quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A música na educação - Diário do Nordeste - 18/11/2010

A rigor, todos somos música. Não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música e os que ouvem (...) Por ser bem distribuída em todas as áreas do cérebro a música tem importância inquestionável em nossas vidas

O ano que vem será um ano muito importante para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica (Infantil e Fundamental) nas escolas brasileiras. Os sistemas de ensino do País têm até agosto de 2011 para se adaptarem a obrigatoriedade do exercício da música nas escolas, conforme determinado no texto da lei federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008.

A criação de condições para a formação artística, voltada para a cognição, a sensibilidade e a socialização estudantil, coaduna-se com as ações de reflorestamento cultural que vêm sendo implementadas pelo Ministério da Cultura em todo o País. A opção pela experiência envolvente da música é fundamental como componente intrínseco do cotidiano a um processo educativo inspirado na diversidade da cultura brasileira.

Em toda a história da humanidade a música esteve presente de alguma forma. Mesmo em épocas pré-linguísticas são evidentes os sinais da música como parte do dia a dia das pessoas e das comunidades. É comum vermos nas escavações arqueológicas a descoberta de instrumentos musicais que atestam a capacidade dos nossos ancestrais de lidar com padrões sonoros complexos.

A rigor, todos somos música. Alguns aprendem teoria musical ou a tocar instrumentos, mas não há necessariamente uma separação natural entre os que fazem música, os que cantam, os que tocam e os que ouvem, dançam, cantarolam e sentem sua presença no corpo e na mente. O que há, pode-se dizer, são pessoas inibidas de praticar suas habilidades musicais e pessoas que, ao se refinarem, refinam a música, merecendo assim manejo especial de madeira de lei na biodiversidade cultural.

O ato de cantar é mais natural do que falar. Para falar nós precisamos necessariamente usar um código reconhecido de comunicação, quer saibamos escrevê-lo ou não. Entretanto, para cantar basta deixar os sentimentos fluírem, agudo como o agudo dos pássaros e graves como o tom grave dos mamíferos. Em linhas gerais, inventar a canção foi mais simples do que inventar a fala. Contudo, fixar uma ou outra por meio de sinais adequados de transmissão talvez tenha grau semelhante de dificuldade e prazer.

Desde criança que gosto de inventar música. Com o saudoso amigo Pandé, fizemos o hino do nosso time de futebol; com o amigo Félix, costumava musicar romances de cordel. Fazia isso como uma movimentação espontânea da vontade, seguindo uma característica da musicalidade das sociedades nativas e africanas que se fundiram com o canto nômade dos aventureiros que povoaram o sertão. Dos aboios às cantigas de campo, a cognição musical está presente em minha vida por sincronia histórica do lugar onde nasci.

Na busca incessante de entender como pensamentos, sentimentos, esperanças, desejos e manifestações estéticas se originam, muitos estudiosos atribuem à música o poder de desencadeá-los. No livro "A música no seu cérebro" (Civilização Brasileira, RJ, 2010), o músico e neurocientista canadense Daniel J. Levitin, afirma que "a música pode ser a atividade que preparou nossos antepassados pré-humanos para a comunicação, por meio da fala, e para a flexibilidade eminentemente representativa e cognitiva necessária para que nos tornássemos humanos" (p. 294).

Afirmações como essa respaldam a decisão do Ministério da Educação e reforçam a ideia de que a música na escola não deve ter como objetivo preparar instrumentistas e cantores, nem transmitir gosto. Nada impede, porém, que essa prática estimule o talento daqueles inclinados a serem refinadores. Minha expectativa é que essa política abra espaço para que o estudante marque um encontro de caráter sugestivo com o que há de mais vibrante e desejante na essência humana.

Sempre tive comigo a sensação de que o modelo mental de um povo pode ser compreendido a partir da sua música. Uma mente germânica tem a sofisticação da música de Bach, Wagner e Beethoven, dentre outros compositores excepcionais, e os limites de conservadorismo que essa sofisticação impõe. Uma mente brasileira vive a se reinventar à flor dos neurônios, mas em geral ainda se desconhece no requinte das obras dos seus refinadores mais geniais como Villa-Lobos, Severino Araújo e Elomar Figueira de Melo.

A entrega do patrimônio musical brasileiro ao bel-prazer do mercado fonográfico, especialmente nos anos de neoliberalismo, causou danos extremamente graves no tocante à contribuição da música na atualização do desenho do nosso modelo mental. Por ser distribuída em todo o cérebro, e não apenas no hemisfério direito como se acreditava antigamente, a música tem importância inquestionável em nossas vidas. "O ato de ouvir, tocar e compor música mobiliza quase todas as áreas do cérebro até agora identificadas, envolvendo aproximadamente todos os subsistemas neurais" (LEVITIN, 2010, p.15).

Venho há uma década fazendo a experiência de associação da música à literatura, dentro da convicção de que ler e cantar é receber do jogo dos sons e das palavras a oportunidade de produzir visões. No livro/cd "Flor de Maravilha", combinei vinte histórias e vinte músicas; no livro/cd "Benedito Bacurau", experimentei o uso de vinhetas intercalando onze textos de literatura recitada; no livro/cd "A Festa do Saci", a música principal surge na história em uma composição coletiva dos personagens; e no livro/cd "A casa do meu melhor amigo", que lançarei no próximo dia cinco de dezembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), em São Paulo, a música acontece inseparavelmente ligada ao contexto de cada um dos dez capítulos.

O que tenho aprendido com as respostas dos leitores a essa prática é que a liga da literatura com a música potencializa as emoções, não no sentido de orientar os sentimentos como ocorre com as trilhas sonoras no cinema, mas de dar mais volume às palavras, expandindo a noção de realidade no espaço de liberdade de interpretação que é disponibilizado ao leitor no campo que rebenta entre o que está escrito e que está cantado. Integrar a música ao fluxo de informações sensoriais faz bem à imagística da mente na sua construção de significados.

O processo cognitivo tem muita relação com as frequências vibratórias dos sons dos fonemas e das notas musicais. A vivência simultaneamente literária e musical aciona a consciência que temos das coisas para que possamos nos abrir às representações organizadas pelo ensino. Existem conteúdos que só encontram eco em nossa compreensão quando refletem nossos enunciados de sentimentos e emoções. Assim, o estudante pode se destravar da racionalidade para jogar com os pensamentos e seu próprio jeito de sentir o mundo.

No fenômeno perceptivo é muito importante que haja nodos de gratificação como inspiradores de estado de ânimo. Um dos grandes desafios da educação na atualidade é a busca de alternativas à aprendizagem que não desperta interesse por não ter a flexibilidade de estar no nível de habilidade de cada estudante. A minha experiência com o livro/cd, no qual a partitura integra o estatuto das ilustrações, tem demonstrado que a integração de linguagens multiplica as dimensões de trânsito da imaginação e da compreensão.

Os estudos de Daniel Levitin dizem que ouvir música aprimora os circuitos neurais, ajudando a preparar a inteligência para os desafios da linguagem e da interação social. Dentro de uma perspectiva cultural e educacional, o exercício do músculo da imaginação e da cognição, proporcionado pela reincorporação da música ao cotidiano escolar, é fundamental na reinvenção do Brasil



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Preconceito e literatura - Diário do Nordeste - 11/11/2010

Qualquer educador sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições da relação entre a Emília e a Tia Nastácia (...) No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.


Como se não bastassem as travas contra a imaginação que uma certa categoria de livros paradidáticos vem causando às crianças, agora chega o Conselho Nacional de Educação (CNE) para extremar o politicamente correto com um parecer que recomenda a suspensão de Monteiro Lobato dos ambientes escolares.

A alegação é que a literatura do autor do Sítio do Picapau Amarelo, sobretudo o livro "Caçadas de Pedrinho" apresenta expressões preconceituosas com as quais a baixa qualidade dos professores brasileiros não estaria preparada para lidar.

A junção certamente irrefletida da pobreza analítica do tema com o tratamento desrespeitoso dado às pessoas que ensinam neste País, para poder justificar o afastamento da obra de Lobato das bibliotecas e salas de aula, reflete a vulnerabilidade da clareza conceitual que ronda o âmbito das nossas políticas públicas para uma educação antirracista.

Qualquer educador com o mínimo de sensibilidade sabe o quanto existe de oportunidade pedagógica nas contradições explicitadas em situações conflituosas como as que regem a relação da boneca Emília com a Tia Nastácia, que é a sua mãe de confecção.

No anseio de corrigir uma irracionalidade de cunho étnico, modelada em três séculos de escravidão do Brasil colonial, os promotores da igualdade racial extrapolam muitas vezes os limites da razoabilidade. Atacar um clássico da literatura, como se houvesse um dolo, uma intenção de ofensa em suas palavras, transforma o ativista em déspota.

Dessa forma, mais do que o sentido específico do parecer do CNE, o que chama a atenção e preocupa é o fenômeno do destempero incutido nesse ato de exceção que atinge a mais livre das expressões estéticas, que é a literatura.

Esse tipo de movimentação, que faz parte de um pacote de atitudes segregacionistas importadas dos movimentos sociais estadunidenses, onde o racismo é institucionalizado, aponta para o risco de engessamento da pedagogia em nome da idealização de um comportamento destituído de preconceitos entre os seus diferentes grupos sociais.

O ataque às obras do Sítio demonstra que essa reconstrução ideológica, que em um primeiro momento parece utópica, tende mesmo a degringolar para a distopia, para o pesadelo da apartação lastreado em um processo discursivo incoerente.

Por sorte o fato envolveu a figura do escritor Monteiro Lobato, que já está calejada de sofrer esse tipo de ataque, pelos mais distintos motivos, embora sempre com um incômodo comum: sua literatura infanto-juvenil desacomoda por ser autêntica, sincera e transformadora.

Esses atributos são insuportáveis para quem arvora do status de detentor da moral da vez. Foi assim quando o Visconde de Sabugosa descobriu petróleo no quintal da Dona Benta, o que contrariou o monopólio da indústria petrolífera estrangeira, e pode estar sendo assim, caso por trás dessa tentativa de banimento escolar do célebre autor brasileiro, haja o dedo das multinacionais que avançam no mercado editorial no País.

Não custa nada desconfiar. Afinal, a história da queima de livros, inclusive os de Lobato, tem sua gênese em solo político e comercial. A professora e pesquisadora mineira Angelina Castro, autora do livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, 2010), traz à memória vária das razões que levaram à retirada das obras do Sítio das escolas, entre elas as cenas de antropofagia em "Hans Staden" e o questionamento do descobrimento do Brasil em "História do mundo para as crianças". Curiosamente, as perseguições anteriores ao livro "Caçadas de Pedrinho" foram feitas por incômodo à crítica que a obra faz à política e aos processos burocráticos brasileiros.

Enquanto de um lado o parecer do CNE orienta que "Caçadas de Pedrinho" "só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil" (Parecer 015/2010, pág. 2), o que no dito popular seria como recomendar a morte imediata da vaca para acabar com os carrapatos, Angelina é de opinião que a polêmica atual sirva exatamente para pôr de lado essa noção preconceituosa contra a liberdade literária e abra caminhos para que uma reforma cognitiva propicie o espírito observador e crítico de que tanto carece a nossa escola.

Em que pese à existência natural de expressões de época, a atualidade da obra de Monteiro Lobato é impressionante. A cada dia nos aproximamos mais do Sítio do Picapau Amarelo, tomando como referência a intenção literária do autor na criação do Brasil ideal. O exemplo mais presente dessa característica é a eleição de Dilma Rousseff para a presidência da República. Como assim?

Na literatura de Lobato, o Brasil ideal está desde o início comandado pela lógica do poder feminino, na figura da Dona Benta; enquanto no Brasil real, somente agora vamos experimentar pela primeira vez na história da República o País ser dirigido por uma mulher.

O Brasil está precisando mais de literatura que instigue a pensar do que de pesquisadores obtusos e burocratas que querem impor suas razões cartesianas ao mundo escolar. E tem mais: essa conversa de que educadores e crianças não estão preparados para lidar com situações literárias que podem ser embaraçosas a determinadas identidades mais parece aquele discurso do Pelé de que o povo não sabe votar. A falta de interação entre os órgãos de educação e cultura não só deixa o equipamento escolar à mercê do mercado, como distancia a educação da função simbólica da nossa vida cultural.

As orientações do CNE para que as obras que apresentam possibilidades de "representações negativas sobre a cultura popular, o negro e o universo afro-brasileiro" (p. 5) sejam rejeitadas ou obrigadas a ter notas explicativas à luz dos estudos atuais e críticos, configura-se como uma imposição desnecessária, considerando o quanto esse tipo de restrição à criação literária abre de precedente.

Rute Albuquerque, coordenadora do Programa de Educação do Núcleo de Estudos Negros, de Florianópolis, procura contemporizar, colocando-se ao mesmo tempo a favor do parecer e a favor de Lobato. Seu argumento é que a leitura deve atender acima de tudo à interpretação do que por vezes pode estar disfarçado por adornos criativos.

A escritora gaúcha, Lígia Bojunga, se pronunciou sobre o caso, chamando a atenção para o contrassenso que ele traz com relação aos avanços dos estudos literários sobre a noção do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão em um livro. Ela lamenta que, como está acontecendo atualmente com relação à obra de Monteiro Lobato, de vez em quando educadores de todas as instâncias manifestem desconfiança da capacidade que os leitores têm de se posicionarem "de forma correta" diante do que leem. Essa liberdade do leitor está associada ao seu universo de conhecimento, aos saberes que embalam suas crenças, ao seu modo de vida e ao seu grau de escolaridade e acesso à informação.

Os livros de Lobato estão entre os que educam pelo viés da cultura, por isso possibilitam um constante exercício do contraditório e dão espaço para a imaginação no processo cognitivo. O autor primou em sua literatura pelo exercício do pensamento e do diálogo e não por discernimentos de empréstimo, pretensamente sistematizados em conteúdos previamente estabelecidos como corretos. No Sítio do Picapau Amarelo, assim como nas escolas do Brasil ideal, ensinar a pensar é mais importante do que ensinar pensamentos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Continuidade e rupturas - Diário do Nordeste - 4/11/2010


O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas da moral religiosa, fragilizando o imaginário democrático (...) Abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação"

A eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República, no domingo passado (31/10), apresenta dois sentidos curiosos: o de continuidade, se observada como consagradora do plano de sucessão do presidente Lula; e o de ruptura, se considerado como referência o processo político brasileiro como um todo. Foi na conjunção desses aspectos que a população tomou a sábia decisão de oferecer maioria no Congresso Nacional à nova governante, mas forçando um segundo turno e mantendo o equilíbrio entre situação e oposição nos estados.

No Brasil a intuição popular parece mais bem preparada do que a razão da elite intelectual. Antes de ser um Estado-Nação, o Brasil é um estado de espírito. Daí, a vontade da população de participar da construção de uma democracia ainda empírica por que estranha às luzes das ciências sociais. Seja como for, a desconstrução da hierarquia das aspirações nacionais está confirmada nas urnas em uma repetida prática de liberdade de escolha que se consolida como despertar de inclinação transformadora.

Em mais de cinco séculos de representação política de orientação colonial, Luís Inácio Lula da Silva foi o primeiro presidente do País (2002 - 2010), com cabeça eminentemente brasileira, além de ser um trabalhador de chão de fábrica. Lula é um "Silva" legítimo. Fez o que fez para o Brasil deixar de se ver como uma nação de segunda e se afirmar no diálogo global pelo limite das possibilidades. O eleitor satisfeito disse sim ao projeto de Lula e assegurou o seu prosseguimento abrindo as portas do Palácio do Planalto para uma mulher, descendente de búlgaro (imigrante invulgar) e, como se não bastasse, ex-guerrilheira.

É natural que os representantes da tradicional política brasileira se coloquem contrários às novas forças que se estabelecem. No mundo da política é normal a quem está no poder rejeitar as crias que não são suas. O nível tenso do embate eleitoral revelou o quanto essa questão é complexa e cheia de sensibilidades. As cidadãs e os cidadãos tiveram inclusive que se submeter a circunstâncias estapafúrdias enquanto alvos da caça ao voto. O nivelamento do valor do voto acabou atropelado por armadilhas de moral religiosa, fragilizando e despolitizando o imaginário democrático.

No meio dessa inflexão ocorrida na estrutura do poder real no Brasil surge um personagem que rouba a cena da brasilidade, o "Silva Rousseff". Quem é ele? Qualquer um e todos os que não tendo sido jogador de futebol ou modelo nunca tiveram condições para explorar as suas potencialidades. Se antes ele fazia parte da massa invisível, agora é filho da dialética entre o que está sendo herdado de Lula e o que será a gestão de Dilma. Sua existência parte do pressuposto de que Lula elegeu Dilma, mas que Dilma será a presidente.

Antes de Dilma Rousseff somente uma mulher tinha assumido o posto máximo da administração pública do Brasil, a Princesa Isabel. Filha do imperador Pedro II, na última vez que interinamente ela subiu ao trono assinou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil em 1888. Na República, Dilma é o 40ª presidente, mas é a primeira mulher, depois de 33 presidentes homens. Qual o ato que assinará para marcar seu nome na história brasileira? É difícil imaginar. O bom sinal é saber que ela não representa um projeto pessoal. Tudo leva a crer que sua disposição é estar a serviço da melhoria das condições de vida dos brasileiros e da inserção positiva do Brasil na comunidade internacional.

O Brasil é um lugar historicamente cobiçado pelas grandes potências. Devassado por vários séculos, acumulou muitos gargalos estruturais. Em sua fala, logo após a apuração final das urnas, Dilma comprometeu-se a manter a estabilidade econômica, a aplicar a meritocracia no serviço público, a concluir o processo de erradicação da miséria iniciado por Lula, a garantir a liberdade de expressão, a lutar para que as forças conservadoras não tumultuem a vida democrática do país e a honrar as mulheres brasileiras. Não falou sobre o acordo que assumiu com Lula, mas disse que "conviver com ele me deu a exata dimensão do governante justo e do líder apaixonado"... E, numa revelação pouco comum do seu jeito racional, se emocionou para todo mundo ver.

Lula rompeu com a lógica de que o governante se resume a um executivo das políticas dos grandes centros econômicos. Conquistou a estabilidade no Brasil em uma combinação de atitudes ousadas no âmbito do mercado doméstico e na diversificação comercial nas relações exteriores. Foi hábil em não cair em aventuras militares financiadas por interesses extracontinentais. Conhece bem a piada que explica o fato de não haver golpe de estado nem guerra dentro dos Estados Unidos: "É por que lá não tem embaixada norte-americana". Também não deve ter recebido como novidade a declaração da chanceler Angela Merkel, decretando no mês passado que o multiculturalismo fracassou na Alemanha.

Além de dar continuidade à condução do Brasil entre essas e outras contradições do mundo globalizado, em tempo de rearranjos multipolares, a presidenta eleita Dilma Rousseff tem uma série de grandes temas e desafios que não se limitam a fazer apenas mais do mesmo em seu governo. São na verdade rupturas que ela precisará promover para não desmerecer sua biografia, nem trair a confiança que o povo brasileiro depositou na sua honestidade política e na sua determinada capacidade de realização.

Na condição de filha da classe média mineira e de militante política, Dilma Vana Rousseff, 63 anos, é uma legítima representante da nova elite que ascendeu ao poder, utilizando-se dos instrumentos tradicionais da democracia burguesa. Tem todas as características de quem saberá valorizar o papel modelo que a partir de primeiro de janeiro de 2011 passará a assumir no mais elevado posto do País. E a primeira das rupturas que precisará fazer é dar um basta na banda podre do PT, não cedendo espaço à ação marginal dos aloprados, muitos deles de triste notoriedade.

As rupturas com as políticas segregacionistas, responsáveis pela formação de guetos étnicos, etários, de gênero, de classes e religiosos, também precisam ser feitas para abrir espaço à redução das desigualdades, não por meio de fórmulas importadas, mas pelos mecanismos de "concertação" tão bem conhecido de petistas limpos como o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Isso significaria desestimular os movimentos que contrariam a cidadania republicana, quer pela desvalorização da lei, quer pela marginalização arbitrária das oportunidades de indivíduos e grupos.

No plano das rupturas econômicas, estão as ações predatórias físicas e virtuais que comprometem a integridade do mercado comum brasileiro, inclusive na extensão do seu idioma comum. Dilma poderá priorizar os investimentos em ciência e tecnologia voltados para os interesses nacionais e inibir a ciência de resultados, que se limitam aos interesses das grandes corporações que atuam no País, muitas vezes em detrimento da saúde pública.

A ruptura com os esquemas que tiram valor da biodiversidade natural e cultural brasileiras dará ao Brasil as condições para desenvolver uma criativa educação para a sustentabilidade, a necessária qualificação para o trabalho, inclusive com atenção especial ao trabalho de educador, e, consequentemente, a consciência de si, do que pode e como deve se comportar em um mundo em acelerada transformação. O certo é que temos muitas estradas a serem abertas, desde que persistamos em ter desejos e pensamentos próprios.


quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um redemoinho puxa o outro - Diário do Nordeste - 28/10/2010

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia (...) que é a Festa do Saci. (...) É maravilhoso ver o Saci, aglutinando amigos de lendas (...), mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem.

A coordenadora da Universidade Popular, da Prefeitura Municipal de Passo Fundo, Maria Augusta D´Arienzo, me conta que a partir de uma das conversas que tivemos no ano passado, por ocasião da Jornada Literária, aquele agradável e dinâmico município gaúcho realizará no próximo sábado (30) a sua primeira Festa do Saci. E como não poderia ser diferente na terra da professora Tânia Rösing e da Universidade de Passo Fundo, a sacizisse vai acontecer à base de troca-troca de livros.

Da Cidade de Goiás a educadora Lúcia Agostini me transmite a vibração de mais uma Sacyzada, ocorrida na Vila Esperança durante a Semana de Estudos e Vivências da Cultura Brasileira (14 a 18/09). Não faltaram causos e batucadas de Sacy nesse território livre que um dia o poeta Gilberto Mendonça Teles conceituou de "saciologia goiana". A agitadora pedagógico-cultural Maria Inez do Espírito Santo, escreve do Rio de Janeiro para dizer que o Saci da Festa da Comunidade, que ela fazia com motivação inclusiva nos anos 1980, na Escola Viva de Petrópolis, se fará presente no Ceará, no dia 31.

A Sociedade de Observadores de Saci (Sosaci) segue firme em sua festa, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo; evento incorporado ao calendário turístico da cidade. Débora Kikuti, observadora de Saci em Guarulhos, anima uma festa que, entre músicas, rodas de histórias e oficina de boneco de Saci, conta com atividades multimídias "folcloricantes". Isso mesmo, eles usam graciosamente o verbo "folcloricar" para fazer integração de linguagens.

Como é de conhecimento comum, a locomoção rápida do Saci é feita em redemoinhos; e, como nas contações de histórias, um redemoinho puxa o outro. Por isso a Festa do Saci se constrói na concertação das diferenças, agregando uma brincadeira daqui, uma travessura dali, revelando o poder que temos para eleger e praticar o nosso modo de ser, enquanto sociedade miscigenada de um país continental.

A popularização da Festa do Saci, sobretudo no dia 31 de outubro, mesmo dia do "Halloween" estadunidense - uma das ideias traquinas do jornalista Mouzar Benedito - tem gerado uma participação elevada pela liberdade de cada lugar poder fazer a festa de acordo com seus desejos e condições. Como não há fórmula, nem hierarquias, a Festa do Saci não se limita a uma única emoção, nem a um só público; é uma festa da diversidade e da pluralidade.

Procurei disseminar esse construtivismo inter-regional em meu livro/CD "A Festa do Saci" (Cortez Editora) e experienciar algumas sequências recreativas em uma festa de condomínio que há três anos realizamos em Fortaleza com familiares e amigos. Essa brincadeira já resultou em um musical do Instituto Canarinho, adaptado pelo dramaturgo Rafael Martins e dirigido por Marconi Basílio; em duas monografias de graduação e no trabalho desenvolvido pelo facilitador alemão Thomas Semrau para a Formação Continuada dos Educadores Sociais, do programa "O Ceará Cresce Brincando", que trata o brincar como um direito.

Um exemplo evidente da mutualidade na construção da Festa do Saci ocorreu no dia 20 passado, em uma conversa que tive em Messejana com brinquedistas desse programa realizado pela Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Ceará (Apdmce) e Unicef, e executado pelo Instituto Stela Naspolini: Socorro e Joselda (Assaré), Ângela e Lilia (Beberibe), Leopoldo e Roberto (Brejo Santo), Lúcia e Adriele (Cruz), Karolina e Rosa (Itarema), Amirles e Karla (Horizonte), Márcia e Darlene (Pedra Branca), Ledian e Evânia (Porteiras), Verônica e Rosa Maria (Quixeramobim), Maria da Glória e Alaíde (Sobral), Adriana (Tejuçuoca) e Jordeana e Elenilda (Viçosa do Ceará).

Ao falar que na Festa do Saci cada criança deve levar a guloseima que mais gosta para oferecer aos participantes, as educadoras sociais colocaram a dificuldade dessa prática em algumas comunidades. Imediatamente encontramos alternativas para essa contribuição, como por exemplo, a de levar o avô ou a mãe para contar uma história na roda. O importante é fugir do estigma de carente, possibilitando que todos sintam que têm algo a compartilhar.

De Independência, onde eu nasci, recebo da ONG História Viva a notícia de que a Festa do Saci está acontecendo em algumas escolas desde a segunda-feira passada (25) e se estenderá até amanhã (29), por onde tem circulado um boneco do Saci feito pelo artista plástico DIM. A brincadeira tem base em um projeto pedagógico e recreativo preparado pela professora Maria Irandir Bezerra Sabóia, no qual estão sugeridas atividades de recorte e colagem, caça-palavras, boca de forno e cabra-cega, na perspectiva do Saci como mito ecológico e cultural.

O redemoinho continua puxando o outro também nos três dias de Festa do Saci que a Aldeia Luz realizará na Biblioteca Pública e na Casa de Juvenal Galeno, entre os dias três e cinco de novembro, dentro do calendário oficial do Departamento de Patrimônio Imaterial da Secult. Como nos anos anteriores, as ações sacizísticas contarão com teatro de boneco, oficina de desenho, distribuição de gorros e camisetas, cordéis com histórias de Saci e uma palestra com o jornalista Vladimir Sacchetta, o saciólogo que me iniciou nessas e em outras reflexões lobatianas.

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia contemporânea de liberdade que é a Festa do Saci. A liberdade de ser o que somos, de ser uma sociedade tomando consciência de si. Criei dois conceitos como contribuição para esse debate: a) Sacizada é um ajuntamento alegre, divertido, crítico e contemplativo de pessoas e mitos populares; e b) Saciologia é uma ciência humana que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação.

É maravilhoso ver um personagem como o Saci, aglutinando amigos de lendas para a sua festa, mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem. O grande luxo de uma Festa do Saci é aprender a brincar com ele "sem ele", exercitando a imaginação na sua forma mais espontânea, no limite da criatividade do brincante.

O Robson Moreira, presidente da Sosaci, me contou meses atrás em uma conversa na calçada do Patbanda, na Vila Madalena, em São Paulo, que ensinou seus netos a pegar Saci, só para brincar e depois soltar. Segundo ele, a gente não vê quando o Saci passa em nossa frente porque o danado aproveita exatamente o momento em que piscamos os olhos para passar. Então, ele inventou de rapidamente fechar à mão diante dos olhos no momento em que a pálpebra fecha e pegou um Saci. Passou a dica para a criançada e tem muito moleque pegando Saci para brincar.

No domingo (31) vai ter homenagem ao Dia do Saci também no Centro Cultural Dragão do Mar, às 16 horas, dentro da programação "Pintando e Brincando no Dragão". É o redemoinho passando, enquanto aprendemos a fazer a festa uns com os outros. Uma das maiores dificuldades que tínhamos para fazer a Festa do Saci em nosso condomínio era a de conseguir copo biodegradável.

Até que comentando isso com a Mônica Yoshizato, mestranda em ciência ambiental na USP, ela sugeriu que solicitássemos às crianças que levassem seus próprios copos. Depois ela me disse que inspirada na nossa Festa do Saci havia proposto para a escola do filho dela o "amigo secreto sustentável" (com brinquedo usado) para o Natal. Deu certo cá e deu certo lá... um redemoinho puxa o outro.






quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O boato na democracia - Diário do Nordeste - 21/10/2010

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto

O uso de boato em campanhas políticas não é novidade. Aliás, não existe política sem boato. Mas deve existir um limite ético para a utilização do boato como propaganda eleitoral. O segundo turno da eleição para presidente coloca esse paroxismo em pauta. O que ler nos boatos? O que eles dizem? Quais seus significados para a democracia? O que será feito da boataria depois do dia 31 de outubro de 2010? A resposta a essas perguntas é um desafio posto ao eleitor que não aceita ser manipulado por esse velho artifício da fragilidade humana.

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto. Esse fato de não haver tempo hábil para o eleitor saber antes de votar se o seu conteúdo tem origem em verdade ou mentira aumenta a criticidade do apelo ao boato em campanhas eleitorais.

O pesquisador francês Jean-Noël Kapferer, uma das principais referências mundiais no campo da gestão de marcas, diz em seu livro "Boatos - o mais antigo mídia do mundo" (Forense Universitária, RJ, 1993), que não distingue cultos e não cultos como propagadores de boatos. "Poderíamos ser levados a acreditar que o boato é vulgar e que não encontra nenhum crédito junto às pessoas pretensamente a par dos mecanismos e desenvolvimento da vida nacional, e que acompanham mais ou menos o debate público. Ora, não acontece nada disso" (p. 91). Um dos argumentos de Kapferer é que boa parte da "intelligentsia" acredita também em boatos, porque tem cada vez mais uma visão parcial e específica do mundo.

Como fenômeno plantado na crença das pessoas, o boato carrega sempre mensagens ocultas, protegidas por conteúdos aparentes. Ele está presente no cotidiano de todas as esferas da vida social. Quando o boato parte de fora da esfera institucional da campanha, quando ele parte da militância, ele é aceitável por criar uma necessidade de resposta por parte das autoridades; agora, quando o boato parte de alguém que está formalmente em campanha, ele perde o caráter de espontaneidade para assumir um perfil manipulador.

Que dizer: se o boato é gerado por fonte anônima ele é um recurso movedor de algumas verdades ocultas, mas se ele é produzido nos laboratórios da propaganda e da publicidade eleitoral, ele passa a cumprir uma função de proselitismo para mobilizar atenções contra seu adversário. Neste caso, Krapferer entende o boato como uma indústria de conversão às suas próprias teses: "quanto mais ele amplia o círculo de adeptos maior é o sentimento de que se está diante do verdadeiro" (p. 49).

A recorrência ao boato oferece muitas vantagens na guerra política. Uma delas é que o candidato delega a tarefa da calúnia a voluntários e permanece por trás das cortinas. "O boato permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe que se mencione abertamente" (p. 196). Assim, a priorização do boato no estratagema das campanhas para a desestabilização de adversários passa a ser praticada porque a opinião pública tende a se apegar mais a impressões do que a fatos.

O boato é um grande instrumento de difamação que atravanca a experiência democrática. Ao tentar convencer, ele induz o eleitor ao erro, por sedução moral. Circula afastando o eleitor da atração por propostas, projetos, visões e sentido de destino, enquanto promove dúvidas e indignações: nada garante que um boato seja ou não verdadeiro. O problema é como a combinação de informação verificada e boato se traduz nas urnas.

A opção pelo boato como tática de campanha é uma revelação de baixo espírito democrático. O apelo ao "ouvi-dizer" pode ter efeito bumerangue quando percebido pelo eleitor, atingindo a reputação de quem lança o boato. Ninguém em sã consciência almeja um governante afeito a fofocas. É uma questão de defesa psicológica, que age quando o boato passa a preponderar descaradamente em campanhas políticas, deixando de relatar o que interessa para espalhar o que dizem por aí, desligando a palavra e a imagem do fato que significam.

Uma parte das conversas fantasiosas de eleitores é natural do nosso comportamento e não tem maldade, por estar associada à novelização do cotidiano e da vida. Uma outra parte, pelo contrário, revela mordacidade, por ser propaganda de desonra e afirmação de preconceitos, construída a partir de blefe dos tipos ideais.

Quem apela para a fofoca e o boato como peça de campanha demonstra temor e incapacidade de propor algo que possa ser compreendido pelo eleitor como importante para sua comunidade e para o País. É na tentativa de justificar o que não tem a acrescentar que o político boateiro recorre a esse tipo de expediente, procurando esconder-se na (in) consistência de suposições (in) fundadas em (in) formações de motivos tendenciosos. Esse chapéu cabe também na cabeça dos eleitores que se prestam ao papel de espalhadores voluntários de boatos.

O boato profissional sinaliza para a fragilidade do espírito democrático de quem dele se vale para conseguir da maioria um decreto de corrosão do adversário. O pior é que o boato funciona para tornar realistas hipóteses ameaçadoras que, em muitas circunstâncias, empurram o eleitor a assumir a voz da propaganda política, sem perceber que ao fazer isso muitas vezes está acusando a própria consciência de preferir um ou outro candidato.

A priorização do boato é antidemocrática porque atinge o equilíbrio psicossocial dos votantes ao deixar o eleitor orgulhoso do seu poder de desdenhar de alguém mais poderoso do que ele, no momento em que esse alguém precisa de voto para continuar no poder. Entusiasmado com esse brio passageiro, o eleitor acaba esquecendo que depois da eleição o boato pode simplesmente desaparecer. "O pós-boato interessa pouco. Tudo parece em ordem, e a vida recomeça como antes. A tempestade passou e com a volta do tempo bom tudo se esquece, nada aconteceu. O boato? Que boato?" (p. 101).

Embora depois da eleição o sumiço do boato seja enganador, pois sempre ficam alguns resquícios para campanhas futuras, essa síntese de Kapferer vai bem ao encontro do que se costuma chamar de memória curta. O recuo silencioso do pós-boato produz algumas suposições: "Não se comenta mais porque não se acredita mais no boato, ou porque ainda se acredita, mas não fica bem se falar dele ou, enfim, porque mesmo se acreditando nele, não há mais condição para se falar dele" (p. 101).

Qualquer dessas conjecturas leva o eleitor atento ou frustrado a perceber que a coragem de fofocar e de espalhar boatos é uma manifestação de covardia, uma pisada na própria sombra. Atingido pela atração de mercado negro que tem o boato, o eleitor muitas vezes só vai descobrir tempos depois que foi abduzido pelos rumores e que deixou de mobilizar suas energias em favor do que realmente acredita.

Um grande problema gerado pelo boato excessivo em campanhas eleitorais é a perda da confiança do eleitor nas lideranças políticas e nas fontes de informação. Muitos eleitores bombardeados por toda sorte de promessas, percebem no boato um instrumento de liberdade, uma forma de comunicação que não pode ser controlada pelos diversos poderes e se sente gratificado com essa válvula de escape. Ao fazer isso, aposta na ambiguidade como determinação de preferências políticas e eleitorais, o que é muito ruim para a evolução da nossa democracia empírica.








sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A reforma do pensamento - Diário do Nordeste - 14/10/2010


A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura (...) A autora sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um novo humanismo

No início do século XX, salvo as traduções e adaptações dos contos e aventuras de teor fantasioso, escritas para adultos, a literatura para crianças no Brasil tinha como função transmitir valores morais, cívicos e nacionalistas no ensino primário. Era coisa de sala de aula. O valor da imaginação criadora, indispensável para o desenvolvimento da personalidade integral, era muito pouco considerado. Adulto era para dizer o que a criança deveria aprender e à criança cabia o esforço de assimilar as instruções recebidas.

Estamos no início do século XXI e a literatura infantil brasileira passa por uma ameaça de regressão, com a proliferação do chamado livro paradidático, aquele que diz o que a criança deve entender, roubando a sua liberdade de interpretação, que é o grande diferencial da literatura. As bibliotecas estão cheias dessas publicações funcionais, com seus enredos sem alma, criados especificamente para subsidiar aspectos didático-pedagógicos.

A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura. Há cem anos ainda não tínhamos a compreensão que a psicologia e a neurociência nos deram quanto à importância da leitura como meio para a organização da percepção do mundo e preparação para interferir na realidade. Insistir nesse equívoco é decretar a morte da vontade de ler e admitir a indolência da pedagogia.

Diante desse impasse de caráter cultural e educacional, a educadora mineira Angelina M. F. Castro propõe que, à luz das teorias textuais contemporâneas e das tecnologias da inteligência, a busca por saídas comece nos recursos literários e pedagógicos do Sítio do Picapau Amarelo. Em seu livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, Belo Horizonte, 2010), ela mostra as razões que a levam a acreditar nessa força de inteligência coletiva e solidária. O Sítio, neste caso, está além dos paradidáticos porque é uma literatura que atua como mediadora do processo de aprendizagem, oferecendo à criança a oportunidade de pensar por si mesma.

A autora associa a transversalidade da obra infantil lobatiana à proposta da revolucionária Escola Nova, pensada por educadores como Anísio Teixeira, que provocou uma mudança radical na educação brasileira dos anos 1920. Naquele momento, no Sítio da Dona Benta, a criança passou a ter voz ativa. Antes, meninas e meninos eram educados para obedecer e se calar diante dos adultos. Com seu livro, Angelina instiga os educadores da atualidade a enfrentarem o desafio da produção de uma nova metodologia educacional que seja também uma nova reforma do pensamento.

Chamar Monteiro Lobato para pensar o futuro mais uma vez é, dentro da abordagem de Angelina Castro, acreditar em uma estética da flexibilização de fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento, ativando novos recursos cognitivos e promovendo a interação de linguagens, de modo a levar o leitor à descoberta do que lhe parece invisível. A leitura relacional, simultânea e não linear, semelhante ao movimento da mente humana, sempre presente nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é trabalhada pela autora como uma antecipação do que nas últimas décadas convencionou-se chamar de hipertexto.

Essa vinculação do alcance da obra literária infantil de Lobato às modernas teorias de rede e suas múltiplas possibilidades de leitura, pensamento e produção de saber remete ao entendimento de que as metodologias de leitura se tornem compatíveis com o avanço das ciências humanas, sociais e tecnológicas. A autora argumenta que o Sítio guarda segredos de comunicação que somente hoje, com o computador e todo o ambiente digital, podem ser identificados. Sem contar com sua inclinação para a moderna Teoria da Complexidade, cujos conceitos se contrapõem aos princípios da especialização do conhecimento.

Por isso, e implicitamente atendendo aos perfis da nova infância, ela sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um "novo humanismo", apto a substituir, na vida pessoal e social, os antivalores do egoísmo social, da competição desmedida, do consumismo, do materialismo e do domínio sobre o outro, pelos valores voltados para o encantamento da vida. Ela lança o desafio aos educadores que, por meio da imaginação, teimem em mudar esse mundo racional e despoetizado.

Angelina Castro realça o papel de Monteiro Lobato como criador das condições para que o leitor restabeleça o elo perdido com o seu eu recôndito. "Talvez seja este o papel da educação: descobrir e trazer à tona a pérola, o potencial que está escondido nos subterrâneos do nosso ser" (p. 24). É nesse terreno fértil que brota a ação literária infantil do autor do Sítio em favor de uma educação crítico-criativa da infância leitora. A atualidade de Lobato é surpreendente. Livros como "A Reforma da Natureza" impressionam pelo que possibilitam de nodos pedagógicos sem, no entanto, cair em paradidatismos.

O caminho para uma educação da sensibilidade passa por uma literatura que torne o leitor apto a dar sentido às próprias experiências. Em vez de dar lição de moral, Monteiro Lobato dava à boneca Emília a missão de tirar o melhor das fábulas, pelo exagero da caricatura, pela reação que a inconveniência produz. Se Américo Pisca-Pisca achava que a natureza só fazia tolices e agia como agem muitos cientistas hoje, que fazem modificações genéticas apenas em nome de resultados econômicos, Emília propõe o caricato em seu plano de reforma, tal como acabar com a situação de só as fêmeas botarem e chocarem ovos.

Ao tratar da conexão dos saberes, Angelina Castro aproxima Edgar Morin de Monteiro Lobato, pelo esforço de ambos, cada qual do seu jeito e no seu tempo, para a construção de uma epistemologia na qual se articulam as diversidades e as oposições, no que apresentam de complementaridade de inter-dependência. Para cada um dos sete saberes que a teoria de Morin propõe para a educação no futuro, a autora dá exemplos de como um a um foi levado a efeito na obra infantil de Lobato.

Se o pensador francês assegura que conhecer dados isolados é insuficiente, o escritor brasileiro coloca a Dona Benta para situar seus relatos no tempo, num lugar, ligando-se ao cotidiano e abrindo espaço para as crianças vivenciarem o conhecimento adquirido por meio de sua criatividade; se Morin postula o entendimento da condição humana, Lobato fustiga essa questão filosófica com literatura transbordante como "Os doze trabalhos de Hércules" e "O Minotauro"; se a teoria de um defende a consciência da identidade terrena através do ensino do respeito ao próximo, a literatura do outro leva a meninada à reflexão e ao pensamento crítico em trabalhos como "A chave do tamanho" e sua denúncia contra a violência da guerra.

Essa parte do livro é muito empolgante. Parece uma peleja entre duas cabeças privilegiadas que resolveram se encontrar em tempos e lugares diferentes. Morin versa sobre a intensificação da imprevisibilidade e os personagens de Lobato agem preparados para o incerto e para as consequências dos seus atos; o sociólogo fala de "ensinar a compreensão" e o escritor traz no Sítio o costume do "aprender juntos"; a teoria de Edgar Morin prima pelo ensino da antropoética e as histórias infantis de Monteiro Lobato refletem em suas páginas a valorização da beleza e da poesia como atributos necessários a uma vida mais consciente, mais plena e prazerosa.




quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sucessivo como a vida - 7/10/2010 - Diário do Nordeste


A biografia de José Cortez destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil (...) O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram o editor a ser um agitador de ideias e um cidadão orgânico exemplar.


Poucos dias antes da festa de abertura das comemorações dos 30 anos da Cortez Editora, realizada no dia 1º de março de 2010, no TUCA, teatro da PUC/SP, o editor José Cortez comentou comigo que ainda não estava tão confortável com a ideia de ter sua história publicada. Lembrei-lhe de que certa vez ele me disse que gostava do jeito entusiasmado como eu falo dos meus livros e de eu ser um autor que não tem vergonha de vibrar com o que faz. Devolvi-lhe o comentário, com o intuito de reforçar o quão é importante para a sociedade conhecer a vida e a obra de uma pessoa caracterizada por um obstinado espírito realizador, como o dele.

Comentei que a relutância demonstrada por ele é natural, mas isso não deveria inibi-lo de tornar pública a sua trajetória exemplar. A história de José Cortez se mescla com a história da livraria e da editora que levam o seu nome. Por todos esses anos ele não permitiu holofotes voltados para si. Sempre jogou luzes para que o pensamento crítico brasileiro se libertasse das sombras do determinismo colonial. Disse-lhe que já é hora de ele ser visto, de ser homenageado e de desfrutar do respeito conquistado com tanta sensibilidade e garra. Ele fez um gesto de "se é assim" e despediu-se no seu simpático passo puxadinho, mas firme.

O tempo passou e o livro "A saga de um sonhador" (Teresa Sales e Goimar Dantas) está nas livrarias. Conta a história de um ser humano surpreendente. Criado no barro do chão, nas brenhas, Zé de Mizael - como é conhecido na família, que se estende pela comunidade do sítio Santa Rita, município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, onde nasceu - apreendeu traços de uma etiologia cariboca, modelada nos valores do trabalho, da família, da solidariedade e da moral sertaneja, que ele posteriormente levou para a empresa.

À primeira vista, as duas partes que compõem o livro parecem dois volumes em um. Um com viés acadêmico e outro com abordagem jornalística. Mas não são dois livros, são dois jeitos de tratar os dois momentos definidores da vida do editor, mantendo a configuração inversora e casual da sua história: o livro não foi pensado assim, mas aconteceu assim, com duas autoras cuidando de duas vertentes narrativas, que se unem pelo que há de positivo nas imperfeições humanas. A consequência dessa concatenação suplementar é que a obra de Teresa Sales e Goimar Dantas fala com emoção de uma vida e de uma obra seladas na confiança de quem está sempre pronto para reacontecer.

Com base na experiência de um sonhador em busca permanente de concretização dos seus sonhos, nota-se que a segunda parte depende da primeira, menos por sequência cronológica e mais por sincronicidade. Sem o alicerce erguido nas aventuras do menino e do jovem Cortez, dificilmente haveria o empresário de sucesso, transbordando senso de dever e amor pelo que faz. O livro aborda os feitos de José Cortez pela evocação das essências fundantes do seu caráter, condição que resultou na concretude lastreada pelo desejo de realização à procura de fazer acontecer.

Na primeira parte, a vida do biografado, mais voltada para a relação da infância e da sobrevivência, momento de preparação da sua alteridade, é contada e bem contada por quem estuda e conhece profundamente o ambiente onde ele se formou para a vida, a professora Teresa Sales. Socióloga, presidente do Conselho Diretor do Centro Josué de Castro, pesquisadora e autora de livros que abordam as temáticas relativas às transformações no mundo rural nordestino e em migrações internas brasileiras, Teresa Sales oferece mais do que uma biografia, ela presenteia o leitor com um retrato sociocultural, econômico e histórico do sertão. Com olhar atento, ela faz uma síntese nordestina em recorte que concilia o povoamento do semiárido, as relações no campo, o etos da família camponesa, a questão fundiária, a escravidão e as migrações. Ao mesmo tempo, mostra um José Cortez de alma tapuia, em um trançado de infância que diz muito da infância do Brasil.

Na segunda parte, a maneira mais solta de condução do texto foca José Cortez em sua fase mais madura, depois que foi expulso da Marinha, momento em que enfrentou os desafios de se estabelecer na capital paulista e passou a acolher familiares para trabalhar e estudar. Goimar Dantas, que é jornalista potiguar radicada em São Paulo, onde realiza trabalhos de valorização da memória da cidade, coloca a saga de José Cortez em um "guarda-garoa" modulado por referências culturais: recorre ao "E agora, José?" de Drummond, ao rapaz latino-americano de Belchior, à máxima de que "um país se faz com homens e livros", de Monteiro Lobato, ao grito de "um por todos e todos por um" dos três mosqueteiros de Alexandre Dumas, ao "Grande Sertão", de Guimarães Rosa, ao "Xote das meninas", de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e alusões a J.D. Salinger, James Dean, Fred Astaire, Menudos e Pedro Almodóvar.

Ambas as partes, com seus diferentes sotaques estilísticos, unem-se no ponto de coesão e coerência da personalidade do biografado: a coragem de existir nos sonhos, nos gestos e nas ações. Da soma das duas partes, resultam linguagens complementares que se projetam em uma obra inteira e disruptiva. Quer na primeira, quer na segunda parte, José Cortez aparece sempre fiel ao seu espírito criativo e à busca de realização, como um hábil mediador na cena cultural entre autores e leitores. Ele rompe com a linearidade dos modelos mentais dominantes, para contribuir com a inserção do Brasil como protagonista do mundo multipolar, pluriétnico e inclinado ao que chamo de social ambientalismo participativo.

O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram José Cortez a ser um agitador de ideias, um cidadão orgânico, no desempenho do seu papel de editor, por meio do qual espalhou dedicação ao livro e à leitura, numa inusitada capacidade empreendedora. Cortez é um dos emblemas do livro no Brasil, uma pessoa com notável respeitabilidade, capaz de unir em si grande modéstia e muita determinação. Aprendeu a escala da liberdade de apreciação e a tecedura entre o universo do saber e do conhecimento, na cultura e na ciência. Sua biografia destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil.

No garimpo, descrito por Teresa na primeira parte do livro, José Cortez buscava minerais preciosos, tempo em que - ele me disse certa vez - costumava comer preá assado embaixo dos matos para se proteger do sol inclemente. Na editora, parte reportada por Goimar Dantas, ele aparece garimpando e publicando bons originais, rodeado por uma equipe de apaixonados por livros que, sem pretensões professorais, educam e instigam pensar, movidos pelo pendor democrático do saber e do conhecimento, e pela convicção de que ler é um ato de aspiração.

Sempre respondendo com postura afirmativa a cada momento brasileiro, José Cortez está entre os atores culturais de maior relevância das últimas décadas.

Como formador de intelectuais e preparador de cidadãos, passou a ocupar lugar de destaque na galeria dos grandes editores brasileiros. Financiou o próprio sonho com trabalho duro e em condições precárias de realismo social, para fazer educação no Brasil. Sem ele e sem os autores que vem editando ao longo dos anos, certamente muitos estudiosos e educadores não seriam os mesmos. Por tudo isso, "A saga de um sonhador" é um livro que merece ser ouvido como se ouve a quem verdadeiramente tem algo a contar.