa.

Os esforços de desqualificação se acumulam nas dúvidas sobre a capacidade da presidenta Dilma Rousseff e das suas ministras de governar, de resolver problemas e de intervir em situações complexas. Apedrejam, cobram atitudes caricatas e, inspiradas pela maneira como as mulheres são socialmente vistas, fazem apostas de que o Brasil pode perder o prumo no instável e movediço terreno da nova ordem multipolar.

Essa busca inútil de uma razão para justificar a inclinação brasileira rumo a uma república feminina tem ofuscado muita gente enquanto, por via de regra, a cidadania brasileira cambaleia diante de deslavados escândalos de corrupção, da crise de partidos sem bandeiras, de sindicatos recaídos ao peleguismo, de parlamentos omissos e de um judiciário sedento de fazer o papel de legislador.

Toda vez que penso no cenário mundial de desemprego e que no Brasil esse problema ocorre por falta de qualificação, me vem à cabeça a ideia de falência da nossa elite econômica, mas toda vez que penso também que a questão da escassez da produção no campo não é mais de distribuição - pois atualmente existem recursos para compras locais - lamento o estado de debilidade a que chegou a elite dos movimentos rurais.

A impressão que tenho é que esses e outros inúmeros gargalos da vida social, política e econômica brasileira há muito vêm pedindo uma guinada quanto ao jeito de serem tratados. Nesse sentido, o processo de ascensão feminina ao poder traz consigo uma sabedoria ainda pouco experimentada em dimensões robustas de gestão, que pode levar a soluções diferenciadas, conforme ganhe espaço no enredo da nossa sociedade.

A história do Brasil praticamente só mostra traços da mulher como um personagem não declarado. E é exatamente nessa vivência de clandestinidade que acredito se encontrar guardado o segredo da compreensão e do agir intuitivo e racional, acumulados século após século na mente e no sentimento feminino.

Ao ser criada na fazenda a mulher nativa perdia a liberdade da convivência com a sua tribo, mas na vida doméstica ganhava o acesso ao que pensavam os donos da casa. O homem índio, não, este era submetido a ser escravo-vaqueiro e não conseguia facilmente entender o que se passava na cabeça dos seus algozes.

Aluhy, a irmã do lendário Mandu Ladino, guerreiro tapuia do final do século XVII, cuja história foi romanceada pelo psiquiatra e escritor piauiense Anfrísio Neto (Halley, Teresina, 2006), ainda era menina quando foi capturada. Mesmo tendo crescido e se tornado mãe entre fazendeiros era vista por eles com rompantes de desconfiança: "Não podia se iludir, se levar por aparência e esquecer que aquela índia, apesar de criada por eles tão dócil e delicada, na verdade, continuava sendo uma bugra e, nesta raça de gente, todos sabiam, não se podia confiar" (p. 245).

A mulher negra obrigada a trabalhar nas residências dos donos de usinas, dos cafezais e das minas de ouro, também teve a oportunidade de ouvir o que diziam no interior da Casa Grande, condição que lhe deu uma sensível diferença perceptiva com relação ao escravo homem - açoitado nos canaviais e nos campos de café - quanto ao entendimento do que pensavam senhores e sinhazinhas. Além de estar nos lugares das conversas mais íntimas, a escrava saia para as ruas, vendendo frutas e artesanato, como é comum nas telas de Jean Baptiste Debret.

Mesmo a mulher branca, limitada em sua liberdade de deixar fluir o feminino nos aspectos que pudessem entrar em conflito com o masculino, reuniu conhecimentos que raramente teve a oportunidade de por em prática. No Brasil, mulheres brancas como a zoóloga Bertha Lutz, que liderou o movimento de conquista do voto feminino, na década de 1930, demonstraram claramente o potencial aglutinador e a força política da mulher.

Há pouco mais de uma década, conversando com a cantora maranhense Anna Torres sobre o feminino, resolvemos fazer uma música intitulada "Degrau por degrau" (gravação de Cecília Colares, no CD Jogo Rápido, 2002), com letra dizendo assim: "Você passa da conta / e não se dá conta que o mundo mudou / Eu vou à luta degrau por degrau / cantando Olympe de Gouges". Estávamos ali falando do presente, mas a partir de um longínquo processo histórico pouco elucidado. Na segunda metade do século XVIII, Olympe de Gouges enfrentou a autoridade masculina presente na Revolução Francesa, escrevendo uma "Declaração dos direitos da mulher e da cidadã" e foi guilhotinada por isso.

Se puxarmos bem pela memória veremos que a mulher está mais bem preparada do que o homem para assumir o salto da curva da evolução para um novo ciclo da humanidade. O passado está no presente, não ficou para trás, e a "ciência" do feminino pode ser uma alternativa para a sustentabilidade. Com Dilma, Gleisi, Miriam, Ideli e outras ministras, a sociedade brasileira se permite experimentar efetivamente a autoridade do discurso feminino. A fala silenciada por séculos e séculos de modelo masculino abre um canal de comunicação que pode ser o início da construção de novos referenciais.

Não se trata de um revolucionarismo de gênero, mas da oportunidade do exercício de uma nova e urgente essencialidade, posta em cena por aquele ser que não falava, mas ouvia. A filósofa paraibana Simone Marinho resume os esforços de reflexão da mulher, diante das mais diversas circunstâncias, como manifestações destituídas de um senso de movimento feminino ou feminista, consciente e explícito. Numa entrevista concedida a Carolina Desoti, para a revista Filosofia, ela diz que o ponto comum entre a "amante", a "beata" e a "herege" é a consciência pela luta dignidade humana, independentemente de gênero" (Escala, jun2011, SP, p.9).

No entendimento da professora paraibana o posicionamento da mulher "pós-revolução sexual" não deve ser o de "superar o homem", muito menos se for movida por algum tipo de "rancor histórico". Simone Marinho acha a disputa de gênero algo muito pequeno para quem aprendeu a se colocar, não só como mulher, mas como ser humano, que superou tantas adversidades e ainda tem tantos desafios a enfrentar (idem). Ao ler essa opinião, enquanto reflito sobre esse momento do Brasil, com a presidenta e o primeiro escalão da república sob o poder das mulheres, deduzo que a diferença no fazer feminino está na autonomia do seu pensamento ao longo da história. (Continua na próxima quinta-feira, dia 14/07/2011).

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