quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O Mali e a alma do deserto (final)

Flávio Paiva

Os levantes, ataques e bombardeios ocorridos no Mali fazem parte de disputas de poder que são internas e externas. O presidente interino, Dioncounda Troaré, que pediu ajuda internacional nos conflitos, não se entende com Amadou Sanogo, comandante da junta militar golpista, que está imobilizado pelo exército francês. A França, por sua vez, tenta afirmação política e militar na conjuntura internacional ao procurar comandar a operação, mas os Estados Unidos, também em crise de referência, não acham uma boa ideia. Ambos, assim como as demais potências europeias, sentem suas lideranças na região ameaçadas pela China, que vem avançando no país, dentro de uma paciente estratégia de ocupação da África.

A China é hoje o maior parceiro comercial do continente africano, ao qual vem expandindo investimentos na recuperação e montagem de infraestrutura de ferrovias, estradas, pontes, aeroportos, casas, hospitais, escolas, fábricas, sistemas de fornecimento de água e formação técnica agrícola e industrial. Transfere tecnologia e experiência de gestão, vende produtos, presta serviços, exporta gente e abre seu mercado aos produtos africanos, conquistando confiança e recebendo petróleo e diamantes, dentre outras contrapartidas. A paisagem pintada pelos chineses não é, portanto, apreciada por Europa e EUA, ainda em situação de abalo provocado pelos efeitos da desglobalização.

A última vez que EUA e França disputaram publicamente a coordenação de tropas na África foi em 2008, quando da insurreição ocorrida no Chade, país do centro-norte africano, onde há grandes reservas petrolíferas e um lago gigantesco de preciosa água doce. A França, do então presidente François Sarkozy (2007 - 2012), tentou liderar uma força internacional de países da União Europeia, a Eufor, mas fracassou. A despeito de razões geopolíticas e econômicas, tanto Sarkozy sabia quanto Hollande sabe que "guerra santa" e "guerra contra o terrorismo" são sempre um bom remédio para baixar a temperatura de pressão popular.

Nem todos os que falam francês são franceses, pensam ou sentem em francês. Somente no Mali, além da língua oficial francesa, grupos falam dogon, gozo, hassania, peul, songhai e tamachek. Na hora de uma guerra, sabe-se lá o que se passa por dentro da cabeça de cada um, inclusive nos seus campos de vínculos com a vizinhança. Nunca é demais lembrar que o mapa da África foi desenhado de fora para dentro e que o território da alma do deserto não se limita a essas fronteiras. A linguagem comum dos povos da região do Mali parece ser a arte e, entre as artes, a música ocupa lugar de destaque.

Os artistas do Mali têm demonstrado que não querem a desagregação. Eles se movimentam e cantam com profunda vitalidade em defesa da união no país. O Mali é um lugar encantador e arriscado, onde coexistem intensamente beleza, riqueza, devastação e pobreza. O regueiro Tiken Jah (Costa do Marfim) gravou a música "An ka Wili" (Vamos subir) convocando a população a se unir para não deixar que a guerrilha divida o Mali: "O país vai deslizar das nossas mãos (...) Cadê os descendentes do Sundiata?". O MC Soumy saiu com o rap "Sini kelle ye" (Amanhã é na luta) instigando jovens a se juntarem ao exército e às tropas francesas para lutar.

Diante da brutalidade estabelecida na guerra sangrenta pelo poder político e econômico, a arte incita as pessoas a escutarem a voz do coração. Foi aí que um grupo de mais de quarenta artistas da região vestiu todas as cores dos seus tecidos da terra e lançou o canto de paz "Mali-ko", em vídeo espalhado para o mundo pela internet desde o dia 17 passado. Os sentimentos de cantoras, cantores e músicos sobre a situação têm valor significativo para uma gente que vive a música como parte da sua espiritualidade.

Entoando a tradição do "blues" do deserto, a cantora Kaïra Arby convoca uma tomada de mãos pela paz. Fatoumata Diawara (Costa do Marfim) pergunta com em sua sensualidade o que está acontecendo para pessoas do mesmo sangue se matarem. E lembra que no dia em que os povos africanos se unirem o continente será mais forte. Em marcação de "hip hop", Amkoullel entra no diálogo reforçando o convite para que todos se deem as mãos e juntos sejam mais fortes.

O guitarrista e cantor Baba Salah saca a história no tempo de Sundiata Keïta quando o Mali "era o sol que iluminava os quatro cantos do mundo". E o cantor Soumaila Kanouté pede a palavra para dizer que "o Mali é indivisível". As cantoras M´baou Tounkara, Oumou Sangaré e Fati Kouyaté cantam pela preservação dos valores, contra o risco de jogar fora a história do país e para dizer que a guerra não respeita ninguém. A dupla Amadou e Mariam louva a força da união, o cantor Mylmo apega-se aos princípios legados pelos heróis do país, citando novamente Sundiata Keïta, e a bela Nahawa Doumbia encerra o canto evocando paz na África e paz no mundo!

Ao ver, ouvir e compartilhar o videoclipe de "Mali-ko" na internet, voltei a ler com os meus filhos o surrado livrinho "Sundiata - o leão do Mali", de Will Eisner, e tirei algumas horas para me deleitar com a coleção História Geral da África, volumes IV (org. Djibril Tamsir Niane) e VII (org. Albert Adu Boahen), Unesco/Cortez Editora, São Paulo, 2011, onde encontrei muito da incrível história do Mali, na condição de império da África Ocidental.

Estavam lá os dispersos grupos de comerciantes de ouro e de sal, as aldeias do rio Níger e o início das rotas transaarianas no século IX. A agricultura, a criação de animais, a metalurgia, as caravanas de mercadores de óleo de dendê, de cobre, noz de cola, marfim, algodão e o esplendor cultural e econômico de Djenné no século XV. Que fantástica mistura de lenda com história! A hegemonia do Sasso, entre os anos de 1180 e 1230, suas guerras contra os muçulmanos e o domínio da região pelo rei-feiticeiro Sumanguru Kante, com seu corpo invulnerável ao ferro, mas que tinha como ponto fraco não poder ser ferido por esporão de galo branco.

E o Sundiata, hein? O Sundiata era um garoto quando seu povo foi destroçado pelo exército de Sumanguru. Tinha paralisia nas pernas e, por isso, foi tratado com desdém. Anos depois reuniu grupos subjugados da região e comandou uma série de façanhas militares, derrotando Sumanguru e criando o Mali, em 1235. No poder, Sundiata definiu alguns princípios constitucionais para seu país e para os povos federados, com a codificação de alguns costumes e interditos que ainda hoje inspiram as relações naquela região. Teve a sabedoria de valorizar o violão tetracórdio (balafo ou dan) utilizado pelos contadores de histórias, que havia sido popularizado por Sumanguru. No seu governo, Sundiata Keïta adotou o canto conhecido por Boloba (a grande música), composto pelos griôs para ouvir e para dançar e criou as condições para o florescimento da matemática, da literatura e da arte.

O império do Mali só entrou em declínio depois do século XV com as grandes navegações, época em que dirigiu a atenção para o litoral, em negociações com portugueses que, dentre outras coisas, trocavam um cavalo por quinze escravos inimigos. Enfraqueceu, entrou em processo de divisão e, na segunda metade do século XIX, caiu na cota da França, quando as potências europeias ratearam o continente africano para todo tipo de exploração. Foram muitos os movimentos de resistência, mas o Mali, assim como quase duas dezenas de colônias francesas na África, só conquistou a independência em 1960. Hoje, com mais de um milhão de quilômetros quadrados e cerca de quinze milhões de habitantes, vive o paradoxo de, por um lado, ser acusado de entreposto de pirataria e, por outro, de ser uma das fontes de tendência de moda e da música internacional. Paz para o Mali!!!
 

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