quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Mali e a alma do deserto (I) - 24/01/2013

Faz pouco menos de uma década que passei a dar atenção especial ao Mali, país localizado ao sul do deserto do Saara, no noroeste africano, sem saída para o mar, mas contemplado pelas divinas águas dos rios Níger e Senegal. No sentido horário, o Mali tem fronteiras com Mauritânia, Argélia, Níger, Burkina Faso (antigo Alto Volta), Costa do Marfim, Guiné e Senegal. É um país fascinante, de gente que encontrou a beleza do humano na arte, na cultura oral e na imensidão do deserto.

A minha admiração por esse país começou quando comprei o livro "Sundiata - O leão do Mali" (Editora Schwarcz, São Paulo, 2004) para ler com os meus filhos e eles, assim como eu, imediatamente colocamos essa lenda africana, contada em quadrinhos pelo genial Will Eisner (1917 - 2005), entre as nossas preferidas. Lemos e relemos tantas vezes essa história e isso fez com que passássemos a notar mais as coisas do Mali. E esse país tornou-se um lugar com importância afetiva na nossa memória.

Na abertura do livro, Eisner conta que no início do século XIII as pessoas que viviam às margens do rio Senegal eram subjugadas por Sumanguru, o poderoso rei do Sasso. Explica que ao expandir suas conquistas esse soberano, com força militar e de feitiçaria, derrotou e passou a dominar um povo mercador de sal e de ouro que havia fundado, às margens do rio Níger, uma nação chamada Mali. Nesse misto de história e de lenda, um pequeno príncipe coxo foi poupado da morte por não representar uma ameaça ao poder que se estabelecia. Essa criança era o Sundiata Keïta, que viria a ser um herói nacional.

Depois de estar com os sentidos aguçados para a existência do Mali, comecei a descobrir que o compositor e cantor afro-pop Salif Keïta nasceu lá. Daí, escutando o blues violado de Ali Farka Touré (1939 - 2006), li na capa do CD que o sujeito era malinês. E veio a Oumou Sangaré, com sua pegada contemporânea e apelo ancestral, a Rokia Traore, em refinados arranjos vocais, e, mais recentemente, numa descoberta do Lucas (13) e do Artur (11), a dupla Amadou e Mariam. Ano após ano fomos dando de escutar acidentalmente cantadores dessa terra de contadores (griôs) e suas músicas ao passo e compasso das caravanas de camelos em tempestade de areia pelas dunas do Saara.

Abro certa vez uma revista na sala de espera de um consultório médico e uma reportagem cheia de fotos impactantes mostra que, desde 2001, acontece anualmente, no mês de janeiro, um evento musical no Mali, o Festival do Deserto, inspirado nas festividades dos tuaregues, pastores e comerciantes saarianos que, depois de temporadas nômades pelos diversos países que habitam, tradicionalmente se encontram num oásis do norte do Mali, para celebrações de dança, poesia e música, para beberem uns nas fontes de experiência dos outros, saciando a sede das trocas e munindo-se de informações para tomadas de decisões. Pouco tempo depois compramos o CD duplo "Desert Blues" (Rough Guides, Hong Kong, 2010), com três horas de música em 23 faixas contendo parte da narrativa sonora do festival.

O Festival do Deserto é formado especialmente por artistas norte-africanos e de países europeus que colonizaram o continente, mas é um evento aberto também à música do resto do mundo. Mesmo com endereço definido apenas por coordenadas de latitude e longitude, com temperatura diurna de 40 graus e noturna abaixo de zero, com palco em plenas dunas do Saara, sem estrutura formal de acomodações e acesso em carro tracionado ou no lombo de camelo, o evento ainda consegue juntar até dez mil pessoas para desfrutar das apresentações da música atemporal do deserto em diálogo com guitarras e programações eletrônicas.

Com o passar do tempo, fomos sabendo cada vez mais e por diversas fontes sobre as expressões artesanais e artísticas do Mali, nas joias de Timbuktu, nas cerâmicas de Segov, nas máscaras de Dogon e nos tecidos coloridos que dão o tom do país, no seu esplendor estético e na sua força simbólica. Assim como a música, tudo isso nos faz crer na grandeza da alma cultural malinesa. Na condição de grande produtor de algodão, o Mali foi além da economia, tecendo significados e valores em panos, por meio do tingimento em tintura vegetal e de desenhos em argila rica nas propriedades do óxido de ferro.

Das imagens emblemáticas do Mali, talvez a mais conhecida seja a grande mesquita de Djenné. Diz a história que esse templo, originalmente construído entre os séculos XIII e XIV, foi totalmente refeito no ano de 1907, quando o Mali já estava sob domínio francês. Essa fantástica obra de arquitetura, feita de tijolo de adobe com revestimento de barro e amarração de tronco de palmeira, representa a forte presença do islamismo naquele país. É um templo com as paredes da mesma cor do chão, situado em uma região de clima quente e chuvoso, para onde sistematicamente deslocam-se levas e mais levas de peregrinos que, em mutirão, refazem o seu reboco em forma de oração.

Observando esses sinais exteriores de arte, nomadismo e do valor das coisas móveis que parecem constituir a base da cultura do Mali, deu vontade de ir passar umas férias por lá. No ano passado (2012), chegamos a traçar algumas rotas, via Senegal, para conhecer o Mali e ver o Festival do Deserto, mas por motivo de segurança e de vulnerabilidade logística, acabamos desistindo. O noticiário dizia o tempo todo que estava havendo muitos sequestros de turistas e que a situação política do país era bastante delicada em decorrência dos surtos de violência ocorridos no país.

O pior é que, calejados com tantas informações desencontradas, a exemplo das fantasias e verdades relativas ao Iraque, ao Afeganistão e às mobilizações da Primavera Árabe, já não sabemos medir o grau de implicações dos fatos, em situações como essa do Mali, que envolve, de um lado, os interesses de grandes corporações transnacionais de petróleo, gás e urânio, e, do outro, o que seriam ações agressivas de revoltosos ou de extremistas ligados a redes de terroristas. O que tende ao certo é que o povo malinês está novamente condenado à violência atroz, sem ter um Estado ou um clã capaz de assegurar o mínimo de estabilidade política e social.

A possibilidade de desmembramento é real. Pode acontecer no Mali o que aconteceu no Sudão, com a criação do Sudão do Sul (2011) ou na Somália, com a separação da Somalilândia (1991), ambas envolvendo a interferência de exploradores de petróleo. Os insurgentes que querem criar o território de Azawad, no norte do Mali, são identificados étnico e linguisticamente como norte-africanos, enquanto são classificados de subsaarianos os grupos que mantêm o controle da capital Bamako. O Mali não tem riquezas naturais no jogo das cobiças atuais, mas é vizinho do Níger, onde está uma grande reserva de urânio, que fornece um terço do consumo das usinas nucleares francesas, responsáveis pela maior parte da eletricidade do país, e tem fronteira com a Argélia, cuja produção de gás natural atende a um quarto do consumo da Europa.

Nos últimos quatro anos, os EUA treinaram o exército malinês para combater os chamados "terroristas islâmicos" no norte do Mali. A iniciativa acabou em golpe militar que depôs o presidente eleito Amadou Toumani Touré (2012). Essa quartelada exacerbou os ânimos da rebelião separatista, acionando levantes comandados pelos tuaregues, que tomaram as cidades de Kidal, Gao e Timbuktu, as principais do norte do país. O poder militar dos separatistas islâmicos malineses foi reforçado com o retorno de guerrilheiros anteriormente lotados nas forças armadas de Muammar Gaddafi (1942 - 2011), na Líbia. E as milícias que tomaram o norte do país querem conquistar a capital Bamako. (continua na próxima quinta-feira, dia 31 de janeiro de 2013).

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