quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Por dentro da cabeça do Dim - 10/11/2011 - Diário do Nordeste

Não me canso de ver e de recomendar o filme "Brinquedim, brinquetu, brincamos nós!". Ele tem apenas oito minutos de duração e todo o tempo que a nossa imaginação consentir. Ao vê-lo, primeiro imaginamos, depois é que percebemos os detalhes do que sentimos, somos e vivenciamos. Com produção executiva de Ângela Madeiro, direção e edição de Rui Ferreira, fotografia de Jane Malaquias, cenografia, direção de arte e brinquedos do artista plástico Dim, é arte que se torna fábula pela conexão que possibilita entre as realidades da mente e do lúdico.


Uma superposição de metáforas explícitas forma a teia da linguagem, da inventividade e do raciocínio complexo desse curta-metragem de espantosa beleza e simplicidade, que pode ser acessado no seguinte endereço de internet: www.youtube.com/watch?v=aeGWBetccJU. Impecável em seu jeito de descrever o que não pode ser descrito e por falar a linguagem do lúdico, que é o idioma comum da humanidade, essa obra pode ser contemplada em qualquer lugar do mundo.


"Brinquedim" não se traduz por palavras, por conceitos ou ideias, ele emerge sutil na frequência das narrativas que não passam pelo racional, pelo consciente, e nem chegam ao irracional e ao inconsciente. Tem a liberdade da poesia, em seus sinais mergulhados na sensação criadora, que passa ao largo da percepção organizada do modo de ver e de julgar, para chegar ao incompreensível, pela reconfiguração do mundo interior.


Parece que as filmagens foram feitas por dentro da cabeça do Dim, do tanto que a imaginação foi capturada e apresentada em seu estágio mais genuíno. Talvez o modo mais eficaz de abordar essa temática tão complexa seja mesmo brincando, como foi feito em "Brinquedim". Colocados para brincar na praça e na lagoa, os bonecos tornaram-se sujeitos dotados de uma poética da universalidade, desorganizando o comportamento padrão do brinquedo.


No set de filmagens, os brinquedos deixam a nossa imaginação à vontade, movimentando-se pelas nossas "vivências", vividas e não vividas. Cada gesto, cada olhar, cada sussurro mudo implica em uma narrativa do nosso enredo, da nossa individuação, potencializando o lúdico em nossos sentimentos e pensamentos. São figuras preexistentes em nossas lembranças de diversão, que, postas diante dos nossos olhos e próximas dos nossos ouvidos, revelam-nos experiências que estão em nós, mas não são somente nossas; que nos colocam no comum da praça, mas com as cores da subjetividade; que nos fazem chegar à tonalidade do ser, de onde emana a espiritualidade, a emoção e a cultura.


A trilha sonora composta por Ronaldo Lopes dá o toque sutil e necessário à fantasia. Primeiro vem a flauta de Sara Kelly apresentando uma acrílica do Dim, retratando bonecos em torre, que, em seguida, aparecem na praça de uma cidade desértica, como se as pessoas tivessem sumido das ruas de casas coloridas e céu azul celeste, para ficar ao abrigo da alma dos brinquedos. A exceção fica com duas crianças que da janela de uma casa observam as gravações com inescapável naturalidade.

O Tocador de Pratos faz "plém, plém, plém" anunciando a brincadeira, tendo a imagem da igreja ao fundo. Entra a dinâmica das cirandas, mão com mão, carrossel, o passeio faceiro do ciclista de uma roda só, juntamente com o violão de Ronaldo Lopes, o baixo de Daniel de Araújo e a percussão de Toby. Protegidos pelos troncos robustos e pelas copas frondosas das árvores, cada qual vai entrando em contato com a sua essência, celebrando a vida, com a leveza, a ancestralidade e o futurismo de uma dança circular.


O filme tomou um caminho bem distinto da forma tradicional de contar histórias envolvendo bonecos. Consegue fazer isso porque exibe uma totalidade complexa, sem abstrações ou efeitos especiais. Tem como cenário a praça principal da cidade de Cascavel e o elenco formado por brinquedos criados pelo Dim. O curta traz a qualidade da luz e da captura fascinante dos movimentos dos personagens, ao narrar o ser por dentro do brincar. É primoroso.


Sons percutidos em ferro e barro, triângulo e pote, voam com pássaros multicores, borboletas agitadas e sombras em rodopio. Os brinquedos de libélulas na lagoa, o mangue ao fundo, a água que atravessa a cerca de madeira e a brincadeira de descer nas varas entram em fusão com a diversão na praça até alcançar o verde das folhagens, no brilho que escapa das sombras, enquanto uma libélula se recolhe ao lado de um cosmogônico cacho de manga. A natureza dorme, a vida sonha.


"Brinquedim, brinquetu, brincamos nós!" é uma obra de inspiração lírica, uma fábula sonora e visual, que conversa diretamente com quem a assiste, mostrando o que tem por dentro da cabeça do Dim. E dentro dela há uma oficina de devaneios brincantes, que parte do fim em busca do começo, de dentro para fora, até chegar ao "si" como grande desafio do "me". A contemplação do encanto, encanta, nos saca do mundo interno, fazendo o percurso invertido do nosso cotidiano abundante em violência simbólica. O filme abre passagem para um mundo intuído, onde natureza e cultura brincam espontaneamente.


Da mesma maneira que muitos jovens recorrem ao "thrash", como válvula de escape para manifestar emoções negativas de afetos desconexos, é lamentável que a sociedade não dê o mesmo incentivo e acesso a recursos artísticos como "Brinquedim", para o exercício do sublime. Sinceramente, obras como esta bem que poderiam ser vistas diariamente nas escolas, como um hino audiovisual da imaginação. Seria como hastear a bandeira do espírito criativo antes do início das aulas.


Apesar da viseira conservadora, que impede muitos de nós de perceber o quanto na educação obter cumplicidade é melhor do que obrigar, filmes como este grau de sensibilidade são produzidos na teimosia de transmitir o belo, como se a afinação do ser fosse um ideal de descendência do artista. Perguntei ao Dim, o que ele espera desse trabalho e ele me respondeu: "Levar um pouco de felicidade para as pessoas". E completou: "Do jeito que as coisas andam, se pararmos de brincar, vamos enlouquecer".


A alegria criadora evocada pela força da fala de beleza nua está presente de modo intenso em "Brinquedim". Não são simples imagens, não são simples sons, nem simples objetos animados. São eclosões, sem interferências de vontades controladoras, prolongando em nós o nosso próprio destino inventivo. Como ato do espírito, o filme toma posse do contraditório como uma potência de relato sensível, sem se confundir com onirismos.


Por ser uma obra experimental, artesanal e despretensiosa, "Brinquedim" reflete um mundo livre da pequenez. Desfragmenta padrões e põe em relevo a imaginação. A fotografia, a música, o movimento, tudo tem grandeza nesse trabalho. Se a imaginação em si é estética, filmar a imaginação é chave de acesso a um mundo não traduzível pelas ideias e metáforas, mas pelo encantamento. Nem pensamento lógico, nem mágico. Imagens e sons para sentir e silêncio de bonecos para ser escutado, porque eles são a mensagem.


É comum ver referências a brinquedos populares apenas como objetos tradicionais. Esse deslocamento da novidade ao passado é um equívoco que se desfaz com o curta "Brinquedim, brincatu, brincamos nós!" e sua linguagem lúdica e atemporal, com a qual faz a ruptura da ética e da estética vigente pelo mais puro movimento da originalidade da brincadeira em tela digital, sua dinâmica de movimentos, cores e sons. Choque lúdico e estético.




quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Qual a agenda da juventude? (I) – 27/10/2011 – Diário do Nordeste

O cenário de situações degradantes posto para a juventude, com fantasmas de incerteza financeira, drogas, corrupção, desonestidade científica, idolatria da violência e outros efeitos do ocaso de uma sociedade escrava da supremacia econômica, mais do que um fim de mundo pode ser uma senha para a reinvenção política, social e cultural, inspirada na cidadania orgânica. Este foi o tom da palestra "O que sonha a juventude brasileira?", que fiz no encerramento dos debates do 1º Círculo da Juventude, da UFC, dia 21 passado, no auditório da Matemática, no Campus do Pici.

O estouro do que eu chamo de bolha da juventude vem acontecendo em diversas realidades conectadas pela ideologia do consumismo: a ascensão do hip hop e das igrejas evangélicas é um fenômeno comum decorrente do abandono cultural e da religiosidade nos centros urbanos; o êxtase paradoxal do individualismo coletivo, se expressa no estranho senso da liberdade de um apesar dos outros, muito presente na dinâmica das multidões dos solitários em rede; a matemática do dinheiro digital sugere que as pessoas não precisem de lastro e a conta não fecha; a nova morfologia da geração de renda avisa que tempo livre e bem estar pode ter ou não ligação com emprego. E assim por diante.

No estudo de projeção do nosso perfil demográfico, feito pelo Banco Mundial, e lançado em seis de abril deste ano, em 2020, da estimativa de 207,2 milhões de brasileiros, 66,2% estarão na faixa etária entre 15 e 59 anos. A leitura desse percentual tem significados diferentes quando feita por angulações do mercado e da sociedade civil. Para a estratégia economicista, um contingente tão expressivo e em "idade ativa" representa oportunidade de mais força produtiva, mais crescimento e mais lucro; já em uma visão ecoplanetária, o fato de um País ter mais da metade da população no seu intervalo entre a adolescência e a vida madura, é uma oportunidade para revisões de conceitos.

A criação de estereótipos culturais para a domesticação da juventude está presente sobretudo na fala e no comportamento das celebridades. Contando da sua dificuldade de se relacionar, a cantora Lady Gaga ilustra bem essa questão com, digamos, profunda superficialidade : "É uma coisa estranha. Se eu dormir com alguém, ele vai roubar minha criatividade através da minha vagina" (revista Vanity Fair, set/2010). Quer referindo-se a pênis ou a pendrive, o recado implícito na mensagem da performer aos seus seguidores é de que há uma deidade nos "seguidos" e que é bom estar ligado na desconfiança própria dos comuns.


No momento em que o professor Cavalcante Júnior, idealizador e coordenador do Círculo da Juventude, me sugeriu o tema "O que sonha a juventude brasileira?", lembrei-me logo de revisitar um texto que escrevi sobre o assunto na minha juventude etária. Achei agradavelmente curioso descobrir que o dia e mês da minha palestra seria o mesmo da publicação do meu artigo intitulado "O terceiro sonho" (O Povo, 21/10/1987) há exatamente 24 anos. Nesse escrito eu considero como início de uma agenda autêntica da juventude os protestos libertários desencadeados a partir da década de 1950, quando os jovens conquistaram o direito a uma convivência mais liberada e voltada para valores não materiais.

Descobri também que o que parecia distante no tempo estava mais próximo do que eu suspeitava, quando voltei nas palavras para me ver de perto. A articulação do pensar e o jeito de dizer têm lá suas particularidades, mas todas as questões que me tocam hoje estavam presentes lá, nas apreciações que fiz ao sonho hippie do "Faça amor não faça guerra" e ao sonho das sociedades alternativas do "Faz o que tu queres pois é tudo da lei". O meu argumento para a escolha desses dois movimentos, como exemplos próprios de uma agenda "da" juventude e não "para" a juventude, foi o de que eles, diferentemente dos movimentos políticos tradicionais, colocavam as pessoas como justificativa para a existência da sociedade e não a sociedade como justificativa para a existência das pessoas.

Sobre a apropriação dos elementos simbólicos desses movimentos pelo sistema de consumo, escrevi que: "Ser hippie virou moda. A contestação transformou-se em romantismo, cultuando macaquinhos em posição de ioga, consumindo incensos, gurus e conceitos completamente distorcidos" (...) "A fuga para o esotérico e os desencontros místicos para onde se dirigiram muitos adeptos das sociedades alternativas entrou em choque com a turbulenta situação político-econômica mundial, movida pela elevação do preço do barril de petróleo pelos árabes, e acabou com cheiro de patchuli". À parte de qualquer engano de expectativa, tenho chamado de social-ambientalismo participativo o ensaio do que seria o campo fértil de um novo sonho da juventude.

Depois de revisitar o que eu pensava sobre o sonho da juventude tempos atrás e de refletir sobre a condição dos jovens nos dias de hoje, resolvi fazer um exercício do que poderia ser uma agenda da juventude e cheguei a dez pontos que, suponho, caberiam nessa pauta:


01 - Encerrar o ano de 1968

Enquanto, sem um devido aprofundamento comparativo de contextos, a juventude seguir bombardeada pela vulgata de que a geração de mais de quatro décadas atrás é dona de uma genialidade atemporal e onipresente, fica difícil esperar que se motivem a grandes sonhos. O ano de 1968 é um marco importante dos movimentos de juventude euro-americanos, mas, como todo marco, não deve ser usado por necessidades narcísicas para amarrar a vida social em regressão periódica. O passado deve estar no presente como sentinela, de modo que a juventude fique livre para fazer o seu tempo.

A percepção da existência de um estado humano que nem é a infância nem a vida adulta vem do final do século XIX e foi acentuada depois da Segunda Guerra Mundial, quando os jovens, mesmo os rebeldes com ou sem causa, passaram a ser alvo do mercado de consumo. No livro "A criação da juventude", Jon Savage (Ed. Rocco) fala de como o conceito de "teenager" revolucionou o século XX, impondo modelos de consumo, de moda e de cultura; mostra como a indignação e a insurgência foi apropriada pela comunicação mercadológica, em troca de uma satisfação que embrutece, que transfere para o objeto as expectativas da realização de desejos.

02 - Escapar da Onda Retrô

O poder homogeneizante em que se transformou a internet, somado aos interesses pelo repique de rentabilidade de conteúdos que já se pagaram e a uma certa transferência de saudade de um presente de déjà vu, caracterizam bem o sentimento de nostalgia que prende parte significativa da juventude ao vintage, ao remake e às reprises. Nesta leitura (que deixa de fora os rejuvenescedores movimentos da moda no tempo), o que chama a atenção é o ar de espírito acomodado dos jovens em posição de revival, como se consumir itens testados fosse garantia de aceitação social.

Mais do que visual antigo, mais do que balada com música "demodê" e seriado clássico de televisão, a já demorada onda retrô representa o envelhecimento do moderno. Um dos símbolos mais fidedignos dessa reedição de épocas passadas era o estilo criativo e trágico, poderoso e frágil, da cantora inglesa Amy Winehouse (1983 - 2011), com seus vestidos de cintura alta e cabelos com grande volume no topo da cabeça, fazendo as vezes de mocinha ingênua e reprimida, ao passo que se consumia em seu dolorido e comovente drama pessoal.Continua na próxima quinta-feira.


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