quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O fantasma colombiano - Diário do Nordeste - 26/8/2010

A imagem que se tem de Juan Manuel Santos é que ele é um político pragmático e que tem vontade de se destacar com lanterna própria (...) Resta saber o quanto o fantasma de Álvaro Uribe ainda se manterá atraente ou tenebroso na memória coletiva do povo colombiano

Álvaro Uribe passou oito anos (2002 - 2010) como chefe do executivo colombiano. Quis inventar um terceiro mandato, mas sua pretensão foi inviabilizada pela Corte Constitucional do país. Contudo, dois mandatos foram suficientes para ele virar um misto de venerado e vilão em uma sociedade culturalmente rica e com destacável potencial econômico, mas intensamente prejudicada pela competição internacional dos mercados de armas e drogas. Por um lado, Uribe alcançou 75% de aceitação e, por outro, há a expectativa de que ele seja julgado internacionalmente pelos atos desumanos que cometeu contra a população civil.

Construiu popularidade em cima dos números de baixas que causou às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e de um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) que chegou perto dos 5% ao ano em seu governo. Tornou-se rejeitado por personificar o terror, como patrocinador de grupos paramilitares que, em sua gestão foram favorecidos com prêmios por extermínios de milhares de trabalhadores rurais e moradores de favelas, contabilizados como guerrilheiros, e pela elevada concentração da riqueza em um país cuja metade da população ainda vive abaixo da linha da pobreza.

Embora tenha elegido o seu sucessor, Álvaro Uribe estaria inconformado com a intenção do atual presidente Juan Manuel Santos de querer "arranjar" para ele algo como uma embaixada lá pela Ásia, bem longe de Bogotá. Contrariedades como essa teriam levado Uribe a criar, dias antes de passar a faixa presidencial, uma situação de desentendimento com a vizinha Venezuela de Hugo Chávez. Felizmente, Santos se reuniu com Chávez (10/8) e contornou a vexatória investida do seu antecessor.

Passados cinco dias da posse do presidente Santos (7/8), um carro-bomba explode em Bogotá, bem em frente à Rede Caracol, a maior cadeia de rádio e televisão colombiana. Os apoiadores de Álvaro Uribe espalharam imediatamente o argumento de que o ataque seria um "recado" das Farc ao novo chefe do poder executivo. Com o passar do impacto, analistas começaram a questionar a razão de um acometimento desses diante das circunstâncias atuais. Até que timidamente começaram a surgir conjecturas de que o mentor da explosão do carro-bomba pode ter sido o ex-presidente.

O raciocínio que sustenta essa interpretação baseia-se na provável intenção de Uribe de jogar areia nas engrenagens de aproximação que seu sucessor vem ensaiando com Caracas, em nome da saúde da economia dos dois países. Até 2008, a Venezuela era o segundo maior parceiro comercial da Colômbia, mas a política uribista preferiu abrir mão dessa relação econômica para ficar inteiramente na dependência dos Estados Unidos. Como o atual presidente estaria disposto a restabelecer os vínculos de negócios com o vizinho o "homem sem alma", como Álvaro Uribe é também conhecido, resolvera infernizar a vida de Santos e Chávez valendo-se do velho recurso do carro-bomba.

No final da década de 1980 e início dos anos 1990 esse tipo de atentado era comum na Colômbia, época que o país sofria com as incursões violentas do narcotraficante Pablo Escobar, de quem Álvaro Uribe teria sido amigo íntimo, quando, conta-se a boca miúda, integrou o cartel de Medellín. Do jeito que tenha acontecido, para se consolidar no poder Uribe foi acusado de repetir as ardilezas que levaram Richard Nixon a renunciar à Casa Branca no caso Watergate, inclusive grampeando telefones de dissidentes, opositores, jornalistas e magistrados da Corte Suprema de Justiça.

A possibilidade de ter sido Álvaro Uribe o mandante, abriu espaço para uma série de explicitações desse personagem tão enigmático publicamente, mas que, observado de perto, não parece tão diferente de outros vultos polêmicos do nosso continente, tal como o ex-presidente panamenho Manuel Noriega. Faço a comparação porque as semelhanças são reveladoras. Noriega trabalhou como agente dos Estados Unidos, quando George Bush, o pai, foi diretor da agência de espionagem (CIA) daquele país. No mês passado, ele, que estava preso nos EUA, foi condenado pela justiça francesa por fazer lavagem de dinheiro para o cartel de Medellín, ao conseguir, quando era presidente, trânsito pelo Panamá de aviões carregados de cocaína.

A relação mais estreita de Álvaro Uribe foi com o governo militarista de George Bush, o filho. Quando, em 2009, viu frustrada a sua pretensão de realizar o plebiscito que o conduziria a mais um mandato, ele, a exemplo do que aconteceu no Panamá de Noriega, franqueou aos estadunidenses acesso militar em seu território, concedendo, inclusive, o direito a porte de armas e a livre circulação, dispensada de qualquer inspeção. Com a saída de Uribe do governo, a Corte Constitucional determinou que esse pacto militar fosse considerado sem validade até ser examinado pelo poder legislativo.

O presidente Santos foi ministro de Comércio Exterior e da Defesa do governo anterior e conta com ampla maioria no Congresso. Enviar ou não os termos do acordo para análise e posicionamento parlamentar vai depender da compreensão que ele tem de compartilhamento de poder. Afinal, o que está em negociação, mais do que os interesses internos (na gestão Uribe a Colômbia recebeu dos Estados cerca de cinco bilhões de dólares em "benefícios") é uma questão geopolítica de controle da América do Sul, uma queda de braços entre a cambaleante Organização dos Estados Americanos (OEA) e embrionária União das Nações Sul-Americanas (Unasul).

Embora camaleônica, a imagem que se tem de Juan Manuel Santos é que ele é um político pragmático e que tem vontade de se destacar com lanterna própria na escuridão dos conflitos do mundo multipolar em construção. Ele vem de uma tradicional família política, que é também proprietária do grupo Planeta, controlador do "El Tiempo", maior jornal da Colômbia. Em 2002 apoiou o golpe promovido pelos EUA contra o presidente Hugo Chávez, na Venezuela e, em 2008, comandou a operação militar que invadiu o Equador para matar um dos líderes das Farc, por cuja cabeça o Departamento de Estado norte-americano oferecia cinco milhões de dólares, causando mal-estar diplomático com o presidente Rafael Correa.

Santos tem declarado à imprensa que pretende "virar a página do ódio" na Colômbia. Tenta descolar-se de Uribe, mas o espectro do Estado que mantém grupos ilegais aterrorizando juízes, participantes de entidades da sociedade civil e defensores dos direitos humanos, ainda ronda o país no fantasma de Álvaro Uribe. Este é um problema que não sai facilmente da cabeça das pessoas. A situação é tão confusa e o passado do ex-presidente tão aflitivo que, ao deixar o Palácio de Nariño, a residência presidencial, passou a morar num quartel de alta segurança, aproveitando os benefícios de um decreto que ele mesmo criou antes de deixar a presidência.

O que Juan Manuel Santos será só vai dar para saber no futuro. Sempre há uma esperança de que as coisas mudem, de que as pessoas evoluam para melhor ou se revelem melhor do que se espera delas. O ideal seria que, com o avanço democrático que ensejou a saída de Uribe, a Colômbia iniciasse um ciclo de transição do militarismo e do narcotráfico para a busca de uma economia limpa e de uma política capaz de expandir as relações colombianas além dos interesses dos Estados Unidos. É o mínimo que os nossos irmãos colombianos merecem. Resta saber o quanto o fantasma de Álvaro Uribe ainda se manterá atraente ou tenebroso na memória coletiva dessa gente.



quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Viver e conviver no semiárido - Diário do Nordeste - 19/8/2010

A Segunda Conferência Internacional sobre Clima, Sustentabilidade e Desenvolvimento em Regiões Semiáridas (ICID + 18), que está sendo realizada em Fortaleza desde a segunda-feira passada (16) até amanhã (20), tem como base quatro áreas temáticas que tratam de 1) Informações Climáticas; 2) Clima e Desenvolvimento Sustentável; 3) Clima e Governança: Representação, Direitos, Equidade e Justiça; e 4) Processos de Políticas Públicas em Clima. Todas sem dúvida de grande relevância, mas, enquanto sistema estratégico, carentes de uma quinta área, na qual fossem aprofundadas as questões relativas à cultura e à educação. Sem um campo específico para isso, corre-se o risco de educação ambiental virar uma forma de dizer o que o outro deve fazer e a carga de responsabilidade educativa ser jogada novamente em paradidatismos escolares e nas soluções mágicas prometidas pela internet banda larga.

Quando me refiro a uma quinta área, falo do que seria um desejável módulo 5), algo como A Educação dos Sentimentos, onde se pudesse tratar especificamente da complexa relação dialética entre viver e conviver. Esta é uma parte do processo de preservação e desenvolvimento de biomas como a caatinga, que via de regra não está ao alcance dos pesquisadores desenvolvimentistas, dos especialistas em mudanças climáticas, dos cientistas sociais e dos líderes políticos. Sem contar que os limites da relação entre a vida e as formas de realizá-la estão cada vez mais difíceis de serem estabelecidos. No caso das questões climáticas, pode-se dizer que há uma dicotomia entre a crise comum do aquecimento global e o reconhecimento da diversidade cultural das distintas sociedades e o direito de cada uma ter as suas próprias significações.

O processo de assimilação dos problemas ambientais tem tempos culturais variados e soluções que exigem compartilhamento de visões, convenções e ações integradas. Produzir e intensificar conceitos e consensos, respeitando e potencializando características antropológicas, experiências replicáveis e vivências sociais inspiradoras, antes de educação, antes de economia, é um problema de cultura. Todas as sociedades podem contribuir para a sustentabilidade quando são levados em consideração os contrastes peculiares vis-à-vis à pluralidade da maneira de viver e as proposições de convivência reclamadas, estudadas e disseminadas em fóruns necessários e urgentes como a ICID.

As indignações são muitas. É inconcebível que a caatinga, como bioma exclusivamente brasileiro de grande biodiversidade, continue perdendo anualmente cerca de três mil quilômetros quadrados de sua mata nativa com queimadas e desmatamento para a produção de lenha e carvão. No ano passado o Ministério do Meio Ambiente divulgou o resultado do monitoramento feito no semiárido e constatou que só resta à caatinga metade da cobertura vegetal, com tendência à desertificação. E o pior: o Ceará, ao lado da Bahia, forma a dupla campeã de desmatamento. E pior ainda: como se não bastasse a queima de lenha da silvicultura nas pizzarias, na indústria de gesso e olarias, a maior parte dos nossos gravetos de jurema são transformados em carvão para abastecer siderúrgicas de Minas Gerais e do Espírito Santo.

Diante de tamanho absurdo temos alguns alentos com referência à mudança de matriz energética. A expansão de parques eólicos ao longo do litoral cearense é uma delas. Outra é a instalação da usina de energia solar nos Inhamuns. Entretanto, o que ainda prevalece é a força do bronco e do egoísmo social concentrador, reacionários a qualquer combinação de bem-estar coletivo com desenvolvimento, como se comprovou nas tentativas de industrialização de biodiesel à base de semente de mamona. Soluções como reflorestamento de fato e produção sistemática de madeira certificada também estão por serem efetivamente incluídas na gramática dos nossos agentes sócio-econômicos públicos e privados. Não temos ainda uma afinação capaz de romper com o tradicionalismo, de dar agilidade, eficácia e concatenar muito bem a aplicação dos recursos públicos com os resultados de interesses da sociedade.

A realização da ICID, visando combater à desertificação e buscar a superação aos impactos das modificações climáticas no semiárido, força a presença do assunto na pauta geopolítica. Não é sem razão que, preocupada com o cenário de empobrecimento econômico resultante da devastação ambiental, a Organização das Nações Unidas, controlada pelos países mais industrializados, lançou durante o evento a Década da ONU sobre Desertos e de Combate à Desertificação. Aquele número 18 que aparece na marca da conferência quer dizer que já se passaram quase duas décadas da realização da primeira ICID, realizada também em Fortaleza, no ano de 1992. A partir de então a caatinga passou a ser considerada na pauta de algumas convenções das Nações Unidas.

A criação de um campo de debates sobre A Educação dos Sentimentos, voltado, sobretudo, para o viver e o conviver na caatinga, certamente contribuiria para uma melhor apropriação do que tem sido oferecido pela cultura, pela ciência e pela economia, e, principalmente, para a redução dos estereótipos que ocultam a riqueza da biodiversidade desse bioma rejeitado antes de ser devidamente conhecido. A ideia de uma natureza perversa e de uma humanidade carente que vigeu até agora dificulta a troca de conhecimentos e saberes e a fuga das manipulações políticas, embora a sociedade venha matando alguns fantasmas à revelia desses controles. A caatinga tem uma estética natural e cultural inconfundível, mas, com exceção do Banco do Nordeste, que inclusive mantém destacados centros culturais, os organismos de promoção do desenvolvimento da região, tais como Sudene, DNOCS, Chesf e Codevasf não aproveitam devidamente esse potencial.

Assim como se vêm lutando tanto por um Fundo da Caatinga, que se lute também pela criação de um Fórum Permanente de Cultura e Educação para a Convivência no Semiárido; um fórum que possa tratar a questão a partir do viver e que a cada dia 28 de abril, Dia Nacional da Caatinga, expusesse os avanços das novas formas de relação das pessoas com a natureza. Essa quinta área temática deveria ser menos racional e mais associada a valores, virtudes e simbolizações. A racionalidade em demasia provoca desestímulo. O melhor discurso é a representação, o que possibilita que abracemos o tema, que tenhamos a satisfação de nos comprometer com ele. O semiárido, a caatinga, precisam ser vistos com encanto, precisam de uma nova literatura, de jogos com histórias, com humor, com personagens da fauna e da flora, para se enxergar, se valorizar e a sentir o amor próprio que sente e às vezes não percebe.

A ICID é uma iniciativa de busca de soluções objetivas; um instrumento muito bom e muito importante para continuar com essa lacuna de reelaboração do cotidiano, por meio do esforço de compreensão de como se olha, como se busca, como se anda... como se celebra a vida e a morte na caatinga. Não se limitar a acalantar o sonho de apenas conviver com o semiárido, mas inventar condições de identificação que possam significar o viver. As mudanças se dão efetivamente quando assumimos nova consciência do que somos e do que podemos. Tão importante quanto ter instrumentos de mudança é ter a vontade de mudar. E essa vontade depende de sentimentos capazes de imprimir distinção na maravilhosa corrente da vida que se manifesta na biodiversidade da caatinga.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Celebração da fantasia - Diário do Nordeste - 12/8/2010

As fantasias são emanações mentais que retroalimentam o diálogo entre nossas experiências dos mundos interno e externo. Elas são imprescindíveis como elementos catalisadores na definição de nossas buscas e maneiras de nos conduzirmos. Às vezes é muito complexo tratar desse assunto e às vezes a questão salta sem complicações, como na leveza calviniana do livro "Meu pai é um homem-pássaro", do escritor inglês David Almond (Martins Fontes, 2010), que conta de uma relação entre pai e filha, apoiada na dimensão mais pura da fantasia: ir além das imagens idealizadas para alcançar o outro em seu estágio onírico, longe de qualquer preconceito.

A história começa com a menininha Lizzie acordando cedo para preparar o café da manhã para o pai Jackie, que pensa que é um pássaro. Eles moram sozinhos, depois que a mãe dela morreu, mas ambos são atentamente vigiados pela tia Doreen, que vê no contato da filha com o pai uma ameaça ao desempenho educacional da sobrinha e pretende internar Jackie para libertar Lizzie da convivência com alguém que "não quer ser pessoa". A coisa fica feia quando ela descobre que na pequena cidade onde moram, vai haver uma competição de "pássaro humano", para quem quiser tentar atravessar o rio voando.

O comportamento de Doreen reflete os conceitos da corrente educativa baseada em metas, medições e vínculos de recompensa, espalhada nas últimas décadas pelo neoliberalismo, resultando no empobrecimento dos padrões educacionais, por produzir pontuações enganosas de alunos adestrados para fazer avaliações, quando o recurso dos testes deve ser utilizado apenas como fonte de informação no processo de aprendizagem. Assim, ela procura desautorizar a fantasia de Lizzie, perguntando, por exemplo, se a sobrinha consegue somar de cabeça "20 mais 8 mais 7 mais 3 mais 6" e se ela sabe soletrar a palavra "pneumático".

O livro diverte e mostra com singeleza a alteridade exercida por uma criança que não se abala diante das excentricidades do pai. Com sua sabedoria infantil, decide se comunicar com ele, utilizando-se da linguagem a que ele tem acesso, a fantasia. O mais curioso e mais inusitado nessa história é o quadro de inversão que se desenha por todo o enredo. Ao invés de ser o pai a racionalmente se esforçar para compreender os sonhos da filha é a filha quem, na grandeza da sua credulidade, responde às manifestações do pai no mesmo irrealismo por meio do qual ele se expressa.

Enquanto a tia Doreen procura interferir na situação pelo viés das formalidades sociais, discriminando Jackie como louco ou caduco, Lizzie recorre espontaneamente à brincadeira, vestindo-se também de pássaro e fazendo junto com o pai um confortável ninho dentro de casa, como ponto de cumplicidade. A preciosa experiência de comunicação entre o homem e a menina pássaro vai repercutir na realidade, destravando fantasias bloqueadas, tanto no diretor da escola, o senhor Mint, quanto na tia Doreen, que se descobre na fantasia até então encoberta por sua racionalidade cotidiana.

A fantasia de Lizzie certamente não se encaixa no fluxo fantasioso das produções involuntárias do sonho noturno, desfragmentador da mente, nem dos caprichos da imaginação, comum ao sonho acordado e suas idealizações ocultas, que buscam a realização do desejo no inconsciente. É uma fantasia iluminada e protegida pela candura, como se as atividades especiais do pensamento recorressem ao estado de ingenuidade para se expandirem livremente, criando uma valiosa condição de comunicação, originada na força do impulso afetivo de cuidar do pai.

Lizzie transforma a imaginação em ato, ao deslocar o real para o campo da fantasia. Assim, ela atrai natural e consequentemente o senhor Mint e a tia Doreen para o devaneio, sem cair na mera alegoria. Neste sentido, o livro oferece boas revelações literárias a respeito da fantasia, ao projetar a imaginação da filha em direção ao homem-pássaro, simplesmente para ser fantasia também, para acontecer sem precisar existir, para criar condições de comunicação no espaço de interioridade do pai e da filha.

Quando eu estava lendo esse livro para os meus filhos, eles fluíam capítulo por capítulo na frequência de Lizzie e Jackie. Pediam sempre para que eu lesse mais um pouco até adormecerem. Noites e páginas se passaram e, finalmente, aproximamo-nos do final. Era o momento da competição de "pássaros humanos". Pessoas de muitos lugares estavam inscritas, com suas engenhocas para voar. Tinha a Mulher-libélula, o Homem-helicóptero, o Menino-abelha, o Eddie Elástico, o Danny Dardo, Winnie, a Cata-vento, a Bess Balanço, Sid, o Planador e, claro, Jackie e Lizzie Corvo, com asas de penas verdadeiras... Crá, crá, crá!

Certa noite eu quis parar de ler a história no meio da competição e foi uma grita geral no quarto dos meninos, nosso ninho de leituras. Não víamos a hora do homem e da menina pássaro cruzarem o rio voando. Meus filhos tinham vibrado quando descobriram que o diretor Mint resolvera participar, com fogos de artifício amarrados nas costas. Li um pouco mais, porém a grande final ficou para a noite seguinte. Antes mesmo de concluir, a decepção deles foi geral: Jackie e Lizzie caíram na água, foram arrastados pela correnteza e socorridos por salva-vidas. Mesmo assim, segui lendo o restinho que faltava. De repente, percebi que eles fitavam um ponto perdido no teto do quarto, onde suponho podiam ver a fantasia interferindo no real, através da dança da tia Doreen, perguntando a Mint, Jackie e Lizzie se suas pernas estavam no ar.

Houve certo clima de alívio e nada mais. No dia seguinte, antes de começarmos a leitura de um novo livro, abrimos uma conversa sobre o Homem-pássaro e sua filha Lizzie. A troca de impressões e ideias durou mais do que se possa imaginar. Felizmente eles não precisaram abrir mão do sentimento de que a história seria mais empolgante se tivesse terminado com a travessia dos "pássaros" ou, pelo menos, com a vitória do diretor Mint, para chegar a conclusão de que o cumprimento dessa expectativa teria sido muito pouco para uma fantasia.

Coloquei que a fantasia em "Meu pai é um Homem-Pássaro" não se concretiza porque na verdade as fantasias não têm a função de se concretizar. A função da fantasia é mover o real. Nessa história, ela foi fundamental para a filha salvar o pai de ser internado; foi a forma que a menina encontrou de dizer que ele deveria ser aceito pela tia Doreen. A fantasia de Lizzie serviu para ela comunicar essa vontade, por isso eles voaram juntos. Outro alcance da fantasia nessa história é o desbloqueio que ela proporciona ao diretor da escola e à tia Doreen, a partir do momento que eles se permitem conviver com alguém que pia, grasna, come insetos e minhocas. Jackie deixou de ser um estranho logo que a sua "anormalidade" foi encarada como "normal".

Naquela noite não houve leitura, foi só conversa. Quer dizer, houve leitura, sim, o livro seguiu sendo lido fora das páginas, nós no quarto e ele na estante da sala, aparentemente distante. A fantasia de Jackie e Lizzie seguiu interferindo em nós, levando-nos a mexer com as nossas fontes internas e externas de fantasia. O livro de David Almond tem a capacidade literária de desprender o leitor para dentro e para fora de si, por meio de uma delicada fantasia. Nessa história de convergência de contrários, a fantasia serviu para que os personagens ficassem juntos; enquanto que, fora do livro, a fantasia serviu para que falássemos do quanto a compreensão do outro nos aproxima.






quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Bia Bedran em prática e teoria - Diário do Nordeste - 5/8/2010


Com equilíbrio entre prática e teoria a dissertação de mestrado da compositora, cantora e atriz Bia Bedran revela a importância da sua obra e o espaço de relevância que ocupa no cantar e no contar da arte para crianças no Brasil. O sugestivo título "Ancestralidade e contemporaneidade das narrativas orais: a arte de cantar e contar histórias" é tão atraente quanto o próprio texto. E o texto é tão leve e bom de ler quanto ouvir as composições e a literatura musicada de Bia. Os recursos da narrativa oral, da veia poética e literária e da iluminação artística transitam na seara acadêmica de modo inteligente e sensível, pelos mesmos motivos da obra: simples e profundo a um só tempo.

É difícil abordar convencionalmente o que se ama, falar do que se faz por inteiro, mas o método científico ajuda um pouco, favorece o distanciamento necessário ao diálogo com pensadores que passaram boa parte da vida refletindo e escrevendo sobre o tema em recorte. O esforço de Bia Bedran nesse sentido, com a orientação da doutora Martha D´Ângelo, resultou em uma dissertação muito rica de particularidades. O arquivo com o seu conteúdo acaba de ser tornado disponível pelo seguinte endereço da pós-graduação da Universidade Federal Fluminense: http://www.uff.br/cienciadaarte/dissertacoes_2010-1.html

Por anos e anos, nas últimas quatro décadas pelo menos, Bia Bedran carregou quase sozinha o piano da boa música infantil no Brasil. Fez isso mais com o coração e por respeito à infância do que por qualquer outra coisa. Tornou-se a principal referência alternativa aos lançamentos eminentemente comerciais de discos voltados para os "pequenos consumidores". Salvo casos pontuais e esporádicos, pode-se dizer que apenas o grupo paulistano Palavra Cantada, criado em 1994, se desenvolveu de forma estruturada e contínua na criação de produtos musicais de qualidade poética para a meninada, embora com marcadas características paradidáticas.

Inspirada nas contações e nas cantigas da sua mãe Wanda, nas combinações de músicas com fábulas feitas pelo Braguinha (1907 - 2006) e na cultura popular, Bia passou ao largo das determinações do mercado, para ficar ao lado das crianças que conseguiram escapar dos monopólios consumistas impostos pelas gravadoras e pela grande mídia. A dissertação de Bia Bedran recorre ao mundo teórico para sintetizar essa prática bonita e íntegra. Ao tentar se compreender, a artista oferece mais do que uma linha de visão do seu trabalho; ela proporciona um entendimento do cantar e do contar, que vai além da criança, que chega ao lúdico como liga humana transetária.

O lúdico está na base da sociabilidade instintiva, está na essência humana mais primitiva. Ele vem antes da infância, antes do pensamento lógico e das formulações científicas. Foi graças ao lúdico que a humanidade tomou a consciência da imaginação e se capacitou para a descoberta da infância. Costumo dizer que nessa questão o adulto nasceu primeiro. Sherazade, Marco Polo e Américo Vespúcio que não me deixam mentir. É no jogo que se formam a personalidade individual e coletiva, de onde surgem e se desenvolvem os ciclos civilizatórios. Em momentos de grandes transformações de significados, como o que estamos vivendo, o desgaste da credulidade tende a silenciar o lúdico e a embrutecer a vida em sociedade.

O que me agrada em trabalhos como o da Bia Bedran é o aspecto do devaneio, como estado sonhador, que aparece permanentemente na sua remodelagem do real e na busca do intuito da experiência, construída pela integração dos sentidos no jogo da música e da literatura, sorvidas da narrativa oral. Na dinâmica do ler e do brincar, ela faz educação com cultura, ou seja, educa para o imaginar, o que é a melhor maneira de contribuir efetivamente para a construção da consciência. Em "Ancestralidade e contemporaneidade das narrativas orais: a arte de cantar e contar histórias" ela abre as janelas da sua casa para deixar sair a luz que acumulou em sua bateria de fabulações regionais e universais, por meio de vivências em praças e quintais.

Depois dos capítulos com as exposições metodológicas e conceituais da ambientação acadêmica, Bia Bedran repassa ciclo por ciclo todo o seu aprendizado, sua experienciação, seu sentir, seu fazer, suas buscas, seus encantos. Reserva uma parte especial para a publicação do depoimento que colheu do compositor Pedro Menezes, baiano radicado no Rio de Janeiro, que um dia, em 1987, foi à então TV Educativa, onde a Bia fazia o programa "Canta-Conto", para presenteá-la com o "Samba do Tatê Calanquê", que foi cuidadosamente adaptado pela educadora e virou uma das mais ricas obras brasileiras de contação musicada. A máxima do Seu Pedro é que suas histórias são reais, mas foi ele quem as inventou.

Assim como no depoimento do Seu Pedro, em sua dissertação de mestrado Bia assemelha-se em seus relatos e na sua história. Ao falar da arte narrativa, da função histórico-cultural do narrador e da linguagem artística dedicada à infância, a autora do clássico "Ciranda do Anel" ("Perdi o meu anel no mar / não pude mais encontrar / E o mar me trouxe a concha de presente pra me dar") zela pelo reencantamento do mundo em palavras que se cantam e em palavras que se falam. Trata-se, portanto, de uma produção acadêmica, tecida em fios autobiográficos, com partituras e contações, na qual a autora fala de si porque o si está intenso e consistentemente imbricado em seu objeto de estudo.

Bia Bedran faz uso de sua experiência direta para dar propriedade à afirmação de que a arte de narrar está inseparavelmente ligada à própria história do mundo. Recorre ao que fez e faz de teatro, rádio, tevê, música e arte-educação, para respaldar sua crença de que o mais importante de tudo isso é que a narrativa esteja sempre dirigida ao olhar do outro. Bia acha imprescindível que se contem histórias hoje em dia: "Quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda informal de contos ou mesmo no contexto do que chamamos de indústria do espetáculo, o maravilhoso se instala" (p. 120). Para a educadora, quando uma criança escuta uma história, essa história só tem sentido se puder continuar habitando em sua imaginação criadora.

De cada experiência analisada em sua dissertação, Bia Bedran deixa várias pistas a outros pesquisadores que poderão jogar novos olhares sobre os seus fazeres e feitos. Da menina de Niterói, que musicou poemas de Cecília Meireles (1901 - 1964), à educadora apaixonada, que fez um recorte da própria história para se entender à luz da teoria, temos aí uma agradável análise que vai das relações entre memória e reconstrução do passado à literatura oral, contos populares e a escrita, passando pelo narrador, pelo ouvinte, pelo devaneio e pela imaginação poética.

Assim, termino o meu comentário pelo ponto que Bia Bedran começa a sua dissertação; pela sensação envolvente de que uma história está sempre dentro de outra, por isso o fim de umas é muitas vezes o começo de outras. Feliz de quem conta as histórias que não acabam nunca, como o menino que foi poupado pelo rei por tê-lo ajudado a olhar para um ponto bem distante, como se estivesse vendo os patos que demoravam, demoravam, demoravam, para chegar do outro lado do rio. "Deixe os patos passarem...". Está na obra da Bia, a nos ensinar que mais do que nunca, em casos de tragédias, salvemos primeiro as crianças, as mulheres grávidas e todos os que estiverem prenhes de imaginação.


quinta-feira, 24 de junho de 2010

Uma geografia das figurinhas - Coluna Diário do Nordeste - 24/6/210


Dá gosto ver tantas crianças que não se conhecem, entrosadas pelo interesse de trocar figurinhas (...) Um papel-modelo no esporte significa companheirismo entre os pares e respeito pelo torcedor

Das boas movimentações advindas com a realização da Copa do Mundo de Futebol, a agitação das crianças para completar os álbuns de figurinhas destaca-se por seu potencial mobilizador, integrador e educacional. Mobilizador, por mexer com a meninada em encontros de trocas de figurinhas; integrador, por instigar o diálogo entre as crianças, destas com os pais e dos pais entre si; e educacional, por possibilitar o exercício da busca, além de agradáveis brincadeiras etnológicas e de geografia humana.

Em Fortaleza, na Copa passada, o ponto quente das trocas de figurinhas era a banca do Cabeça, na avenida Virgílio Távora. Pouco interessava se o lugar era apertado demais ou virado para o sol, filhos e pais se apertavam como podiam na permuta de figurinhas repetidas. Uma coisa que chama a minha atenção nesse jogo da troca é a confiança que as crianças têm ao entregar largadamente seus pacotes de repetidas umas para as outras. Em várias circunstâncias percebem-se pais reticentes com essa atitude virtuosa de meninas e meninos.

Na Copa atual, os pontos de troca de figurinhas se multiplicaram. As bancas de jornais e revistas continuam sendo as âncoras, mas em diversos casos o fuzuê não acontece mais no seu interior. Na Praça Portugal, a banca localizada logo em frente ao antigo BEC tornou-se um desses pontos. O cantinho é sombreado, tem o frescor das árvores ao vento e bancos para as pessoas sentarem. Um senhor com montes e montes de figurinhas facilita a busca dos interessados em vender ou trocar.

As crianças chegam com seus álbuns, pacotes de repetidas e gabaritos com a marcação das que faltam. Querem o goleiro de uma seleção tal ou o escudo que representa um determinado país. É impressionante como elas tratam da questão dos países com simplicidade. Citam nomes de jogadores e de seleções em diversas línguas. Fazem isso com a intimidade que a educação permite quando bem conduzida. O álbum da Copa na África do Sul está em inglês, mas traz o nome de cada país em diversos idiomas. E as crianças se divertem com isso. Chegam até a deduzir que em 2014, quando a Copa for ser realizada no Brasil, o álbum será em português. Quem dera, quem dera...

Outra banca que ganhou notoriedade nesta Copa, por catalisar trocadores de figurinhas, é a da parte mais nova do Parque do Cocó. Também sombreada, com espaço suficiente para filhos e pais interagirem e área de estacionamento mais generosa. O fluxo de trocadores de figurinhas naquele ponto tornou-se intenso. Lá também tem uma moça com maços organizados por número. Ela faz trocas e vendas na calçada, e, assim como o homem da Praça Portugal, é uma boa opção para quem está faltando poucas figuras e não aguenta mais comprar pacotes fechados com repetidas.

Dá gosto ver o entrosamento de tantas crianças que não se conhecem; entrosamento motivado pelo simples interesse de trocar figurinhas. É um acontecimento desinibidor e gerador de vínculos, pois em alguns casos trocam-se números de telefones para marcar novos momentos de trocas. Aliás, em termos de sociabilidade, a contribuição da troca de figurinhas é algo muito precioso para adultos e crianças, quer no apertadinho da banca do Cabeça e da que fica em frente à sorveteria do Juarez, na avenida Barão de Studart, ou nas praças e parques, onde há bancas de revistas e jornais.

Em casa, o momento de colar as novas figurinhas é outra experiência maravilhosa de integração entre filhos e pais. Nas primeiras sentadas, com o álbum ainda praticamente vazio, tratamos de ter à mão um globo terrestre. Cada pacote aberto que trazia um jogador de um país pouco conhecido, nos levava a procurar onde ele fica no mapa. É esplêndida essa viagem intercontinental pelo encanto do esporte, pela mística da Copa do Mundo. Os meninos revelam o que sabem de geografia e perguntam o que querem saber.

Conforme o álbum vai se completando, suas páginas começam a mostrar naturalmente a existência de seleções formadas basicamente por jogadores negros, outras por brancos, outras com atletas de olhos puxados e àquelas misturadas para mais ou para menos. A conversa que vem à tona com essas diferenças é uma verdadeira farra etnológica. Os países ganham vizinhos de características e são realçados em continentes, regiões e multipolos de um só planeta. Nessas horas, o ato de torcer é Jabulani, o nome da bola desta Copa, que quer dizer comemoração.

Depois do Brasil, é comum a torcida pelos nossos vizinhos latino-americanos. Até pela rival Argentina, quando esta joga com países de outros continentes, que não a África. As seleções africanas contam com a simpatia das crianças, talvez porque elas escutem constantemente que, depois dos times de seus países, a África torce pelo Brasil. Tem ainda a figura mítica de Nelson Mandela ajudando nessa simpatia, por representar a paz entre tantas notícias de guerras. Essa descoberta saudável de afinidades regionais e culturais é um tanto prejudicada pelos exageros que parte da mídia faz com relação aos argentinos, confundindo a noção de rivais no esporte com a perigosa e indesejável percepção de que eles são nossos inimigos.

Ao observar as conversas e ao conversar nesses encontros de trocas de figurinhas e em casa na hora de colar cada uma delas, página por página, seleção por seleção, indo e voltando, reforço em mim a compreensão do alcance do esporte como aglutinador da vida social, como animador de comportamentos sadios e como fonte de conhecimento da geografia humana mundial. Nem mesmo os interesses escusos, que podem manipular resultados em função da produção, divulgação e comércio de atletas tem sido capaz de sufocar essa grandeza do futebol.

O mais lamentável no mercantilismo aloprado de craques é o fato de não haver uma preparação psicológica do atleta-produto de exportação. É triste o desserviço que prestam à cultura e à educação atitudes medíocres de alguns jogadores da seleção brasileira. No amistoso contra a Tasmânia, após sofrer uma falta, um atleta brasileiro deu uma cotovelada desnecessária no jogador adversário que, até aquele momento, poderia tê-lo como ídolo. Fez isso provavelmente apenas por se sentir superior; quando a superioridade no esporte se dá pela arte do jogo, pela habilidade da perna invisível e pela eficácia das jogadas.

É certo que não há muito o que esperar de um time dirigido por um técnico de alma pequena, como o Dunga, porém, ao ter a autorização para levar o nome do Brasil e ser historicamente reconhecida como a melhor do mundo, a seleção brasileira tem a obrigação de preparar seus atletas para que tenham consciência do seu papel-modelo. E não é esse negócio de ficar dando uma de bom-mocismo, com marketing religioso, não. Assumir um papel-modelo no esporte é ter companheirismo entre os pares e respeito pelo torcedor.

Tudo isso aparece no jogo sem cartolas das figurinhas. Quando uma criança adesiva a imagem de um atleta na página do seu álbum, ela está fixando o que aquele jogador significa para ela. No momento da troca e da colagem das figurinhas percebe-se o tanto que os atletas têm contribuído ou não para a formação das nossas crianças. E a impressão que tenho é que, via de regra, o plantel da seleção brasileira, quando não dá maus exemplos, tem contribuído menos, mas muito menos mesmo do que tem o dever e a obrigação de contribuir. A esperança é que, assim como a decoração verde e amarela das ruas, os álbuns de figurinhas ainda continuam ricos e animadores.



quinta-feira, 17 de junho de 2010

Karina Buhr foge do vazio - Coluna Diário do Nordeste - 17/6/2010

De tanto ouvir em mp3 algumas músicas da compositora e cantora Karina Buhr fiquei curioso para conhecer o Cd "Eu menti pra você", no qual ela atualiza a agenda da juventude brasileira, fugindo dos padrões predominantes no mercado fonográfico nas últimas décadas. Com a chegada da Livraria Cultura a Fortaleza, consegui finalmente comprar o primeiro álbum-solo dessa artista pernambucana, nascida na Bahia e radicada em São Paulo. Depois de pegar na capa, de manusear o encarte e acompanhar faixa por faixa, em balanço de rede na varanda, posso dizer que valeu por esperar.

Na proposta artística de Karina o sentir é matéria viva. "Eu menti pra você" é um exercício estético que aproxima música de teatro. Em poética prospectiva ela põe em cena um estranhamento orgânico, sem próteses de gravadoras, para firmar e afirmar sensíveis reações vitais ao niilismo reinante. Com a delicadeza dolorosa do lirismo vangoghiano e a não higienização sonora do espírito rabequeiro, ela ascende a um contra-niilismo mais existencial do que representacional. Trabalha com ecos de ondas cerebrais em mobilização de sentimentos e sensações para cantar, não apenas com o corpo, mas com cada célula do seu organismo.

Karina canta baixinho, sem forçar os pulmões, sem querer mostrar que é cantora; canta com naturalidade, canta com sotaque. Foge do vazio da homogeneidade e entra em sintonia com o mundo múltiplo em construção, no qual nada pode ser mais cosmopolita do que um sotaque. Para enveredar na malha da música urbana, o que ela tem de mais denso e original é o fato de ser filha da cena pop e regional pernambucana, agitada pelo mangue beat, na qual brotou a Comadre Florzinha, banda liderado por ela, na renovação da música de raiz pela trama sonora popular. Contando, claro, com a bênção do frevo, na gandaia de ritmos do carnaval de Recife e Olinda.

Desprendida do mundo abstrato das velhas novidades, Karina Buhr, que também é atriz com passagem pelo teatro oficina, dá vazão a uma musicalidade tecida em versos dramáticos que oscilam entre o tédio e a expectativa de aceitação. Gosto de ouvir seu paradoxo de falar a verdade quando diz que mente. Com base emocional de prazer modulada pela experiência, seus caprichos, inspiração e centros de recompensas não só asseguram que especifique o que não quer, como recomendam que manifeste seus anseios e desejos.

Os arranjos do disco parecem acompanhar os sinais vitais de Karina na temperatura do corpo, pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória e na dor. Isso eleva o quadro clínico e artístico do cd "Eu menti pra você" ao patamar dos álbuns que têm clima próprio, o que é bom como plataforma para lançar o nome de Karina Buhr com letras maiúsculas na órbita legítima da música plural brasileira. O trabalho conta com o auxílio luxuoso de uma superbanda, formada por músicos de primeira linha, como os nossos queridos Dustan Gallas e Fernando Catatau.

A percepção essencialista da música de Karina nos leva a detalhes das áreas de manobras da vida e do viver, como um antídoto ao niilismo de uma época em que as pessoas se sentem existencialmente paralisadas diante das incontáveis possibilidades dos prazeres efêmeros. Com a força da sua fragilidade altiva, a cantora transmuda o que seria mal-estar, por deixar claro o que pensa, o que sente e o que quer. Ao encarar de frente a angústia e a desesperança ela foge do vazio, entregando-se de forma extremada ao seu corpo, sua mente, sua alma e à transvalorização do sentir e do amar.

A negação ao niilismo, enquanto ausência de valores, me parece bater no coração da música de Karina. Mesmo quando ela chama para si o ímpeto da razão desesperada, cansada de esperar, existe um querer em busca de realização: "Minha fúria odiosa já está na agulha / E um dia poderosa poderá dizer / Que acha tudo muito pouco". O mesmo ocorre com a faixa título, na qual ela questiona o pecado original e assume a mentira como alternativa as verdades desacreditadas: "Você não podia esperar ouvir uma mentira de mim / Que pena, não sou o que você quer de mim (...) Mas eu tenho ainda um grande amor pra te dar / Quero saber se você aceita". Com isso, ela matricula um valor e, embalada por um cupido travestido de trompete em batida de marchinha, supera o romantismo retardado para acordar com guitarras pesadas.

Outra característica que chama a minha atenção na obra de Karina Buhr é o aguçado espírito crítico, digamos, 360 graus, que ela revela ao romper com um estigma imposto à juventude; o estigma de que é possível ser capaz de tudo sem necessidade de ideais ou emoções verdadeiras. "Eu Menti pra Você" é uma proposta de amor, que nega a maneira superficial e possessiva de amar. A autora e intérprete fantasia a não-fantasia e assim desacomoda a cômoda proteção das tribos de afinidades eletivas. Em "Mira Ira", balada conduzida por piano, ela diz: "Tá tudo padronizado / no nosso coração / Nosso jeito de amar / pelo jeito não é nosso não".

Ela tem razão, está tudo padronizado. Até aquele romantismo de navegar na internet com referências próprias, procurando informações e procurando amigos, caiu por terra. Quer online ou offline, os hits da rede estão uniformizando o cotidiano mais do que a televisão foi capaz. A predominância é das informações de interesses dos controladores do sistema, que oferecem inclusive listas de amigos. Diante desta confusa realidade, Karina toca a maçante e repetitiva "Telekphonen", na língua do seu avô alemão, para mostrar o vazio de alguém que liga para seu amor, se conecta com quem ama, mas não sabe o que dizer.

Ainda dentro da veia satírica que pontua a obra autoral de Karina Buhr, vale destacar a "Ciranda do Incentivo", com a qual a artista faz ironia sobre os estereótipos que de certa forma passaram a nortear os editais da chamada economia da cultura: "Eu vou fazer uma ciranda / pra botar no disco / na lei de incentivo à cultura (...) mas eu não sei negociar / só sei tocar meu tamborzinho e olhe lá". Mais do que o sentido de dança de roda infantil, a palavra ciranda pode ser entendida também como grana que rola solta em algum sistema. O resultado é uma divertida ciranda funkeada, com base eletrônica, teclados e guitarras que, certamente, não seria contemplada pelas leis de incentivo à cultura.

A tragédia da guerra também está na pauta de "Eu Menti pra Você". Com a mesma inquietação de Edvaldo Santana em "Raios do Oriente Médio" (Reserva de Alegria), diante de "Sonhos e destinos que terminam antes", e com toques de ludismo que lembram o saudoso Gianni Rodari (Um bolo no céu) imaginando o dia em que fizerem bolos em vez de bombas, Karina tenta tristemente ninar as crianças das cidades iraquianas bombardeadas: "Não importa seus amigos anjos / nem sua vontade de comer um bolo / Dorme logo antes que você morra". Depois, passeando pela linguagem teatral e musical de Bertold Brecht e Kurt Weill, ela escarra o rock-marcial "Soldat".

A fuga do vazio, do niilismo, requer espaço para a individualidade, sem isolamento: "Você não esperava / mas eu esperei / e a gente se desesperou", canta em "Plástico Bolha", um reggae em pulsão de ska e frevo, que se complementa na balada dolente "Bem Vindas": "Nessa tarde que passa mansa / e despreocupada comigo". Karina quer andar, existir, cantar, "pular contra a vontade do chão", respeitando a resistência perfeita do corpo humano: "Se bate de leve dói, se bate de com força mata". Salve, Karina.



quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sacizada na Língua do Pê - 10/6/2010 - Coluna Diário do Nordeste

Dia após dia fico mais e mais encantado com o potencial revolvedor e renovador da brasilidade, muitas vezes ainda latente na nossa memória coletiva. O mais recente impulso que tive nesse sentido foi a experimentação que fiz, em parceria com o compositor e cantor Calé Alencar, de compor uma música para a Festa do Saci de 2010, toda na Língua do Pê. Com essa investida sacizística procuramos testar a força da inter-relação entre o que somos quando dialogamos com a nossa cultura e o que podemos ser quando devolvemos ao convívio social, especialmente nos centros urbanos, a prática lúdica do exercício do avesso e da criatividade da cultura da infância.

Unir o Saci e a Língua do Pê, cujas origens estão no ato imaginativo do Brasil profundo, ocorre-me como um denominador comum para crianças e adultos. Se o Saci tem em seus atributos o hábito de ser brincalhão, gozador e de gostar de dar alguns sustos também, a Língua do Pê, por sua vez, está atrelada à diversão das parlendas e dos trava-línguas e ao fascínio dos códigos secretos, utilizados tempos atrás pelas crianças e adolescentes na tentativa de evitar que curiosos entendessem suas conversas. Ambos apresentam, portanto, um vigoroso espírito lírico, satírico, poético e brincalhão.

Por acreditar que somos uma consequência dos nossos símbolos e que o mundo real é o que está em nossas mentes, entendo que revigorar representações simbólicas populares como o Saci e a Língua do Pê é uma maneira de valorizar e revitalizar a cultura de um País que tem muito com que contribuir na trama do diálogo local e global. Para ter uma visão mais clara de tudo isso, defini a "saciologia" como uma das ciências humanas, que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação; e defini a Língua do Pê, como a gramática da infância, estruturada em sons e grafias convencionadas pelo caráter do jogo.

O Saci, como o mais representativo dos nossos mitos, tem sido chamado a colaborar com as mudanças de mentalidade em curso no Brasil. Nos últimos cinco anos, dez cidades brasileiras já formalizaram o dia 31 de Outubro como o Dia do Saci, deslocando a caracterização meramente folclórica do personagem para uma integração mais direta no meio social e cultural: São Luiz do Paraitinga, São José do Rio Preto, Angatuba e São Paulo (SP), Vitória (ES), Poços de Caldas, Uberaba e Pouso Alegre (MG), Fortaleza e Independência (CE). Sem contar que o Dia do Saci está instituído oficialmente no Estado de São Paulo e faz parte do calendário oficial da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará.

A tendência de ampliação das movimentações culturais e educacionais relativas ao Saci sugere que paulatinamente sejam agregados novos elementos proporcionadores de benefícios a essa força revigorante. A Língua do Pê é um desses elementos que têm tudo para produzir sinergias nesse processo. É bem provável que as crianças e os adolescentes, que utilizam hoje o internetês, como forma apenas escrita de se comunicar, se interessem por esse idioma à parte, ao descobrirem que se trata de uma cifra fonética ancestral, com a qual dá para escrever e falar secretamente. A assimilação se dará com mais intensidade e consistência se pais e educadores entenderem a Língua do Pê como trava-línguas, por conseguinte, como um recurso para melhoria de dicção e auxílio fonoaudiológico, facilitador da articulação das palavras.

Para falar ou escrever a Língua do Pê é muito simples, basta colocar o fonema "pê", depois de cada sílaba. O meu nome, por exemplo, fica assim: Flapavipiopó Papaipivapa. Em alguns casos, a unidade sonora puxa a consoante ou o acento. O sobrenome do Calé, por exemplo, fica assim: Apalenpencapar (e não Apalenpenca"r"par). O mesmo acontece com Pererê, que fica assim: Pepereperepê (e não Pepereper"ê"pê). Há situações em que a variação é opcional. Língua, por exemplo, pode ser escrita e falada assim: Linpíngupuapá ou simplesmente linpínguapá. Esse jeito nordestino de falar a Língua do Pê veio da península Ibérica, mas há regiões brasileiras que passaram a colocar o fonema "pê" antes das sílabas.

E então, foi recorrendo à rica e divertida Língua do Pê que o Calé e eu fizemos uma música para a Festa do Saci de 2010. O título ficou assim: "Sapacipi Pepereperepê". E a letra assim: "Epeupu tepenhopo upumapa / Copoipisapa paparapa lhepe dipizeper / Poporempém sopó popossopo lhepe dipizeper / Napa linpíngupuapa dopo pepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Sopó quempem fapalapa / Epessapa linpíngupuapa / Apa vepelhapa linpíngupuapa dopo pepê / Sapabepe bempem opo quepe epeupu dipigopo / Quanpandopo dipigopo apa vopocepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê / Epeupu vipi opo sapacipi / Opo sapacipi pepereperepê".

Desde que não seja para fins comerciais, a gravação está disponível em mp3 no meu site www.flaviopaiva.com.br (basta entrar em "Novidades" que a primeira coisa que aparece é o link para baixar). A gravação de "Sapacipi Pepereperepê" foi feita dia 23 de maio, no Teatro Violeta Arraes - Engenho de Artes Cênicas, da Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, em Nova Olinda, a 550 km de Fortaleza, com técnica de Hamilton, Huguinho e Raniel. A sanfona do Adelson Viana foi gravada em Fortaleza, no dia 2 de junho, com técnica de Lauro César. Com arranjos coletivos e a participação integral do músico e pesquisador André Magalhães, a sacizada contou com Calé (voz, violão, percussão e arranjo de base), Adelson Viana (sanfona), Samuel Macêdo (guitarra), Aécio Diniz (baixo), Hélio Filho (bateria), André Magalhães, Jaime, Lucas Paiva e Luciana Martins (percussão). O coro infantil e a barulhada foi feito por Artur, Augusto, Diana, Lucas, Luciana, Maropim, Netinho, Raissa, Raniel, Regina e Yasmim.

Gravar em Nova Olinda, no Cariri, com o apoio do Alemberg Quindins, presidente da Fundação Casa Grande e das crianças e adolescentes que tocam o dia a dia da cultura nova olindense, deu uma propriedade especial ao trabalho. A Casa Grande vem há 18 anos desenvolvendo um dos mais significativos projetos sociais e econômicos lastreados na comunicação comunitária e na cultura. O município, que tem cerca de 13 mil habitantes, respira a capacidade efetiva da gestão cultural comandada pela juventude, em programas de memória, comunicação, artes e turismo, fundados na cooperação e na corresponsabilidade. Os jovens da banda e as crianças do coro não são apenas músicos, são pequenos cidadãos que utilizam a arte como instrumento de construção social.

No domingo à noite fomos ao teatro com os nossos filhos e no mesmo palco onde graváramos a música, vimos duas apresentações que excederam as nossas expectativas. A primeira, foi a exibição do "100 Canal", uma versão do antigo cinejornal da Atlântida, feita pela meninada, que exibiu os melhores momentos do torneio de futebol local, cujo jogo havíamos assistido no dia anterior. A algazarra da platéia com os lances mudou totalmente para o silêncio compenetrado, quando os atores-manipuladores Cléber Laguna e Márcia Fernandes, da Cia. Mevitevendo, de São Paulo, iniciaram a peça Zero, que fala de um certo Senhor Z, figura melancólica que perdeu a memória da infância e tem dificuldade de viver em um lugar onde não predomine a artificialidade.