quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um redemoinho puxa o outro - Diário do Nordeste - 28/10/2010

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia (...) que é a Festa do Saci. (...) É maravilhoso ver o Saci, aglutinando amigos de lendas (...), mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem.

A coordenadora da Universidade Popular, da Prefeitura Municipal de Passo Fundo, Maria Augusta D´Arienzo, me conta que a partir de uma das conversas que tivemos no ano passado, por ocasião da Jornada Literária, aquele agradável e dinâmico município gaúcho realizará no próximo sábado (30) a sua primeira Festa do Saci. E como não poderia ser diferente na terra da professora Tânia Rösing e da Universidade de Passo Fundo, a sacizisse vai acontecer à base de troca-troca de livros.

Da Cidade de Goiás a educadora Lúcia Agostini me transmite a vibração de mais uma Sacyzada, ocorrida na Vila Esperança durante a Semana de Estudos e Vivências da Cultura Brasileira (14 a 18/09). Não faltaram causos e batucadas de Sacy nesse território livre que um dia o poeta Gilberto Mendonça Teles conceituou de "saciologia goiana". A agitadora pedagógico-cultural Maria Inez do Espírito Santo, escreve do Rio de Janeiro para dizer que o Saci da Festa da Comunidade, que ela fazia com motivação inclusiva nos anos 1980, na Escola Viva de Petrópolis, se fará presente no Ceará, no dia 31.

A Sociedade de Observadores de Saci (Sosaci) segue firme em sua festa, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo; evento incorporado ao calendário turístico da cidade. Débora Kikuti, observadora de Saci em Guarulhos, anima uma festa que, entre músicas, rodas de histórias e oficina de boneco de Saci, conta com atividades multimídias "folcloricantes". Isso mesmo, eles usam graciosamente o verbo "folcloricar" para fazer integração de linguagens.

Como é de conhecimento comum, a locomoção rápida do Saci é feita em redemoinhos; e, como nas contações de histórias, um redemoinho puxa o outro. Por isso a Festa do Saci se constrói na concertação das diferenças, agregando uma brincadeira daqui, uma travessura dali, revelando o poder que temos para eleger e praticar o nosso modo de ser, enquanto sociedade miscigenada de um país continental.

A popularização da Festa do Saci, sobretudo no dia 31 de outubro, mesmo dia do "Halloween" estadunidense - uma das ideias traquinas do jornalista Mouzar Benedito - tem gerado uma participação elevada pela liberdade de cada lugar poder fazer a festa de acordo com seus desejos e condições. Como não há fórmula, nem hierarquias, a Festa do Saci não se limita a uma única emoção, nem a um só público; é uma festa da diversidade e da pluralidade.

Procurei disseminar esse construtivismo inter-regional em meu livro/CD "A Festa do Saci" (Cortez Editora) e experienciar algumas sequências recreativas em uma festa de condomínio que há três anos realizamos em Fortaleza com familiares e amigos. Essa brincadeira já resultou em um musical do Instituto Canarinho, adaptado pelo dramaturgo Rafael Martins e dirigido por Marconi Basílio; em duas monografias de graduação e no trabalho desenvolvido pelo facilitador alemão Thomas Semrau para a Formação Continuada dos Educadores Sociais, do programa "O Ceará Cresce Brincando", que trata o brincar como um direito.

Um exemplo evidente da mutualidade na construção da Festa do Saci ocorreu no dia 20 passado, em uma conversa que tive em Messejana com brinquedistas desse programa realizado pela Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Ceará (Apdmce) e Unicef, e executado pelo Instituto Stela Naspolini: Socorro e Joselda (Assaré), Ângela e Lilia (Beberibe), Leopoldo e Roberto (Brejo Santo), Lúcia e Adriele (Cruz), Karolina e Rosa (Itarema), Amirles e Karla (Horizonte), Márcia e Darlene (Pedra Branca), Ledian e Evânia (Porteiras), Verônica e Rosa Maria (Quixeramobim), Maria da Glória e Alaíde (Sobral), Adriana (Tejuçuoca) e Jordeana e Elenilda (Viçosa do Ceará).

Ao falar que na Festa do Saci cada criança deve levar a guloseima que mais gosta para oferecer aos participantes, as educadoras sociais colocaram a dificuldade dessa prática em algumas comunidades. Imediatamente encontramos alternativas para essa contribuição, como por exemplo, a de levar o avô ou a mãe para contar uma história na roda. O importante é fugir do estigma de carente, possibilitando que todos sintam que têm algo a compartilhar.

De Independência, onde eu nasci, recebo da ONG História Viva a notícia de que a Festa do Saci está acontecendo em algumas escolas desde a segunda-feira passada (25) e se estenderá até amanhã (29), por onde tem circulado um boneco do Saci feito pelo artista plástico DIM. A brincadeira tem base em um projeto pedagógico e recreativo preparado pela professora Maria Irandir Bezerra Sabóia, no qual estão sugeridas atividades de recorte e colagem, caça-palavras, boca de forno e cabra-cega, na perspectiva do Saci como mito ecológico e cultural.

O redemoinho continua puxando o outro também nos três dias de Festa do Saci que a Aldeia Luz realizará na Biblioteca Pública e na Casa de Juvenal Galeno, entre os dias três e cinco de novembro, dentro do calendário oficial do Departamento de Patrimônio Imaterial da Secult. Como nos anos anteriores, as ações sacizísticas contarão com teatro de boneco, oficina de desenho, distribuição de gorros e camisetas, cordéis com histórias de Saci e uma palestra com o jornalista Vladimir Sacchetta, o saciólogo que me iniciou nessas e em outras reflexões lobatianas.

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia contemporânea de liberdade que é a Festa do Saci. A liberdade de ser o que somos, de ser uma sociedade tomando consciência de si. Criei dois conceitos como contribuição para esse debate: a) Sacizada é um ajuntamento alegre, divertido, crítico e contemplativo de pessoas e mitos populares; e b) Saciologia é uma ciência humana que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação.

É maravilhoso ver um personagem como o Saci, aglutinando amigos de lendas para a sua festa, mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem. O grande luxo de uma Festa do Saci é aprender a brincar com ele "sem ele", exercitando a imaginação na sua forma mais espontânea, no limite da criatividade do brincante.

O Robson Moreira, presidente da Sosaci, me contou meses atrás em uma conversa na calçada do Patbanda, na Vila Madalena, em São Paulo, que ensinou seus netos a pegar Saci, só para brincar e depois soltar. Segundo ele, a gente não vê quando o Saci passa em nossa frente porque o danado aproveita exatamente o momento em que piscamos os olhos para passar. Então, ele inventou de rapidamente fechar à mão diante dos olhos no momento em que a pálpebra fecha e pegou um Saci. Passou a dica para a criançada e tem muito moleque pegando Saci para brincar.

No domingo (31) vai ter homenagem ao Dia do Saci também no Centro Cultural Dragão do Mar, às 16 horas, dentro da programação "Pintando e Brincando no Dragão". É o redemoinho passando, enquanto aprendemos a fazer a festa uns com os outros. Uma das maiores dificuldades que tínhamos para fazer a Festa do Saci em nosso condomínio era a de conseguir copo biodegradável.

Até que comentando isso com a Mônica Yoshizato, mestranda em ciência ambiental na USP, ela sugeriu que solicitássemos às crianças que levassem seus próprios copos. Depois ela me disse que inspirada na nossa Festa do Saci havia proposto para a escola do filho dela o "amigo secreto sustentável" (com brinquedo usado) para o Natal. Deu certo cá e deu certo lá... um redemoinho puxa o outro.






quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O boato na democracia - Diário do Nordeste - 21/10/2010

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto

O uso de boato em campanhas políticas não é novidade. Aliás, não existe política sem boato. Mas deve existir um limite ético para a utilização do boato como propaganda eleitoral. O segundo turno da eleição para presidente coloca esse paroxismo em pauta. O que ler nos boatos? O que eles dizem? Quais seus significados para a democracia? O que será feito da boataria depois do dia 31 de outubro de 2010? A resposta a essas perguntas é um desafio posto ao eleitor que não aceita ser manipulado por esse velho artifício da fragilidade humana.

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto. Esse fato de não haver tempo hábil para o eleitor saber antes de votar se o seu conteúdo tem origem em verdade ou mentira aumenta a criticidade do apelo ao boato em campanhas eleitorais.

O pesquisador francês Jean-Noël Kapferer, uma das principais referências mundiais no campo da gestão de marcas, diz em seu livro "Boatos - o mais antigo mídia do mundo" (Forense Universitária, RJ, 1993), que não distingue cultos e não cultos como propagadores de boatos. "Poderíamos ser levados a acreditar que o boato é vulgar e que não encontra nenhum crédito junto às pessoas pretensamente a par dos mecanismos e desenvolvimento da vida nacional, e que acompanham mais ou menos o debate público. Ora, não acontece nada disso" (p. 91). Um dos argumentos de Kapferer é que boa parte da "intelligentsia" acredita também em boatos, porque tem cada vez mais uma visão parcial e específica do mundo.

Como fenômeno plantado na crença das pessoas, o boato carrega sempre mensagens ocultas, protegidas por conteúdos aparentes. Ele está presente no cotidiano de todas as esferas da vida social. Quando o boato parte de fora da esfera institucional da campanha, quando ele parte da militância, ele é aceitável por criar uma necessidade de resposta por parte das autoridades; agora, quando o boato parte de alguém que está formalmente em campanha, ele perde o caráter de espontaneidade para assumir um perfil manipulador.

Que dizer: se o boato é gerado por fonte anônima ele é um recurso movedor de algumas verdades ocultas, mas se ele é produzido nos laboratórios da propaganda e da publicidade eleitoral, ele passa a cumprir uma função de proselitismo para mobilizar atenções contra seu adversário. Neste caso, Krapferer entende o boato como uma indústria de conversão às suas próprias teses: "quanto mais ele amplia o círculo de adeptos maior é o sentimento de que se está diante do verdadeiro" (p. 49).

A recorrência ao boato oferece muitas vantagens na guerra política. Uma delas é que o candidato delega a tarefa da calúnia a voluntários e permanece por trás das cortinas. "O boato permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe que se mencione abertamente" (p. 196). Assim, a priorização do boato no estratagema das campanhas para a desestabilização de adversários passa a ser praticada porque a opinião pública tende a se apegar mais a impressões do que a fatos.

O boato é um grande instrumento de difamação que atravanca a experiência democrática. Ao tentar convencer, ele induz o eleitor ao erro, por sedução moral. Circula afastando o eleitor da atração por propostas, projetos, visões e sentido de destino, enquanto promove dúvidas e indignações: nada garante que um boato seja ou não verdadeiro. O problema é como a combinação de informação verificada e boato se traduz nas urnas.

A opção pelo boato como tática de campanha é uma revelação de baixo espírito democrático. O apelo ao "ouvi-dizer" pode ter efeito bumerangue quando percebido pelo eleitor, atingindo a reputação de quem lança o boato. Ninguém em sã consciência almeja um governante afeito a fofocas. É uma questão de defesa psicológica, que age quando o boato passa a preponderar descaradamente em campanhas políticas, deixando de relatar o que interessa para espalhar o que dizem por aí, desligando a palavra e a imagem do fato que significam.

Uma parte das conversas fantasiosas de eleitores é natural do nosso comportamento e não tem maldade, por estar associada à novelização do cotidiano e da vida. Uma outra parte, pelo contrário, revela mordacidade, por ser propaganda de desonra e afirmação de preconceitos, construída a partir de blefe dos tipos ideais.

Quem apela para a fofoca e o boato como peça de campanha demonstra temor e incapacidade de propor algo que possa ser compreendido pelo eleitor como importante para sua comunidade e para o País. É na tentativa de justificar o que não tem a acrescentar que o político boateiro recorre a esse tipo de expediente, procurando esconder-se na (in) consistência de suposições (in) fundadas em (in) formações de motivos tendenciosos. Esse chapéu cabe também na cabeça dos eleitores que se prestam ao papel de espalhadores voluntários de boatos.

O boato profissional sinaliza para a fragilidade do espírito democrático de quem dele se vale para conseguir da maioria um decreto de corrosão do adversário. O pior é que o boato funciona para tornar realistas hipóteses ameaçadoras que, em muitas circunstâncias, empurram o eleitor a assumir a voz da propaganda política, sem perceber que ao fazer isso muitas vezes está acusando a própria consciência de preferir um ou outro candidato.

A priorização do boato é antidemocrática porque atinge o equilíbrio psicossocial dos votantes ao deixar o eleitor orgulhoso do seu poder de desdenhar de alguém mais poderoso do que ele, no momento em que esse alguém precisa de voto para continuar no poder. Entusiasmado com esse brio passageiro, o eleitor acaba esquecendo que depois da eleição o boato pode simplesmente desaparecer. "O pós-boato interessa pouco. Tudo parece em ordem, e a vida recomeça como antes. A tempestade passou e com a volta do tempo bom tudo se esquece, nada aconteceu. O boato? Que boato?" (p. 101).

Embora depois da eleição o sumiço do boato seja enganador, pois sempre ficam alguns resquícios para campanhas futuras, essa síntese de Kapferer vai bem ao encontro do que se costuma chamar de memória curta. O recuo silencioso do pós-boato produz algumas suposições: "Não se comenta mais porque não se acredita mais no boato, ou porque ainda se acredita, mas não fica bem se falar dele ou, enfim, porque mesmo se acreditando nele, não há mais condição para se falar dele" (p. 101).

Qualquer dessas conjecturas leva o eleitor atento ou frustrado a perceber que a coragem de fofocar e de espalhar boatos é uma manifestação de covardia, uma pisada na própria sombra. Atingido pela atração de mercado negro que tem o boato, o eleitor muitas vezes só vai descobrir tempos depois que foi abduzido pelos rumores e que deixou de mobilizar suas energias em favor do que realmente acredita.

Um grande problema gerado pelo boato excessivo em campanhas eleitorais é a perda da confiança do eleitor nas lideranças políticas e nas fontes de informação. Muitos eleitores bombardeados por toda sorte de promessas, percebem no boato um instrumento de liberdade, uma forma de comunicação que não pode ser controlada pelos diversos poderes e se sente gratificado com essa válvula de escape. Ao fazer isso, aposta na ambiguidade como determinação de preferências políticas e eleitorais, o que é muito ruim para a evolução da nossa democracia empírica.








sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A reforma do pensamento - Diário do Nordeste - 14/10/2010


A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura (...) A autora sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um novo humanismo

No início do século XX, salvo as traduções e adaptações dos contos e aventuras de teor fantasioso, escritas para adultos, a literatura para crianças no Brasil tinha como função transmitir valores morais, cívicos e nacionalistas no ensino primário. Era coisa de sala de aula. O valor da imaginação criadora, indispensável para o desenvolvimento da personalidade integral, era muito pouco considerado. Adulto era para dizer o que a criança deveria aprender e à criança cabia o esforço de assimilar as instruções recebidas.

Estamos no início do século XXI e a literatura infantil brasileira passa por uma ameaça de regressão, com a proliferação do chamado livro paradidático, aquele que diz o que a criança deve entender, roubando a sua liberdade de interpretação, que é o grande diferencial da literatura. As bibliotecas estão cheias dessas publicações funcionais, com seus enredos sem alma, criados especificamente para subsidiar aspectos didático-pedagógicos.

A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura. Há cem anos ainda não tínhamos a compreensão que a psicologia e a neurociência nos deram quanto à importância da leitura como meio para a organização da percepção do mundo e preparação para interferir na realidade. Insistir nesse equívoco é decretar a morte da vontade de ler e admitir a indolência da pedagogia.

Diante desse impasse de caráter cultural e educacional, a educadora mineira Angelina M. F. Castro propõe que, à luz das teorias textuais contemporâneas e das tecnologias da inteligência, a busca por saídas comece nos recursos literários e pedagógicos do Sítio do Picapau Amarelo. Em seu livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, Belo Horizonte, 2010), ela mostra as razões que a levam a acreditar nessa força de inteligência coletiva e solidária. O Sítio, neste caso, está além dos paradidáticos porque é uma literatura que atua como mediadora do processo de aprendizagem, oferecendo à criança a oportunidade de pensar por si mesma.

A autora associa a transversalidade da obra infantil lobatiana à proposta da revolucionária Escola Nova, pensada por educadores como Anísio Teixeira, que provocou uma mudança radical na educação brasileira dos anos 1920. Naquele momento, no Sítio da Dona Benta, a criança passou a ter voz ativa. Antes, meninas e meninos eram educados para obedecer e se calar diante dos adultos. Com seu livro, Angelina instiga os educadores da atualidade a enfrentarem o desafio da produção de uma nova metodologia educacional que seja também uma nova reforma do pensamento.

Chamar Monteiro Lobato para pensar o futuro mais uma vez é, dentro da abordagem de Angelina Castro, acreditar em uma estética da flexibilização de fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento, ativando novos recursos cognitivos e promovendo a interação de linguagens, de modo a levar o leitor à descoberta do que lhe parece invisível. A leitura relacional, simultânea e não linear, semelhante ao movimento da mente humana, sempre presente nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é trabalhada pela autora como uma antecipação do que nas últimas décadas convencionou-se chamar de hipertexto.

Essa vinculação do alcance da obra literária infantil de Lobato às modernas teorias de rede e suas múltiplas possibilidades de leitura, pensamento e produção de saber remete ao entendimento de que as metodologias de leitura se tornem compatíveis com o avanço das ciências humanas, sociais e tecnológicas. A autora argumenta que o Sítio guarda segredos de comunicação que somente hoje, com o computador e todo o ambiente digital, podem ser identificados. Sem contar com sua inclinação para a moderna Teoria da Complexidade, cujos conceitos se contrapõem aos princípios da especialização do conhecimento.

Por isso, e implicitamente atendendo aos perfis da nova infância, ela sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um "novo humanismo", apto a substituir, na vida pessoal e social, os antivalores do egoísmo social, da competição desmedida, do consumismo, do materialismo e do domínio sobre o outro, pelos valores voltados para o encantamento da vida. Ela lança o desafio aos educadores que, por meio da imaginação, teimem em mudar esse mundo racional e despoetizado.

Angelina Castro realça o papel de Monteiro Lobato como criador das condições para que o leitor restabeleça o elo perdido com o seu eu recôndito. "Talvez seja este o papel da educação: descobrir e trazer à tona a pérola, o potencial que está escondido nos subterrâneos do nosso ser" (p. 24). É nesse terreno fértil que brota a ação literária infantil do autor do Sítio em favor de uma educação crítico-criativa da infância leitora. A atualidade de Lobato é surpreendente. Livros como "A Reforma da Natureza" impressionam pelo que possibilitam de nodos pedagógicos sem, no entanto, cair em paradidatismos.

O caminho para uma educação da sensibilidade passa por uma literatura que torne o leitor apto a dar sentido às próprias experiências. Em vez de dar lição de moral, Monteiro Lobato dava à boneca Emília a missão de tirar o melhor das fábulas, pelo exagero da caricatura, pela reação que a inconveniência produz. Se Américo Pisca-Pisca achava que a natureza só fazia tolices e agia como agem muitos cientistas hoje, que fazem modificações genéticas apenas em nome de resultados econômicos, Emília propõe o caricato em seu plano de reforma, tal como acabar com a situação de só as fêmeas botarem e chocarem ovos.

Ao tratar da conexão dos saberes, Angelina Castro aproxima Edgar Morin de Monteiro Lobato, pelo esforço de ambos, cada qual do seu jeito e no seu tempo, para a construção de uma epistemologia na qual se articulam as diversidades e as oposições, no que apresentam de complementaridade de inter-dependência. Para cada um dos sete saberes que a teoria de Morin propõe para a educação no futuro, a autora dá exemplos de como um a um foi levado a efeito na obra infantil de Lobato.

Se o pensador francês assegura que conhecer dados isolados é insuficiente, o escritor brasileiro coloca a Dona Benta para situar seus relatos no tempo, num lugar, ligando-se ao cotidiano e abrindo espaço para as crianças vivenciarem o conhecimento adquirido por meio de sua criatividade; se Morin postula o entendimento da condição humana, Lobato fustiga essa questão filosófica com literatura transbordante como "Os doze trabalhos de Hércules" e "O Minotauro"; se a teoria de um defende a consciência da identidade terrena através do ensino do respeito ao próximo, a literatura do outro leva a meninada à reflexão e ao pensamento crítico em trabalhos como "A chave do tamanho" e sua denúncia contra a violência da guerra.

Essa parte do livro é muito empolgante. Parece uma peleja entre duas cabeças privilegiadas que resolveram se encontrar em tempos e lugares diferentes. Morin versa sobre a intensificação da imprevisibilidade e os personagens de Lobato agem preparados para o incerto e para as consequências dos seus atos; o sociólogo fala de "ensinar a compreensão" e o escritor traz no Sítio o costume do "aprender juntos"; a teoria de Edgar Morin prima pelo ensino da antropoética e as histórias infantis de Monteiro Lobato refletem em suas páginas a valorização da beleza e da poesia como atributos necessários a uma vida mais consciente, mais plena e prazerosa.




quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sucessivo como a vida - 7/10/2010 - Diário do Nordeste


A biografia de José Cortez destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil (...) O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram o editor a ser um agitador de ideias e um cidadão orgânico exemplar.


Poucos dias antes da festa de abertura das comemorações dos 30 anos da Cortez Editora, realizada no dia 1º de março de 2010, no TUCA, teatro da PUC/SP, o editor José Cortez comentou comigo que ainda não estava tão confortável com a ideia de ter sua história publicada. Lembrei-lhe de que certa vez ele me disse que gostava do jeito entusiasmado como eu falo dos meus livros e de eu ser um autor que não tem vergonha de vibrar com o que faz. Devolvi-lhe o comentário, com o intuito de reforçar o quão é importante para a sociedade conhecer a vida e a obra de uma pessoa caracterizada por um obstinado espírito realizador, como o dele.

Comentei que a relutância demonstrada por ele é natural, mas isso não deveria inibi-lo de tornar pública a sua trajetória exemplar. A história de José Cortez se mescla com a história da livraria e da editora que levam o seu nome. Por todos esses anos ele não permitiu holofotes voltados para si. Sempre jogou luzes para que o pensamento crítico brasileiro se libertasse das sombras do determinismo colonial. Disse-lhe que já é hora de ele ser visto, de ser homenageado e de desfrutar do respeito conquistado com tanta sensibilidade e garra. Ele fez um gesto de "se é assim" e despediu-se no seu simpático passo puxadinho, mas firme.

O tempo passou e o livro "A saga de um sonhador" (Teresa Sales e Goimar Dantas) está nas livrarias. Conta a história de um ser humano surpreendente. Criado no barro do chão, nas brenhas, Zé de Mizael - como é conhecido na família, que se estende pela comunidade do sítio Santa Rita, município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, onde nasceu - apreendeu traços de uma etiologia cariboca, modelada nos valores do trabalho, da família, da solidariedade e da moral sertaneja, que ele posteriormente levou para a empresa.

À primeira vista, as duas partes que compõem o livro parecem dois volumes em um. Um com viés acadêmico e outro com abordagem jornalística. Mas não são dois livros, são dois jeitos de tratar os dois momentos definidores da vida do editor, mantendo a configuração inversora e casual da sua história: o livro não foi pensado assim, mas aconteceu assim, com duas autoras cuidando de duas vertentes narrativas, que se unem pelo que há de positivo nas imperfeições humanas. A consequência dessa concatenação suplementar é que a obra de Teresa Sales e Goimar Dantas fala com emoção de uma vida e de uma obra seladas na confiança de quem está sempre pronto para reacontecer.

Com base na experiência de um sonhador em busca permanente de concretização dos seus sonhos, nota-se que a segunda parte depende da primeira, menos por sequência cronológica e mais por sincronicidade. Sem o alicerce erguido nas aventuras do menino e do jovem Cortez, dificilmente haveria o empresário de sucesso, transbordando senso de dever e amor pelo que faz. O livro aborda os feitos de José Cortez pela evocação das essências fundantes do seu caráter, condição que resultou na concretude lastreada pelo desejo de realização à procura de fazer acontecer.

Na primeira parte, a vida do biografado, mais voltada para a relação da infância e da sobrevivência, momento de preparação da sua alteridade, é contada e bem contada por quem estuda e conhece profundamente o ambiente onde ele se formou para a vida, a professora Teresa Sales. Socióloga, presidente do Conselho Diretor do Centro Josué de Castro, pesquisadora e autora de livros que abordam as temáticas relativas às transformações no mundo rural nordestino e em migrações internas brasileiras, Teresa Sales oferece mais do que uma biografia, ela presenteia o leitor com um retrato sociocultural, econômico e histórico do sertão. Com olhar atento, ela faz uma síntese nordestina em recorte que concilia o povoamento do semiárido, as relações no campo, o etos da família camponesa, a questão fundiária, a escravidão e as migrações. Ao mesmo tempo, mostra um José Cortez de alma tapuia, em um trançado de infância que diz muito da infância do Brasil.

Na segunda parte, a maneira mais solta de condução do texto foca José Cortez em sua fase mais madura, depois que foi expulso da Marinha, momento em que enfrentou os desafios de se estabelecer na capital paulista e passou a acolher familiares para trabalhar e estudar. Goimar Dantas, que é jornalista potiguar radicada em São Paulo, onde realiza trabalhos de valorização da memória da cidade, coloca a saga de José Cortez em um "guarda-garoa" modulado por referências culturais: recorre ao "E agora, José?" de Drummond, ao rapaz latino-americano de Belchior, à máxima de que "um país se faz com homens e livros", de Monteiro Lobato, ao grito de "um por todos e todos por um" dos três mosqueteiros de Alexandre Dumas, ao "Grande Sertão", de Guimarães Rosa, ao "Xote das meninas", de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e alusões a J.D. Salinger, James Dean, Fred Astaire, Menudos e Pedro Almodóvar.

Ambas as partes, com seus diferentes sotaques estilísticos, unem-se no ponto de coesão e coerência da personalidade do biografado: a coragem de existir nos sonhos, nos gestos e nas ações. Da soma das duas partes, resultam linguagens complementares que se projetam em uma obra inteira e disruptiva. Quer na primeira, quer na segunda parte, José Cortez aparece sempre fiel ao seu espírito criativo e à busca de realização, como um hábil mediador na cena cultural entre autores e leitores. Ele rompe com a linearidade dos modelos mentais dominantes, para contribuir com a inserção do Brasil como protagonista do mundo multipolar, pluriétnico e inclinado ao que chamo de social ambientalismo participativo.

O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram José Cortez a ser um agitador de ideias, um cidadão orgânico, no desempenho do seu papel de editor, por meio do qual espalhou dedicação ao livro e à leitura, numa inusitada capacidade empreendedora. Cortez é um dos emblemas do livro no Brasil, uma pessoa com notável respeitabilidade, capaz de unir em si grande modéstia e muita determinação. Aprendeu a escala da liberdade de apreciação e a tecedura entre o universo do saber e do conhecimento, na cultura e na ciência. Sua biografia destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil.

No garimpo, descrito por Teresa na primeira parte do livro, José Cortez buscava minerais preciosos, tempo em que - ele me disse certa vez - costumava comer preá assado embaixo dos matos para se proteger do sol inclemente. Na editora, parte reportada por Goimar Dantas, ele aparece garimpando e publicando bons originais, rodeado por uma equipe de apaixonados por livros que, sem pretensões professorais, educam e instigam pensar, movidos pelo pendor democrático do saber e do conhecimento, e pela convicção de que ler é um ato de aspiração.

Sempre respondendo com postura afirmativa a cada momento brasileiro, José Cortez está entre os atores culturais de maior relevância das últimas décadas.

Como formador de intelectuais e preparador de cidadãos, passou a ocupar lugar de destaque na galeria dos grandes editores brasileiros. Financiou o próprio sonho com trabalho duro e em condições precárias de realismo social, para fazer educação no Brasil. Sem ele e sem os autores que vem editando ao longo dos anos, certamente muitos estudiosos e educadores não seriam os mesmos. Por tudo isso, "A saga de um sonhador" é um livro que merece ser ouvido como se ouve a quem verdadeiramente tem algo a contar.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Coluna Flávio Paiva - Diário do Nordeste - 30/9/2010

A compreensão de que arte e política são inseparáveis me aproximou de pronto dos fundamentos da 29ª Bienal de São Paulo, que está aberta ao público no pavilhão do Parque do Ibirapuera, desde o dia 25 deste mês, estendendo-se até o dia 12 de dezembro. Estou alinhado com os que, dentre outros atributos, admiram na arte a sua atitude subversora do senso comum. Com esse espírito visitei a Bienal na quarta-feira passada, dia 22, por ocasião do coquetel para convidados do Itaú Unibanco, patrocinadores do evento. Por quase quatro horas me deleitei com o que em tão pouco tempo foi possível apreciar dos mais de 800 trabalhos de 159 artistas selecionados.

Embora tenha me deslocado pelas praças, corredores e compartimentos dos três pisos do pavilhão, carregando o peso da impressão de estar sendo vigiado por um grande consenso internacional de curadores apegados à preferência pelo que o vídeo e a fotografia representam na arte contemporânea, saí contente da minha visita porque saí confuso e pensativo. Atribuo a causa dessa minha feliz inquietação ao efeito dos contrastes entre a inseparabilidade da arte e da política, princípio organizador da Bienal, e a relativa efetivação desse princípio, no que
diz respeito à indistinção feita entre o que é arte e o que não passa de uso e técnica da tecnologia digital para o registro da realidade.

A liberdade de reler, de reinventar e de interferir no real está no genoma político da arte. Tive dificuldade de sentir essa afirmação nos pronunciamentos estéticos do conjunto dos trabalhos expostos. A maioria me pareceu perto demais da fisionomia de marginalidade já espetacularizada pelas mais diversas mídias de massa. É certo que a articulação desses relatos tem grande valor social e político, mas correm o risco de reduzir a função política da arte e o papel social do artista a uma mera crônica das nossas fraturas expostas. Esse tipo de decalque de circunstâncias, composto por referências visuais agressivas das desigualdades, acaba por deter no espelho das imagens o que está por trás delas.

A apropriação direta da realidade não necessita da arte, sob o aspecto de desestabilização da ordem dos sentidos. Cada qual faz a sua parte, matando, roubando, reprimindo, ameaçando, se omitindo, denunciando, demolindo, ateando fogo nas matas, nos mendigos e até filmando e fotografando tudo isso. Os estímulos de ficção instalados no cotidiano seriam assim os destinatários de si mesmos, por terem como endereço a vulnerabilidade humana.
Os exageros na repercussão dos painéis "Inimigos" de Gil Vicente, nos quais o autor aparece executando, sem direito de defesa, personalidades nacionais e internacionais, demonstram a superficialidade da nossa expectativa com relação à arte.

Ao comentar a polêmica gerada em torno do trabalho de Gil Vicente, a cantora Mona Gadêlha, com quem tive a satisfação de fazer todo o percurso da Bienal, lamentou a predominância desse tipo de discussão em um evento tão grandioso. A autora de "Salve a Beleza" é pouco afeita ao uso do recurso da agressão de forma demasiadamente direta na arte, por acreditar mais na sutileza que nos instiga à reflexão nas entrelinhas.
Concordo com ela, embora aceite com mais facilidade as manifestações agressivas na arte, desde que suportadas por referências culturais e estéticas que as justifiquem.

Assim, vi os painéis de Gil Vicente mais como uma legítima indignação contra os sistemas representativos do que como traços rudimentares de carvão sobre papel. Esse ato de catarse me fez lembrar o palhaço Tiririca que se tivesse expondo suas peças de campanha na Bienal, sob o pretexto de expressão humorística da antipolítica, estaria contribuindo muito mais com a sociedade do que as levando ao ar no horário eleitoral gratuito. Na Bienal, e
las certamente teriam tanta repercussão quanto o trabalho de Gil Vicente e seriam mais expressivas do que a plotagem factual de Roberto Jacoby sobre a campanha presidencial.

Da forma que está conceituado, o trabalho que ocupa o vão central do pavilhão da Bienal deixa a desejar. Nuno Ramos, seu idealizador, fez um amplo viveiro no qual aprisionou três urubus, destacando-os como símbolo da negação, do luto, do carniceiro... O autor foi traído pelo senso comum e sua criação perdeu força. No céu da arte política a figura do urubu pegaria melhor se planasse em alguma corrente de ar aquecida pelo discurso transgressor da noção cultural e socioambiental dominante. Fora da caixa, a metáfora de um urubu preso significa a prisão de um agente de saúde da natureza e, consequentemente, uma forma de assegurar a liberdade de toda e qualquer sorte de carniça política e social.


Só por nos levar a turbilhões de pensamentos como esses a Bienal já cumpre a função política da sua ação cultural, que é oferecer exemplos de como, entranhada em si mesma, a arte é capaz de tecer uma política. Deixei o Parque do Ibirapuera naquela noite com a cabeça nadando a braçadas no "infinito próximo" do meu mar de interrogações. O título da 29ª
Bienal é um trecho do poema "A invenção de Orfeu", de Jorge de Lima (1895 - 1953): "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". A sensação de que a moda (e não a média) das obras expostas tem um frágil caráter artístico não evitou que eu reforçasse em mim a ideia de que enquanto houver arte o ser imaginativo não se deixará afogar.

Movido por essa disposição de apreciar as obras que d
ão dimensão oceânica aos mais simples copos de água, procurei não me deter ao que era inédito ou remontado, nacional ou internacional. A velha instalação de Anna Maria Maiolino está entre as obras que me fascinaram por seu caráter de atualidade radical: em uma sala toda branca, uma mesa preta aguarda os comensais em frieza sombria, com pratos servidos à base de terra adubada, da qual brotam fios de arroz e feijão. Trata-se de uma fala política extremamente revolucionária, por fustigar com impetuosa delicadeza os conflitos da geopolítica agrária e suas implicações no mundo dos negócios e na segurança alimentar.

A fotografia de Alessandra Sanguinetti também compõe a fração de obras que causam impactos próprios da arte em sua dimensão política. Dispostas em paredes que fatiam o tempo, as imagens de Sanguinetti mostram com volumosa textura de luz e sombra mais e melhor do que normalmente se vê. Em uma parede, a série procura interpretar o imaginário afetado pelo real nos últimos dias da infância das primas Belinda e Gille, uma bem magra e a outra gordinha. Na parede de frente, conta como as limitações do contexto social podem sufocar, mas não impedir que a fantasia siga seu curso de liberdade na cultura da infância. Neste aspecto, é maravilhosa a foto em que Gille, já adulta, amamenta um bebê, ao passo que sua filha mais v
elha fecha-lhe os olhos com as mãos, para que adivinhe quem é...

Do jeito que for, a 29ª Bienal reafirma sua importância como voz da arte contemporânea. Trabalhos como o congelamento de pêndulos e prumos, de Tatiana Trouvé; a coreografia de cabeças sobre manto branco, de Lygia Pape; e o redário de Rochelle Costi são essencialmente envolventes. Dessa paisagem mental fazem parte ainda as projeções de Kutlug Ataman, com a inquietante teatralização da mendicância; o mural gráfico paulofreireano de Jonathas de Andrade;
as fotos com denso relevo pictórico de Rodrigo Andrade; e as bandeiras nacionais sem cores, que Wilfredo Prieto intitulou simplesmente "Apolítico" para, deste modo, politizar mais ainda a sua intervenção.





quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Os poemas das nossas portas - Diário do Nordeste - 23/9/2010


Na nossa casa resolvemos deixar as portas permanentemente abertas. O canal de entrada e saída é a poesia (...) Quando lidos, os poemas transformam-se em pensamentos, em emoções e em comportamentos

Quando tocamos a campainha na casa de alguém, normalmente observamos a porta, corremos o olhar por sua superfície e, quando ela se abre, aquele olhar contido pela madeira, pelo vidro translúcido, pelo metal, deixa escapar para dentro da casa uma série de pensamentos lembrados ou não que produzimos naqueles instantes. Da mesma forma que ao ser aberta a porta permite a nossa passagem; enquanto que fechada, ela isola a visita em sua própria mente.

Na nossa casa resolvemos há um bom tempo deixar as portas permanentemente abertas. Quem quer que chegue ao andar onde moramos pode ir logo "entrando" enquanto atendemos à campainha. O canal de entrada e saída é a poesia. É por meio de dois poemas, aplicados nas duas portas, que nos comunicamos imediatamente com quem chega a nossa casa. Não há sequer o número do apartamento nessas portas, apenas a conexão da poesia.

Poemas abrem portas porque inspiram os encontros. Escolhemos dois poemas para cumprir essa função de cicerone em nossa casa; dois poemas que fossem extremamente profundos e ao mesmo tempo extraordinariamente leves; poemas que sintetizassem as antenas da nossa alma e as raízes da nossa cultura. Esses atributos foram identificados em "Ítaca", do poeta grego-egípcio Constantin Cavafis (1863 - 1933) e em "Terra Bárbara" do poeta quixadá-fortalezense Jáder de Carvalho (1901 - 1985).

Ambos são casa e porta porque falam da aventura de sermos de um lugar e de termos um espírito nômade. Ambos são travessia e território de movimento porque contam do que existe de eterno em nosso tempo de passagem. Ambos dão sentido de grandeza à existência e à espiritualidade, porque nos colocam em contato direto com as nossas dimensões reais, simbólicas e imaginárias. Com "Ítaca" e "Terra Bárbara" a plenitude da vida se manifesta como uma proeza individual e coletiva, marcada pela instigante ardência do viver.

O exercício de escolha de um poema-síntese do que somos é maravilhoso. Penso que cada pessoa deveria pelo menos ensaiar esse mergulho de auto-sondagem cultural, independentemente de querer ou não colocar na porta de casa o poema apanhado nas profundezas de si mesmo. Mais desafiador e empolgante ainda é compartilhar o achado com quem se mora, com quem se vive, para que a poesia seja fixada na porta com o máximo de cumplicidade. Para que os poemas coubessem nos espaços das portas da nossa casa e ficassem agradáveis de ler fiz uma pequena adaptação na estrutura dos textos, de modo a tornar mais visível o que neles identificamos como nossa tradução.

O poema de Constantin Cavafis, evocado da "Odisséia de Homero", está aplicado na nossa porta porque engrandece a vida, ao desejar que ela seja longa, e por nos conclamar a priorizar o que nela realmente vale a pena, pela elevação da alma na construção da experiência de ser e viver. Em uma das portas do nosso apartamento o poema "Ítaca" está escrito assim:

"Quando partires de regresso a Ítaca, / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogônios, e outros monstros, / um Posêidon irado - não os temas, / jamais encontrarás tais coisas no caminho, / se o teu pensar for puro, / e se um sentir sublime teu corpo toca. / Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. / Mas não te apresses na viagem. / É melhor que ela dure anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, / rico do que foi teu pelo caminho, / e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. / Sem Ítaca, não terias partido".

As buscas da minha adolescência me levaram a ler a "Odisséia de Homero", que relata o retorno do rei Ulisses (Odisseu) à ilha de Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Foi uma prova de percepção do mundo. Algumas das passagens do livro nunca mais deixaram de ser imagens fortes em minhas recordações. A necessidade do líder de ouvir o canto das sereias, mas não se deixar tragar pelo seu poder de atração é uma delas. Dentre outras, destaco também a parte em que Ulisses se reencontra com o seu fiel cachorro; o primeiro disfarçado de mendigo, para poder saber o que se passava nas entranhas do seu reino, e, o segundo, largado aos monturos por uma sociedade que dava como morto o seu soberano.

O poema de Jáder de Carvalho, natural do veio poético e da árida política do sertão, eleva à vida ao seu patamar mais íntegro, ao desafiar o senso comum dos códigos morais dominantes, com padrões antropológicos que primam pela experiência libertadora da ética e suas balizas culturais. Foi na infância, quando eu morava no coração do poema, que senti seu pulsar na voz da professora Terezita Barroso; depois, já em Fortaleza, ganhei o livro das mãos do próprio autor, e dele extraí os versos de "Terra Bárbara" que estão escritos assim na outra porta do nosso apartamento:

"Na minha terra, / As estradas são tortuosas e tristes / como o destino do seu povo errante. / Viajor, se ardes em sede, / se acaso a noite te alcançou, / bate sem susto no primeiro pouso: / - terás água fresca para a tua sede, / - rede cheirosa e branca para o teu sono. / Na minha terra, / o cangaceiro é leal e valente: / jura que vai matar e mata. / jura que morre por alguém e morre. / Eu sou o índice do meu povo: / se o homem é bom - eu o respeito. / se gosta de mim - morro por ele. / se, porque é forte, entendesse de humilhar-me / - ai, sertão! / eu viveria o teu drama selvagem, / ou te acordaria ao tropel do meu cavalo errante, / como antes te acordava ao choro da viola".

A resposta dada até hoje pelas pessoas que nos visitam é que os poemas antecipam sentimentos calorosos e espontâneos de boas-vindas. As reações variam, embora apresentem um ponto em comum: uma porta que tem um poema exposto em sua parte mais visível não é uma porta que apenas serve para fechar e para abrir; ela faz com que o visitante se torne ativo por menor que seja o tempo de espera. A simples noção de que existe uma poesia escrita na porta já inicia uma compreensão sobre a casa e sobre os que nela moram.

Quando lidos, os poemas transformam-se em pensamentos, em emoções e em comportamentos. Às vezes o visitante não tem tempo para ler os textos, antes de a porta ser aberta de fato, e pede para concluir a leitura. Em outras ocasiões demonstra quase uma desculpa de invasão, como se tivesse olhando pelo buraco da fechadura. É que a poesia tira o aspecto opaco e translúcido da porta, expondo toda a nudez da identidade e da afetividade de quem dela se aproxima pelo lado de dentro da casa.

A leitura do poema-síntese que alguém escolhe para aplicar na porta de casa parece rebobinar a consciência que temos uns dos outros, ora abstraindo memórias esquecidas e ora esboçando novos espaços de sua efetiva compreensão. A poesia de porta é um gesto particular de distinção, um jeito prévio de acolher as pessoas que chegam a nossa casa, antes de tomá-las entre os braços e solicitar que entrem.

Essa experiência vem me ensinando que, ao sair de casa, é muito bom ler na porta que "fechamos" um pouco da poesia que nos revela. Todo dia espero o elevador lendo um ou outro trecho de "Ítaca" e "Terra Bárbara", quando não, seus textos inteiros. A sensação que me dá é que tenho um lugar para regressar, mas que não é um lugar comum e sim um lugar que resume o mundo; um lugar onde deixo armada uma rede cheirosa e branca; um lugar que transforma o vaivém da luta cotidiana em uma viagem esplêndida.


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A potência dos pobres - Diário do Nordeste - 16/9/2010

Confirmada a tendência de eleição da candidata Dilma Rousseff à Presidência da República, abre-se um novo ciclo de desafios na redução das desigualdades no Brasil, que é a integração dos pobres ao desenvolvimento. Com Lula, dentre várias conquistas históricas, os desafortunados passaram a ter algum poder aquisitivo, o acesso ao mercado de consumo e o início do trânsito pela diversidade cultural, mas tudo ainda muito vinculado à ordem das necessidades básicas. O passo seguinte, num eventual governo Dilma, é o da criação das condições para a cidadania ativa, com os pobres podendo colocar seus desejos dentro do sistema representativo. Se, com Lula, o diálogo foi aberto com o povo, com Dilma, esse diálogo poderá ser estabelecido com a pessoa.

Reforcei esse meu sentimento ao ler o livro "Pobres, Resistência e Criação" (Cortez, 2010) da socióloga Monique Borba Cerqueira, que abre novas angulações para a interpretação quase sempre unidimensional do universo dos pobres, centrado no discurso valorativo da impotência. A autora rompe com a linearidade dos diagnósticos que resumem a figura do pobre a uma vítima do regime de falta, normalmente lastreados nas estatísticas de um mundo moral confinante. É comum a circulação de informações que mostram o que são os pobres, porém é incomum informações que revelem o que eles podem ser. O distanciamento do pobre do tipo social "ideal" leva à discriminação porque o realizar-se fora dos controles estabelecidos é radicalmente punido por desenvolver a sua potência criativa.

O estudo de Monique Cerqueira propõe um novo diálogo no qual o pobre possa se colocar além dos movimentos inteiramente "úteis" da vida, para que a população se reinvente para além das fronteiras que caracterizam toda situação concreta de mera sobrevivência. Esta é uma obra que denota grande senso crítico a segregação dos "carentes" e seu esvaziamento de sentido na vida das pessoas pobres, restringindo-as aos afazeres rotineiros e ao ócio forçado. Quando a autora diz que "a pobreza não é apenas uma palavra destinada a designar, é o lugar de confinamento do pobre" (p. 23), ela oferece uma insuspeitada visão da dinâmica da dominação política e social pelo viés do simbólico. Considerar a potência do pobre é ter coragem de liberar as forças da vida para que se realize em caminhos irregulares.

A força moral que empurra o pobre à beira do abismo da autoconservação inibe a sua capacidade de produzir vida na própria vida. Monique Cerqueira nos instiga a afetos e paixões, como modo de transvalorar o conceito de pobre para a dimensão de aproveitamento do seu potencial, que o conjunto da sociedade poderá ter com o que pode surgir de novo e profícuo dessa parcela subjugada ao apagamento de si. Tudo o que vem do pobre tende a ser visto como repulsivo e por isso é mal tolerado. Do pobre só deve ser apropriado o que ele tem a dar para a manutenção de privilégios, concentrações de riqueza e pretextos para consolo de consciências. Talvez por isso, a autora tenha recorrido a personagens do cinema e da literatura, não somente para facilitar a explicitação das entrelinhas de suas histórias, mas também para desarmar o nosso preconceito.

O livro põe nessa roda de conversas e reflexões três personagens emblemáticos que, embora vivam sob o signo da escassez, põem à prova a possibilidade de uma desobediência plural e criativa. Com a imagem docemente trágica de Carlitos, de Charles Chaplin; com a figura atrevida da sensual Gabriela, de Jorge Amado; e com a atitude de recusa da introvertida Macabéa, de Clarice Lispector, nos damos conta do que significa um cotidiano alheio às obrigações instituídas socialmente; o que significa desejar o bem-viver mesmo em situação de pobreza; e o que significa não se dar a conhecer ante a pressão dos códigos, regras e estereótipos que patrulham a vida comum. Frente a frente com os convidados do mundo da ficção nos sentimos mais à vontade para procurar entender, à luz das ciências sociais, os alcances nefastos do olhar de estranhamento dirigido aos pobres.

O pobre, na noção vigente questionada pela socióloga, é aquele para quem se planejam intervenções; aquele que está sempre em algum lugar de subtração chamado "pobreza", onde resiste cercado pela dramaticidade do seu próprio sofrimento. A autora justifica sua busca de conhecimento da vida adversa por meio da ficção, argumentando que esta permite a aproximação e o transbordamento do sentir, em seu poder de indeterminação. "Todos os personagens analisados são atravessados por um fluxo de vida insuperável, uma desobediência sem limites; eles desconhecem qualquer enquadramento soberano" (p. 40). Assim, a escolha de Carlitos, Gabriela e Macabéa foi feita em função do que eles representam de potência humana no enfrentamento de contextos marcados por profunda ausência do indispensável para viver.

É atraente como a autora traz para o real as reelaborações da arte e da literatura. Carlitos não teme o fracasso social porque não elabora a vida como desastre, mas como uma experiência de recriação fecunda; Gabriela supera o anonimato dos rejeitados não apenas por ter uma beleza que agride as mensagens estéticas da pobreza, mas por ter pleno desejo pela vida e, com isso, conseguir a inversão das potências comprimidas na ideia de pobreza, tornando a existência um ato de obstinação e beleza; e Macabéa age como alguém que "não é", desafiando a lógica da representação, o que a torna alvo de uma depreciação moral que a acua em sua invisibilidade. A sondagem daquilo que é singular em personagens de ficção que conseguem percursos fugidios à situação de pobreza, dá um toque diferencial à leitura do livro "Pobres, Resistência e Criação".

O caminho apontado por Monique Cerqueira para levar à integração do pobre ao desenvolvimento é o do reconhecimento e consideração da sua pulsão desejante. "Somente uma ética criadora é capaz de quebrar a modelagem do sujeito, torná-lo inventor, autônomo, apto a criar novas sensações, modos de agir, pensar, experimentar o próprio corpo, intensificando e explorando todas as suas possibilidades" (p. 150). No prefácio, o psicólogo Sylvio Gadelha sintetiza o livro como "um trabalho que toma a vida como aquilo que tem a potência de ativar o pensamento, e este como aquilo que pode afirmá-la incondicionalmente" (p.12). Esse princípio de vontade de potência quebra, segundo a autora, a ordem hierárquica que submete à vida, rompendo a neutralização da impotência, fazendo desaparecer o problema da infinita insuficiência e criando alternativas aos insustentáveis padrões de vida estabelecidos. flaviopaiva@fortalnet.com.br