sexta-feira, 15 de julho de 2011

A república feminina II - 14 / 07/ 2011 - Diário do Nordeste


Diante do esgotamento dos recursos naturais do planeta e da crise de significados a que a humanidade se entregou, só consigo enxergar três opções de destino: (a) seguirmos com a supremacia do pensamento masculino até desaparecermos enquanto experiência humana; (b) esperarmos que as catástrofes naturais promovam uma apavorante redução demográfica, levando-nos a tomar consciência e a agir pelo medo extremo; e (c) alternarmos a matriz predominante do poder para o feminino.

A minha opção é a terceira. O padrão masculino exauriu-se em si mesmo. No livro "As 100 maiores personalidades da história" (Difel, 2001, Rio de Janeiro), o pesquisador estadunidense Michael H. Hart classifica e resenha líderes religiosos, políticos, inventores, escritores, filósofos, exploradores, artistas e inovadores do mundo, que conduziram a vida de milhões de seres humanos e que influenciaram a ascensão e a queda de civilizações. Mas em uma centena de nomes, apenas dois são de mulheres: Isabel I, em 65º lugar, e Elizabeth I em 94ª posição. O que revela uma realidade de determinação masculina.

Nesse emaranhado histórico não podemos esquecer de que homem ou mulher, todos somos seres humanos, com nossas qualidades e defeitos masculinos e femininos. A pesquisadora colombiana Susana Castellanos de Zubiría, em seu livro "Mujeres perversas de la historia" (Norma, 2008, Bogotá) biografa personalidades cujas memórias contradizem a tradicional ideia que relaciona a mulher com a bondade, a ternura, a vida e o amor maternal. Ela mostra, entretanto, que o ícone da mulher malvada está associado a personalidades que inspiraram esse imaginário, mas que boa parte dessa percepção não passa de fantasmas masculinos.

Com ambição política e paixão religiosa, em 25 anos no poder a rainha Isabel I estabeleceu a Inquisição espanhola - condenando milhares de pessoas à fogueira -, expulsou judeus e muçulmanos da Espanha, financiou Cristóvão Colombo e iniciou a destruição dos povos nativos do continente americano. A importância das suas decisões foram relativizadas por Michael Hart porque ela reinou em dobradinha com o marido Fernando de Aragão (p. 372). Já Elizabeth I foi considerada a mais notável das rainhas inglesas, em um reinado de 45 anos, marcado pela prosperidade da pirataria econômica e pela conquista da posição de maior potencia naval do mundo (p. 518).

Exemplos como esses revelam que não deve haver tanta diferença de gênero quando o assunto é mentalidade ardilosa e abuso de poder. Nos relatos que faz de mulheres lendárias, bíblicas, governantes e cortesãs, Susana expõe imagens de ambições, ressentimentos, vinganças e brutalidades por trás de lágrimas, sorrisos e perfumes. Para cada Nero, Calígula, Átila e Hitler há sempre um paralelo de Teodora, Lucrecia, María Tudor e Ilse Koch. Além disso, há as mulheres que, quando governantes, fazem questão de manter a simbologia do masculino, como foi o caso de Santa Irene, conhecida também por ter furado os olhos do filho, herdeiro natural do trono de Constantinopla (797 d.C), e, ao assumir o poder absoluto se fazer canonizar como "a piedosa".

Susane Castellanos ressalta que ao confrontarem os padrões masculinos as mulheres "tendem a ser julgadas mais ferozmente porque a despeito das crueldades que tenham cometido são acusadas de transgredir os limites do seu gênero" (p. 356). Pois é exatamente nesse ponto de transgressão dos limites da capacidade da mulher de governar que se atualiza o discurso masculino que tenta desqualificar o exercício da autoridade pública feminina, liderado pela presidenta Dilma Rousseff no Brasil. O que antes, desde Eva, vinculava o feminino ao mal, passa a associar a mulher à incompetência administrativa.

Mulheres como Indira Gandhi (Índia), Golda Meir (Israel) e Margaret Thatcher (Reino Unido) sofreram na segunda metade do século passado, cada qual a seu modo, por seus motivos e circunstâncias, essa pressão do masculino. Angela Merkel (Alemanha), Cristina Kirchner (Argentina) e Christine Lagarde (FMI) passam por isso na atualidade. Projetam-se muitas vezes sobre os ombros da mulher que assume o poder algumas expectativas fora de cogitação imediata, tal como evitar a volta do nacionalismo tribal alemão, para salvar mercados comuns, frear repentinamente o declínio econômico argentino e fazer milagres financeiros para socorrer gregos e troianos da bolha especulativa em que se meteram.

Pouco se comentam episódios em que a mulher, mesmo em situações de grande precariedade igualitária, conseguiu feitos impensáveis. Na revista História Viva (Duetto, julho de 2011, São Paulo), tem o relato do sequestro de moças pelos pioneiros de Roma, como recurso para garantir a sobrevivência da cidade que é emblemático. A atitude romana, contra os vizinhos latinos e sabinos, resultou em um conflito que só foi resolvido porque "as novas senhoras de Roma se colocaram entre seus maridos e seus pais para negociar a paz" (Anne Logeay, p. 29). Esse exemplo de negociação de paz ilustra bem uma habilidade emocional e política decorrente da necessidade de quem primeiro vivenciou a intimidade de outros mundos.

Embora com abordagem limitada ao ponto de vista francês a revista apresenta um painel de recortes voltado para a noção de como os interesses políticos, econômicos e religiosos definiram o papel dos sexos na sociedade. Mostra por exemplo como a mulher romana, mesmo considerada menor de idade perante a lei, participava de manifestações políticas; como os povos alemães valorizavam a virgindade como garantia da conservação das suas características étnicas; como os movimentos revolucionários franceses do século XVIII passaram a reconhecer o casamento "não como uma união sagrada e indissolúvel, mas como um contrato civil, firmado entre pessoas livres perante a lei e que, portanto, poderia ser rompido pelas partes envolvidas (Alain Pigeard, p. 42).

Quem deu uma grande contribuição para que a mulher não fosse mais engessada ainda aos interesses masculinos foram os camponeses que, diferentemente dos aristocratas do século V e VI não faziam alianças familiares (Jean Verdon, p. 35). A ascensão dos pequenos burgueses encheu a vida dos casais de disciplinas apoiadas em arranjos sociais. E foram os operários que dispensaram a legalidade do casamento para viverem juntos. Ou seja, independentemente de causas e contextos, a mulher foi (e talvez ainda seja) mais livre nas classes populares. Esse é um outro elemento a ser acrescido como experiência feminina de constante reinvenção no jogo da funcionalidade dos sexos que a afastou a mulher dos negócios, para ocupá-la exclusivamente das funções domésticas (Scarlett Beauvalet, p. 39).

Da mesma forma que foram criadas tantas barreiras simbólicas e tantas regras de conduta relativas à imagem da mulher, nunca ninguém pôde proibi-la de sentir e de desejar. Claro que ao ocupar espaços tradicionalmente masculinos ela inseriu a sedução na zona de competição do bélico. Pelas opções de destino postas não há mais como insistir na argumentação de que a virtude é sempre um atributo masculino e que o papel de assegurar a descendência continue sendo a única atribuição feminina. Tudo isso torna a missão de Dilma, Gleisi, Ideli, Miriam e de todas as mulheres que estão em qualquer instância de poder na formação da república feminina do Brasil, um desafio não só com relação à gestão, mas com a afirmação da própria alternativa do poder feminino.


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