quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Serenata para M. E. Walsh - Diário do Nordeste - 27/1/2011

Maria Elena utilizou-se do prestígio que conquistou como intelectual e artista para interferir nas questões sociais e políticas da Argentina (...) Tornou-se uma referência artística e social tecida geração por geração pelas famílias e pelas escolas na memória coletiva do seu país.
No dia em que Maria Elena Walsh morreu, olhei para o céu de Buenos Aires e ele estava bem azul. Azul celeste. Foi no dia 10 que passou. Da sua obra de poeta, compositora e cantora para adultos e crianças eu tinha apenas duas referências: as canções gravadas por Mercedes Sosa no elepê de capa azul, intitulado "Serenata para la tierra de uno" (1979) e a música do filme "A tartaruga Manuelita" (1999), animação do diretor espanhol-argentino Manuel García-Ferré.
Em "Serenata para la tierra de uno", Maria Elena expressa o sentimento de que todos temos um lugar com o qual compartilhamos o idioma da infância; um lugar que mesmo nos fazendo sofrer é duro de ser deixado para trás; um lugar do qual queremos estar perto nem que seja para odiar aqueles que o maltratam.
Com a personagem Manuelita, a escritora confirma esse sentimento, à medida que a charmosa e carismática tartaruga, cansada do mundo em que vive, foge da Argentina para virar celebridade na França, mas ao ser encontrada pelos amigos de infância, deixa o sucesso parisiense de lado e volta para casa.
Por essas duas janelas procurei entender o azul celeste da bandeira que veste o coração de Maria Elena - e de Manuelita, esta na condição de representação do si da sua criadora. O que olhar, quando o que se tem pela frente é a trajetória de uma artista que encheu uma nação de música e poesia?
Essa luz azulada, essa alma infantil nostálgica e rebelde, traduzem a cultura argentina em boa parte também embalada por ela. Maria Elena Walsh (1930 - 2011) é uma referência artistica e social tecida geração por geração pelas famílias e pelas escolas na memória coletiva do seu país.
Filha de um contador inglês que trabalhava na rede ferroviária e de uma descendente de espanhóis, foi incentivada pelos pais a gostar de escrever e de cantar. Com 17 anos lançou seu primeiro livro de poesias ("Otoño Imperdonable") e passou a conviver com personalidades da literatura, a exemplo de Jorge Luís Borges, com quem costumava sair para tomar chá.
Em passagem pela Argentina no ano de 1948 o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez convidou-a a ir com ele aos Estados Unidos, onde Maria Elena aproximou-se de Ezra Pound e de outros grandes nome da literatura. Retornou em 1956, no primeiro momento peronista e, como a tartaruga Manuelita decidiu auto-exilar-se em Paris.
Na capital francesa, ela, juntamente com a também multiartista Leda Valladares, começou a fazer apresentações de vidalas, zambas, cuecas, bagualas e carnavalitos em bares e cafés. Gravaram vários discos com o cancioneiro da tradição oral do norte argentino, músicas andinas, canções de Athaualpa Yupanqui e música popular espanhola.
O despertar para a temática infantil ocorreu no início da década de 1960, com a publicação do livro "Tutu Marambá", inspirado no lendário personagem brasileiro e dos discos "Canciones para mirar", "Canciones para mi" e tantos outros, com gravações de qualidade, respeitando a criança.
Ao compor e cantar músicas plenas de sentimentos sinceros e profundos, sua obra ganhou muitas reedições. A concepção de Maria Elena com relação a aplicação da arte na educação me parece semelhante a da Bia Bedran, no que diz respeito à necessidade de uma educação mais estética, capaz de fazer conexões pelo inconsciente.
Do mesmo modo que Monteiro Lobato - que se aborreceu com os adultos e passou a escrever para crianças - Maria Elena estava com fastio de círculos literários e tinha resolvido dedicar-se às composições infantis que viriam a consagrá-la. Escreveu cerca de 40 livros de poemas, canções, contos, novelas e peças de teatro, sendo "Manuelita, donde vas?" (1997), o último que publicou para esse público com textos originais.
Ao olhar pelas janelas da "Serenata para la tierra de uno" e de "Manuelita", que primeiro se abriram para mim no contato com a paisagem de Maria Elena Walsh, vi muitas outras virtudes e realizações no seu azul celeste. Tanto quanto fiquei impressionado com as maravilhas que ela dedicou à infância, encantei-me com a indignação que ela tinha com relação a tudo o que feria a dignidade humana.
Maria Elena utilizou-se do prestígio que conquistou para interferir nas questões sociais e políticas do seu país. Fez isso com admirável pensamento independente, contrariando diferentes vertentes políticas. Pronunciou-se favorável ao aborto, contra a pena de morte, sobre o papel dos intelectuais, a desigualdade de gênero, as opiniões por conveniência, os modismos culturais e fez coro, ao lado de escritores como Ernesto Sabato, na busca dos desaparecidos pela ditadura.
Em pleno regime militar, desafiou os censores no artigo "Desventuras no país jardim de infância", publicado em 16/08/1979, no suplemento "Cultura y Nación", do jornal "Clarín", afirmando-se como uma autora que olhava com amor a realidade da argentina, por mais suja que ela estivesse. Por conseguinte, não aceitava aquela situação em que não se podia manifestar o pensamento: "A maioria dos autores somos moralistas. Queremos - devemos - denunciar para sanar, informar para corrigir, saber para transmitir, analisar para optar".
Na retomada do processo democrático (1984) apoiou o presidente Raúl Alfonsín. Evitou assumir cargos públicos, mas aceitou integrar o Conselho para a Consolidação da Democracia. Apostou na democracia até ser duramente atacada por tradicionais admiradores, que reagiram ao seu artigo "La carpa también debe tomarse vacaciones", publicado no jornal "La Nación", de 21/12/1997, no qual qualificava de usurpadora do espaço público uma "interminável" manifestação de professores. Optou pelo silêncio. No entanto, milhares de fãs estiveram em seu velório, inclusive a presidenta Cristina Kirschner.
Maria Elena já estava mais recatada em decorrência de um câncer ósseo, diagnosticado em 1981 e que causou-lhe a morte 30 anos depois. Por todo esse período ela contou com a cumplicidade de Sara Facio, fotógrafa conhecida por retratar destacados escritores, de Julio Cortázar a Mario Vargas Llosa. Sara fez a biografia fotográfica de Maria Elena, na qual pôs o título: "Retratos de una artista libre" (1999).
Esse gesto de atenção e carinho foi retribuido com uma declaração de amor a Sara, feita no livro "Fantasmas en el Parque" (2008), no qual evoca amigos, mestres e amantes que com ela passearam pela vida, em uma relação que vai de Juan Ramón Jiménez a Silvina Ocampo. Uma publicação bem diferente de "Las cuerdas vivas de América" (2002), na qual Maria Elena rumina uma irritada contestação contra a compositora chilena Violeta Parra, que a chamou de burguesa, durante um encontro na década de 1950, em Paris.
Ainda bem que nas janelas da "Serenata para la tierra de uno" e de "Manuelita" encontrei fel e mel. Isso prova que Maria Elena Walsh realmente existiu. Não fosse assim, ela apenas teria andado pelas ruas, olhando para as vitrines, mas sem prazer; destino negado pelo ursinho de pelúcia, vestido em pijama de macacão, que ela criou para a canção "Marcha de Osías", um dos seus clássicos que chegam para mim e para meus filhos em novas janelas de azul celeste.
O urso de brinquedo da canção de Maria Elena quer um bazar que venda coisas que no fundo no fundo todo mundo gostaria de comprar: relógios que tenham tempo para brincar, um rio com muitos peixes, jardins sem vigilantes e sem ladrões, histórias contadas pelas avós, uma bola que faça gol, um chapéu cheio de coelhos para fazer mágica, tudo o que os espelhos guardam, um pouco de conversa para quando estiver sozinho e um céu bem azul. Isso mesmo, azul celeste

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Lição chilena de cidadania - Diário do Nordeste - 20/1/2011


Acompanhei de perto o movimento em Punta Arenas, onde não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta justa e pacífica. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.
Há mais de uma semana que as principais cidades da Patagônia chilena estão com as portas do comércio e da indústria fechadas e com os acessos aéreos, portuários e terrestres bloqueados por barricadas feitas por moradores, em protesto contra o aumento de 16,8% no preço do gás, anunciado pelo governo de Sebastián Piñera, no início do mês.
Acompanhei de perto o movimento em Punta Arenas, onde não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta justa e pacífica. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.Embora tenha como um dos seus principais articuladores a Assembleia Cidadã de Magalhães (ACM) - fórum constituído por cerca de duas dezenas de entidades da sociedade civil - a mobilização tem caráter transversal e essencialmente orgânica. A causa comum, que leva à convergência das mais diferentes forças políticas, econômicas e sociais da região, manifestadas em constantes buzinaços e bandeiraços, é a luta contra a ameaça de privatização da Enap (estatal de petróleo), o desemprego e a inviabilização do consumo de gás, produto vital para o funcionamento das empresas e, sobretudo, para a calefação domiciliar.
As reações do governo chileno à paralisação regional de Magalhães passam por mudanças no gabinete da República. Foram quatro alterações ministeriais feitas nos últimos dias: Defesa, Transporte, Trabalho e Energia. As pastas das Minas e Energia foram fundidas em uma só e entregue a Laurence Golborne, que ficou encarregado do diálogo com as lideranças do movimento. O novo ministro esteve em Punta Arenas na segunda-feira passada, dia 17, em uma tensa reunião com líderes regionais e dirigentes da ACM, que durou sete horas.
O encontro acabou prejudicado por uma inábil tentativa de negociação paralela entre Golborne e os prefeitos Vladimiro Mimica (Punta Arenas) e Fernando Paredes (Puerto Natales) e o membro do Conselho dos Municípios Emílio Bocazzi, que foram acusados de traição pelos manifestantes e representantes da Assembleia Cidadã. O resultado dessa trapalhada é que o esforço de diálogo não se traduziu em um documento de consenso, capaz de assegurar as garantias necessárias ao conforto das partes envolvidas.
O grande diferencial dessa mobilização está exatamente no fato de as pessoas, sem qualquer negação à importância da representação partidária, terem tomado a decisão de exercer seu poder de pressão política massiva, categorizando a sociedade civil em uma concreta e espetacular ação de democracia participativa. O sociólogo Manuel Rodrigues, um dos dirigentes da ACM, chama a atenção para o quanto é realmente difícil que a institucionalidade política entenda e aceite uma atuação da coletividade, sem a dependência direta das estruturas partidárias.
Por outro lado, para atrapalhar o diálogo, o presidente Piñera lançou mão da controvertida Lei de Segurança do Estado (Lei nº 12927), que permite a perseguição judicial a manifestantes e até a intervenção das Forças Armadas. Entrevistei a deputada Carolina Goic (Partido Democrata Cristão) e ela me disse que esse recurso remanescente do período de exceção é decepcionante porque causa mal-estar democrático e prejudica o diálogo na construção de soluções para o problema. Recordou, entretanto, que desde os tempos da ditadura não se viam no Chile mobilizações unindo todos os setores da sociedade, como a que aflorou na Região de Magalhães contra a alta do gás.
Em conversa com Manuel Rodriguez ele me falou da surpreendente força civil das organizações sociais de Magalhães. "O que está acontecendo aqui é algo semelhante ao movimento dos piqueteiros que derrubaram o presidente Fernando de la Rua, na Argentina". A comparação com as paralisações contra a queda vertiginosa das condições de vida, ocorridas em 2001 no país vizinho, traduz a confiança de Rodriguez no potencial mobilizador da cidadania na sua região.
O movimento tomou proporções bastante razoáveis. Pessoas de Magalhães que moram em outras regiões do Chile e no exterior estão ampliando a mobilização nas praças de armas das suas cidades de residência e em redes virtuais, organizando protestos como os que têm sido feitos na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de La Moneda, na capital Santiago. Esse tipo de mobilização tem sido chamado de ""Magallatón". No final do domingo, 16, as rádios de Punta Arenas anunciaram a solidariedade do Sindicato dos Petroleiros ao movimento.
Escutei do laboratorista José Rojas Miranda, militante do Partido Socialista, que esse fenômeno de mobilização transversal tem um histórico na cidadania na região: "O Chile como país foi descoberto antes por Magalhães. Depois, os movimentos operários, anárquicos, influenciados pela Revolução Francesa, também chegaram por aqui. O Partido Socialista foi fundado inicialmente no Chile em Punta Arenas. As reações contra a ditadura de Pinochet começaram nesta terra com o puntarenaço. Os protestos contra a alta do gás estão acontecendo dessa forma porque temos uma cidadania capaz de mobilizar-se".
A dificuldade de obtenção de um consenso está vinculada a desconfiança dos manifestantes nas propostas do governo que sejam para solução no futuro. Os habitantes de Magalhães não querem correr o risco de precisarem voltar aos tempos das fogueiras. Sobre a perspectiva de um acordo Carolina Goic acredita que "a solução virá no momento que o governo reconquistar a confiança da população com uma proposta de regulação decente, que respeite o gás que se produz em Magalhães e que garanta o subsídio permanente, e não com medidas centralistas, que não levam em conta as particularidades da região".
Na campanha eleitoral que o levou à presidência, Sebastián Piñera havia prometido em Punta Arenas que todos poderiam ficar muito tranqüilos porque a política do seu governo manteria um tratamento especial para o gás domiciliar na Região de Magalhães. O gás é um insumo indispensável e de uso massivo na Patagônia. Tanto que sempre foi subsidiado como incentivo ao povoamento e desenvolvimento da região. Magalhães produz o seu próprio gás, mas só tem direito a aproximadamente 10% dessa produção, pois 90% do produto é utilizado para abastecer a Methanex, multinacional canadense, produtora de metanol.
Dentro de uma visão eminentemente econômica, sem levar em consideração as peculiaridades regionais e os fatores sociais envolvidos na questão do uso do gás em Magalhães, com o aumento do preço o governo estaria aumentando a atratividade do setor petroleiro para a privatização. A alta do gás também serviria para inibir o consumo residencial, liberando o produto para aumentar ainda mais o fornecimento para a Methanex, que, como a maior consumidora de gás em todo o Chile, estaria pressionando o governo a cumprir compromissos que não estariam sendo honrados pela estatal de petróleo.
O aumento do preço do gás causaria forte impacto nos setores de transporte, de alimentos, do turismo e de eletricidade, uma vez que a energia da região é gerada com base em turbinas a gás. Entretanto, não é somente por esses motivos que o sentimento de indignação contra a medida do governo está presente em todos os lugares. Os habitantes da Região de Magalhães sentem-se usurpados pelo poder central e traídos pelo presidente. Nas ruas, ouve-se quem defenda a independência da região, sua anexação à Patagônia argentina ou até uma composição territorial com as ocupações inglesas no sul da América do Sul.


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Aumento do preço do gás provoca revolta no sul do Chile - Direto do Chile Jornalista Flávio Paiva.18/1/2011

Foto: Flávio Paiva


PUNTA ARENAS – A Patagônia chilena experiencia um momento histórico de cunho social, político e econômico. Há uma semana as principais cidades da Região de Magalhães – Punta Arenas, Puerto Natales e Porvenir – estão com as portas do comércio e da indústria fechadas e com os acessos aéreos, portuários e terrestres bloqueados por barricadas feitas por moradores, em protesto contra o aumento de 16,8% no preço do gás, anunciado pelo governo de Sebastián Piñera, no início do mês. Tudo está parado. Não há como fazer câmbio, abastecer carro, comer em restaurantes ou fazer compras em supermercados.
Embora tenha como um dos seus principais articuladores a Assembleia Cidadã de Magalhães (ACM) – fórum constituído por 14 entidades da sociedade civil – a mobilização tem caráter transversal e essencialmente orgânica. A causa comum, que leva à convergência das mais diferentes forças políticas, econômicas e sociais da região, manifestadas em constantes buzinaços e bandeiraços, é a luta contra a ameaça de privatização da Enap (estatal de petróleo), o desemprego e a inviabilização do consumo de gás, produto vital para o funcionamento das empresas e, sobretudo, para a calefação domiciliar.
As reações do governo chileno à paralisação regional de Magalhães passam por mudanças no gabinete da República. Foram quatro alterações ministeriais feitas esta semana: Defesa, Transporte, Trabalho e Energia. As pastas das Minas e Energia foram fundidas em uma só, entregue a Laurence Golborne, que fica encarregado do diálogo com as lideranças do movimento. Os sindicalistas estão apreensivos com a mudança no ministério do Trabalho, visto que para seu comando foi nomeada a senadora Evelyn Matthei, conhecida por seus posicionamentos contra as reivindicações dos trabalhadores.
O presidente Piñera, que foi ministro do general Augusto Pinochet, está recorrendo também a Lei de Segurança do Estado, que permite inclusive a intervenção das Forças Armadas, na tentativa de intimidar o movimento. As pessoas envolvidas nas barricadas, por exemplo, poderão ser identificadas e acionadas judicialmente, independentemente de estarem exercitando ações pacíficas de cidadania. Aqui em Punta Arenas, não se vê situações de saques, nem de violência por parte dos participantes dessa luta contra o aumento do preço do gás. O clima é de solidariedade, com voluntários fazendo comida em grande quantidade para os que estão em piquetes e barricadas.O sociólogo Manuel Rodriguez, membro da executiva da ACM, recebeu-me gentilmente em sua residência e falou da surpreendente força civil das organizações sociais de Magalhães. “O que está acontecendo aqui é algo semelhante ao movimento dos piqueteiros que derrubaram o presidente Fernando de la Rua, na Argentina”. A comparação com as paralisações contra a queda vertiginosa do nível de vida, ocorridas em 2001 no país vizinho, mostra a confiança de Rodriguez no potencial mobilizador da cidadania na sua região.
O movimento tem tomado proporções bastante razoáveis. Pessoas de Magalhães que moram em outras regiões do Chile e no exterior estão ampliando a mobilização nas praças de armas das suas cidades de residência e em redes sociais digitais, organizando protestos como os que têm sido feitos na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de La Moneda, na capital Santiago. Esse tipo de mobilização tem sido chamado de ““Magallatón”. Ontem, 16, no final do dia, as rádios de Punta Arenas anunciaram a adesão dos sindicatos dos petroleiros de todo o país ao movimento.
Em conversa com o laboratorista José Rojas Miranda, militante do Partido Socialista, ele explica esse fenômeno de mobilização transversal como um “fenômeno” histórico da cidadania na região: “O Chile como país foi descoberto antes por Magalhães. Depois, os movimentos operários, anárquicos, influenciados pela Revolução Francesa, também chegaram por aqui. O Partido Socialista foi fundado inicialmente no Chile em Punta Arenas. As reações contra a ditadura de Pinochet começaram nesta terra com o puntarenaço. Os protestos contra a alta do gás estão acontecendo dessa forma porque temos uma cidadania capaz de mobilizar-se”.
As várias tentativas de diálogo feitas até o momento não obtiveram consenso. O governo está propondo um aumento imediato de 3%, o que seria um ajuste relativo ao IPC de 2010, deixando que um projeto de lei definisse o aumento real para setembro, época de temperaturas abaixo de zero na região, quando as pessoas mais precisam utilizar o gás para se aquecerem. Os dirigentes da mobilização não estão aceitando. A desconfiança é muito grande em qualquer proposta do governo que seja para solução no futuro. Os habitantes de Magalhães não querem correr o risco de precisarem voltar aos tempos das fogueiras.
Durante a manifestação de domingo na Praça de Armas, perguntei à deputada Carolina Goic (Partido Democrata Cristão) sobre a perspectiva de um acordo. Ela respondeu que “a solução virá no momento que o governo reconquistar a confiança da população com uma proposta de regulação decente, que respeite o gás que se produz em Magalhães e que garanta o subsídio permanente, e não com medidas centralistas, que não levam em conta as particularidades da região”.
Na campanha eleitoral que o levou à presidência, Sebastián Piñera havia prometido em Punta Arenas que todos poderiam ficar muito tranqüilos porque a política do seu governo manteria um tratamento especial para o gás domiciliar na Região de Magalhães (El Pinguino, caderno Analisis, p.3, 08/01/2011). O gás é um insumo indispensável e de uso massivo na Patagônia. Tanto que sempre foi subsidiado como incentivo ao povoamento e desenvolvimento da região. Magalhães produz o seu próprio gás, mas só tem direito a cerca de 10% dessa produção, pois 90% do produto é utilizado para abastecer a Methanex, multinacional canadense, produtora de metanol.
Dentro de uma visão eminentemente econômica, sem levar em consideração as peculiaridades regionais e os fatores sociais envolvidos na questão do uso do gás em Magalhães, com o aumento do preço do gás o governo estaria aumentando a atratividade do setor petroleiro para a privatização. A alta do gás também serviria para inibir o consumo residencial, liberando o produto para aumentar ainda mais o fornecimento para a Methanex, que, como a maior consumidora de gás em todo o Chile, estaria pressionando o governo a cumprir compromissos que não estariam sendo honrados pela estatal de petróleo.
O aumento do preço do gás causaria forte impacto nos setores de transporte, de alimentos, do turismo e de eletricidade, uma vez que a energia da região é gerada com base em turbinas a gás. Entretanto, não é somente por esses motivos que o sentimento de indignação contra a medida do governo está presente em todos os lugares. Os habitantes da Região de Magalhães sentem-se usurpados pelo poder central e traídos pelo presidente. Nas ruas, ouve-se quem defenda a independência da região, sua anexação à Patagônia argentina ou até uma composição territorial com as ocupações inglesas no sul da América do Sul.
(*) Flávio Paiva é jornalista, colunista semanal do Diário do Nordeste e autor, dentre outros, dos livros “Como Braços de Equilibristas” (Edições UFC), “Mobilização Social no Ceará” (Edições Demócrito Rocha) e “Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo” (Cortez Editora) flaviopaiva@fortalnet.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Os modos de Dona Marisa - Diário do Nordeste - 13/1/2011


Lula deu certo e tornou-se um sucesso de reconhecimento mundial. E esse sucesso também atende pelo nome de Marisa (...) Hildegard Angel chama a atenção para o que existe de verdadeiro como ato afirmativo no comportamento da ex-primeira-dama.
A quem é realmente comprometido com algo grande, não interessa a negação dos que recorrem à pequenez como oposição à força movedora que subsiste na cumplicidade dos corações. Essa característica, mais facilmente identificada no poder feminino, foi simbolizada nos últimos oito anos, pela ex-primeira-dama Marisa Letícia, em uma espécie de ruptura da ruptura do novo perfil da mulher na contemporaneidade. Pouco atentamos para isso, mas ela teve a paciência e a coragem de exercitar seu papel fora dos rótulos arbitrados pelo modelo mental de colonizado ainda predominante na cultura brasileira.
Dei-me conta das lições silenciosas legadas por Dona Marisa depois de receber vários e-mails com um artigo da colunista social carioca Hildegard Angel, publicado em seu blog no dia 4 de janeiro passado, às 18:40, com o título "Marisa Letícia Lula da Silva: palavras que precisavam ser ditas".
O texto de Hildegard é instigante e envolvente porque diz o que muita gente sente e não consegue perceber por ignorância, preconceito ou contaminação ideológica. Seu olhar vai além da pessoa da ex-primeira-dama para alcançar os valores que ela conseguiu preservar na vida pública com tanta simplicidade.
Pensando bem, o comportamento invejoso de grande parte da elite chique e afetada brasileira com relação ao presidente Lula merece muitos e aprofundados estudos. Mesmo com a aprovação pessoal do presidente chegando ao percentual de 87% (DN, 30/12/2010) no final do segundo mandato, essa minoria privilegiada não poupou veneno em intensos bombardeios de desdém para corroer sua imagem, como se dissesse despeitada: "Que vá e não volte mais esse pobretão que teve a ousadia de dar certo". Esse é o problema, Lula deu certo e, para completar, tornou-se um sucesso de reconhecimento mundial. E esse sucesso também atende pelo nome de Marisa.
As palavras de Hildegard Angel merecem leitura atenta, por nos devolverem uma oportunidade renovadora de apreciar o que temos sido, enquanto brasileiros. Tomando sua feliz reflexão como de grande importância, selecionei cinco pontos em que ela sintetiza as formas maliciosas do tratamento dado à ex-primeira-dama e outros cinco aspectos nos quais a autora se refere aos méritos e bons exemplos de Marisa Letícia.
O bom êxito do seu artigo, considerando a expressiva replicação em outros blogs e redes de relacionamentos virtuais, pode estar associado a um desconforto interior não manifesto, provavelmente causado por constantes e crescentes trocas de valores culturais e sociais autênticos pelo mundo das aparências. Dos sinais de constrangimento à ex-primeira-dama, abordados por Hildegard, destaco:
1) "Foram oito anos de bombardeio intenso, tiroteio de deboches, ofensas de todo jeito, ridicularia, referências mordazes, críticas cruéis, calúnias até (...) E as hostilidades públicas? E as desfeitas? E a maneira desrespeitosa com que foi constantemente tratada, sem a menor cerimônia, por grande parte da mídia? Arremedando-a, desfeiteando-a, diminuindo-a?"
2) "E as frequentes provas de desconfiança, daqui e dali? E - pior de tudo - os boatos infundados e maldosos, com o fim exclusivo e único de desagregar o casal, a família? (...) Marisa Letícia Lula da Silva precisou ter coragem e estômago para suportar esses oito anos de maledicências e ataques. E ela teve".
3) "Começaram criticando-a por estar sempre ao lado do marido nas solenidades (...) Implicaram com o silêncio dela, a "mudez", a maneira quieta de ser. Na verdade, uma prova mais do que evidente de sua sabedoria. Falar o quê, quando, todos sabem, primeira-dama não é cargo, não é emprego, não é profissão?"
4) "Queriam era ver dona Marisa Letícia se atrapalhar com as palavras para, mais uma vez, com aquela crueldade venenosa que lhes é peculiar, compará-la à antecessora, Ruth Cardoso (...) Cobraram de Marisa Letícia um ´trabalho social nacional´, um projeto amplo nos moldes do Comunidade Solidária (...) Pura malícia de quem queria vê-la cair na armadilha e se enrascar numa das mais difíceis, delicadas e técnicas esferas de atuação: a área social".
5) "Foi um apedrejamento sem trégua, quando Marisa Letícia, ao lado do marido presidente, decidiu abrir a Granja do Torto para as festas juninas. (...) Fizeram chacota por Lula colar bandeirinhas com dona Marisa, como se a cumplicidade do casal lhes causasse desconforto".
Lula e Marisa representam para muitos os incapazes. Esse presságio rondou a cabeça do casal na primeira noite em que dormiu na residência presidencial. Numa transmissão ao vivo do Marco Zero de Recife, feita dia 28/12/2010 pela NBR, o presidente contou que foi ao lado de Marisa que ele percebeu que não poderia falhar. Deitados na cama em que se deitaram tantos presidentes, a conversa deles terminou com o compromisso de honrar não apenas a si, mas o que a figura de Lula simboliza para as pessoas comuns, as desacreditadas e excluídas do direito de liderar e tomar grandes decisões.
Em seu texto, Hildegard Angel chama a atenção para o que existe de verdadeiro como ato afirmativo no comportamento de Dona Marisa, em meio à retórica saturada da onde de tantos padrões pseudo-revolucionários. A mulher de Lula (por que não?) fez o que deu para fazer, respeitando seu universo cultural, social e político, sem cair nas armadilhas do pedantismo. É o caráter transformador dessa experiência interna e externa que Hildegard realça como posição exemplar da ex-primeira-dama diante da realidade. Senão vejamos:
1) "Não são tantas as mulheres no Brasil que conseguem manter em harmonia uma família discreta e reservada, como Marisa Letícia (...) E não são também em grande número aquelas que contam, durante e depois de tantos anos de casamento, com o respeito implícito e explícito do marido".
2) "Marisa Letícia dedicou-se ao que ela sempre melhor soube fazer: ser esteio do marido, ser seu regaço, seu sossego. Escutá-lo e, se necessário, opinar. Transmitir-lhe confiança e firmeza (...) Foi quem saiu às ruas em passeata, mobilizando centenas de mulheres, quando os maridos delas, sindicalistas, estavam na prisão. Foi quem costurou a primeira bandeira do PT. E, corajosa, arriscou a pele, franqueando sua casa às reuniões dos metalúrgicos, quando a ditadura proibiu os sindicatos. Foi companheira, foi amiga e leal ao marido o tempo todo".
3) "O mérito mais relevante de nossa ex-primeira-dama: a brasilidade (...) Obras de costureiros nossos, nomes brasileiros, sem os abstracionismos fashion de quem gosta de copiar a moda estrangeira. Eram os coletes de crochê, os bordados artesanais, as rendas nossas de cada dia".
4) "De família de agricultores italianos imigrantes (...) Marisa até os cinco de idade viveu num sítio com os dez irmãos (...) na periferia de São Bernardo do Campo (...) Foram tão imigrantes quanto os Matarazzo e outros tantos, que ajudaram a construir o Brasil".
5) "Foi amável e cordial com todos que dela se aproximaram. Não há um único relato de episódio de arrogância ou desfeita feita por ela a alguém, como primeira-dama do País".
O marido de Dona Marisa (por que não?) comprovou que liderança política não tem classe. A presidenta Dilma Rousseff está com a responsabilidade de demonstrar que essa também não é uma questão de gênero. Os modos de Dona Marisa são uma prova de que para ter importância nos processos de transformação não é preciso abdicar de si, querer ser o outro ou se deixar tragar pela pressão sistemática dos incomodados.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Pelo prazer da aventura - Diário do Nordeste - 6/1/2011

Augusto Rocha optou pelo recorte do fascínio que pode haver no cotidiano de uma longa viagem (...) Em "Eu vou no bombo", o autor faz-se também personagem, ao traçar engraçadas caricaturas de si mesmo.

A publicação de relatos de viagens vem ganhando expressão nas prateleiras das livrarias. Encontra-se de tudo: jornadas familiares a lugares inóspitos, narrativas solitárias por regiões inexploradas, momentos de inusitadas descobertas culturais, registros de passeios encantadores e aventuras ecoturísticas. Enfim, experiências de deslocamentos a pé, em veleiros, carros, bicicletas, motos e aviões, por motivos profissionais, diletantes, recreativos e de superação de limites pessoais.

O livro "Eu vou no bombo - apontamentos de um motonauta", de Augusto Rocha (Relevo, 2010), lançado no último dia 26 de dezembro, por ocasião das comemorações dos 293 anos de emancipação do município piauiense de Oeiras, traz uma divertida aventura focada no enredo de um oieirense radicado em Fortaleza, que resolveu com espírito prático e positivo ir de moto a Ushuaia, no extremo sul da América do Sul, em um trajeto de cerca de 22 mil quilômetros, ida e volta.

Em tom pessoal, o autor descreve toda a preparação para a viagem e tudo o que surgiu de bom e ruim pelo caminho. Ser e indivíduo comungam de um mesmo fim, que é fazer a aventura em si. Essa é uma distinção do livro de Augusto Rocha, que poupa o leitor de proselitismos espirituais, com pensamentos, ensinamentos e lições, embora sua precisão narrativa dê muitas vezes a sensação de que faltam mais enxertos de referências culturais.

Augusto Rocha optou pelo recorte do fascínio que pode haver no cotidiano de uma longa viagem. Evitou degringolar para o mito da solidão, ao sair logo de partida acompanhado, ou melhor, acompanhando o amigo Everardo Luz, o Verô, que já havia trilhado o mesmo percurso.

É interessante observar como Verô não interfere na viagem interna do autor. Ele aparece nas crônicas como um personagem elevado ao plano da admiração, que está sempre rodando à frente, observado em sua trajetória e comportamento quase sempre irreparáveis.

"Meu comparte é um verdadeiro motociclista na acepção plena da palavra. Disciplinado, tenaz, é capaz de pilotar horas a fio, sem demonstrar cansaço ou impaciência (...) Reparo o cuidado que tem a cada abastecimento (...) jamais negligencia a lubrificação da corrente (...) verifica o estado do óleo do motor" (p. 139). Além dessa figura de guia exemplar, ele entra no relato em casos especiais, como nos instantes de recordação da viagem que fez anteriormente com outro motociclista, chamado Domingos Damasceno.

Domingos é o presidente honorário do moto clube "Companheiros do Asfalto", que havia feito essa viagem a Ushuaia com Verô. Na história contada por Augusto Rocha ele aparece como um terceiro companheiro da viagem, como o amigo que foi, mesmo tendo ficado.

Várias paradas e fotos são feitas durante a viagem com o intuito claro de levar a imagem para o Domingos conferir, na volta a Oeiras. Ao avistar a placa anunciando a chegada a Ushuaia, o autor sentencia a si mesmo:"Se eu não tirar um foto aqui, o Domingos não me perdoa" (p. 164). Esse misto de satisfação e cobrança aparece pontualmente ao longo do texto.

As fotos, os lugares, não parecem tão importantes para Augusto Rocha quanto as mudanças no tempo, os problemas mecânicos, os acidentes na estrada, a tensão do abastecimento em estradas de poucos postos, os riscos das lombadas sem sinalização, o gelo fino escorregadio, a pavimentação marcada por pedras miúdas, as dúvidas, os medos e os fortes e constantes ventos patagônicos.

Dentre as poucas exceções, está a foto da Mão do Deserto, em Antofagasta. "A visão insólita, uma mão enorme de concreto, espalmada, surgindo de dentro da areia do deserto. Está sozinha, no meio do mundo, longe de tudo e perto de lugar algum" (p. 101).

A imagem emblemática está entre os seus troféus de viagem, como o relato do dia em que ele perdeu a chave da moto nas areias do deserto de Atacama e uma mulher a encontrou. É que o metabolismo aventureiro de Augusto Rocha é cheio de ponderações bem particulares.

"Não posso, nem tampouco pretendo, vencer meus medos. Se assim o fizesse poderia pôr em risco minha sobrevivência, mas é possível conviver com eles sem me deixar subjugar" (p. 107), escreve após lembrar-se da frase gravada no Brasão das Armas do Estado do Piauí ("O corajoso não teme as desgraças"), como ato heroico nos momentos difíceis.

Em "Eu vou no bombo", o autor faz-se também personagem, ao traçar engraçadas caricaturas de si mesmo. Embora filho de Oeiras, a capital cultural do Piauí, Augusto Rocha sente-se adotado por Fortaleza, onde fez Economia na UFC, trabalha como Auditor Fiscal, mora com a família e é confundido com cearense por ter, digamos, uma cabeça avantajada: "Acho que reconheceu meu sotaque ou reparou no tamanho da minha cabeça" (p. 71), denota ao ser abordado por uma garçonete no interior de São Paulo. "Minha cabeça enorme tornou a criar problemas, nenhum capacete era suficientemente grande para mim" (p. 119), relata em sua frustrada escalada ao vulcão Villa Rica.

Pelo que dá a entender, não há modelagem conceitual do autor nessa questão. Ele é assim mesmo. Que o diga o bom humor com que conta da dificuldade de argentinos e chilenos de entenderem o seu sofrido portunhol: "Buenas noches! Ustedes sabe adonde posso encontrar um hotel?" (p. 81).

Tiradas como essa aparecem naturalmente ao longo das páginas de "Eu vou no bombo". Em um determinado momento ele compara o cheiro nada agradável do seu corpo, ao tirar a jaqueta depois de um longo trecho sem tomar banho, com o fedor de quem tira o gesso depois de alguns dias imobilizado.

Há sempre uma associação lúdica no "pensamento alto" de Augusto Rocha. Quando ele jogar bola de neve em personagens imaginários, afirma que está "lembrando as guerras de neve que conhecia dos desenhos animados" (p. 119). Ao se deparar com situações de mochileiros, recorda do tempo em que, estudante, tentou se aventurar de mochila nas costas e "terminou em grande fiasco minha aventura como carona" (p. 100). Diante da demora em atravessar um longo túnel, faz o cruzamento de sensações claustrofóbicas. "Comecei a ficar agoniado. Certa vez fiz uma ressonância magnética (...) não resisti e enfiei com ânsia o dedo no biloto do bastão" (p. 110 e 111).

A narrativa de "Eu vou no bombo" tem essa característica de recriação, o que provavelmente reforçou o desejo do autor de compartilhar sua aventura. Tanto que depois de chegar a Ushuaia, tratou logo de pedir ao Verô que traçasse o caminho mais curto para chegar o mais rápido possível ao Brasil: "Nada de fotos, nada de parar" (p. 177).

Ao retornar, porém, notou que todo mundo queria saber como tinha sido a viagem ao "Fin del Mundo", mas no fundo ninguém parava para ouvir. A saída foi fazer um livro como uma forma de contar sem ser interrompido, sobretudo por aqueles que sempre procuravam narrar uma história parecida de alguma aventura realizada antes da dele.

O título do livro de Augusto Rocha é bem oreiense. Ele conta que certa vez o velho Tomáz, tocador de bumbo na banda da cidade, brincou com Péricles Portela, que era conhecido por carregar a cruz nos enterros. Tomáz teria brincado com Péricles, dizendo que quando este morresse, ele cuidaria de levar a sua cruz. No que Péricles respondeu de pronto: "Pois eu vou no bombo!".

O autor explica que a expressão passou a significar popularmente "a vontade intempestiva de fazer algo". Explica também que no finalzinho da viagem, após receber uma resposta afirmativa à pergunta se o amigo Verô voltaria a Ushuaia, replicou com convicção: "Pois eu vou no bombo!".

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ana de Hollanda e o Direito Autoral - Diário do Nordeste - 30/12/2010


A perversão do perfil de negócio no meio musical não é coisa nova. Muitas bandas foram transformadas em marcas de festas, cujos proprietários passaram a alterar seus integrantes conforme demanda

A cantora e atriz Ana de Hollanda, ministra da cultura nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, vai rever o projeto que altera a Lei 9610/98, que regula os direitos autorais no Brasil. Ela tem declarado que é a favor da flexibilização do uso de obras autorais, mas não concorda que os autores sejam desapropriados, como querem as corporações do novo mercado de conteúdos.

Desde 2005 que o Ministério da Cultura (MinC) vem mexendo com esse assunto e não consegue chegar a um texto ideal. A dificuldade toda é que o debate partiu de uma fundamentação ambígua: o discurso defendia a democratização da cultura, quando na prática o que estava em jogo era o conflito entre o velho e o novo sistema comercial de produtos e serviços culturais.

O MinC iniciou as consultas públicas para a reforma da lei, impondo a gestão de licenciamento de música por meio de "creative commons", desconstruindo o sentido de autoria, antes mesmo do estabelecimento de um marco legal para o uso da internet. Abraçou o novo modelo de copyright (direito de cópia) estadunidense, disseminado desde 2002 por essa organização "laranja", chamada Creative Commons, voltada para os interesses do mercado de computadores, softwares, telefones, buscadores e provedores de acesso à Internet.

Como os conteúdos passaram a ser bens muito valiosos na nova economia, o que seria um segundo movimento da globalização econômica - o primeiro foi a ampliação da escala produtiva mundial com o aproveitamento da mão-de-obra barata dos países subdesenvolvidos - criou esse artifício para induzir, por constrangimento social ou por obrigatoriedade compulsória, os autores a renunciarem publicamente no todo ou em parte, seus direitos conferidos por lei e pactuados em convenções internacionais.

Com dois pesos e duas medidas, ficou impraticável que governo, mercado e sociedade chegassem a um consenso. Para saquear de forma acintosa um patrimônio que pertence aos criadores, as corporações do mercado digital se infiltraram nos órgãos de cultura, com uma retórica de criação de riqueza para todos, mas trabalhando a redução do caráter estético, vinculado ao autor, a uma função utilitária da obra de arte ou literária, associada especificamente ao direito comercial.

Na Convenção da Diversidade Cultural, realizada pelas Nações Unidas (2005) os "especialistas da economia criativa" foram orientados a valorizar o patrimônio simbólico como forma de beneficiar a livre concorrência. Em nome da "função social da propriedade intelectual", os autores deveriam deixar de ser gananciosos e abrir mão do recebimento pelo seu trabalho de criação, para que as corporações (que vendem conteúdos financiados por publicidade e cessão de cadastros de usuários) pudessem promover a globalização econômica e social da cultura.

Essa vulgata incorporada pelo MinC passou a fomentar uma indisposição dos usuários de cultura contra o Direito Autoral, inclusive com editais modelados em situações causadoras da impressão de que os autores estão atrapalhando a socialização do conhecimento, dos saberes e das obras criativas da humanidade. É quase inacreditável que o mesmo ministério que criou programas de tanta grandeza como os Pontos de Cultura tenha entrado na onda da mediocrização da condição humana, típica de um modelo de sociedade instrumental, inspirado na supremacia técnica.

A perversão do perfil de negócio no meio musical não é coisa nova. Muitas bandas foram transformadas em marcas de festas, cujos proprietários passaram a alterar seus integrantes conforme demanda, podendo fazer inclusive apresentações simultâneas em diferentes lugares. Lembro-me de uma entrevista que fizemos em 29/05/2007 com o Emanoel Gurgel, dono da banda Mastruz com Leite, na qual ele afirmava com rara sinceridade empresarial que o CD tinha virado apenas cartão de visita.

"Quanto mais músicas eu espalhar, mas tenho como levar as pessoas para dançar os sucessos na festa. A festa é o negócio. Descobri isso há 15 anos. O segredo para mim é não ter intermediário" (PINHEIRO, Andréa e PAIVA, Flávio, in: Na trilha do disco - relatos sobre a indústria fonográfica no Brasil, E-papers, Rio de Janeiro, 2010).

A despeito de não concordar com a maneira como essa nova configuração de negócio passou a explorar os artistas, vejo com mais simpatia declarações claras como essa do Emanoel Gurgel do que o discurso atravessado e nebuloso do MinC. Mesmo assim, diante de tudo que ocorreu, acho que o resultado da proposta de alteração da lei brasileira até que está bem próxima do possível. É natural que a adequação das leis de direitos autorais aos novos padrões tecnológicos e de comportamento precise de algumas flexibilidades, como admite a ministra Ana de Hollanda.

Referindo-se ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), a ministra adianta que não vê sentido subordinar uma entidade de classe ao poder executivo, como pretende o anteprojeto. Entretanto, algo precisa ser feito porque do mesmo jeito que os autores não merecem ser planificados pelo rolo compressor das multinacionais do mercado de conteúdos, é inaceitável que os compositores fiquem à mercê do cartel do ECAD, montado em um sistema de excelência tecnológica e policialesca para arrecadar, mas cheio de corpo mole e de "deficiência prática" na hora de distribuir.

Ana de Hollanda, na condição de filha de Sérgio Buarque, irmã de Chico e senhora de uma consistente experiência como artista e gestora cultural, sabe muito bem o tanto que o Brasil precisa contar com a cultura para poder entrar de fato no mercado da economia criativa. Deixando seus compositores à míngua, o País, um dos mais férteis do mundo em inventividade musical, somente reforçará a concentração do mercado fonográfico mundial, 80% dominado pela Alemanha, Estados Unidos, Holanda e Áustria. Na balança comercial o déficit brasileiro é de aproximadamente um bilhão de reais na área cultural.

A determinação de que vai rever a proposta de reformulação da Lei de Direitos Autorais é um sinal de que Ana de Hollanda está disposta a uma ação sociocultural e política do Estado, diante desse controle da cultura pelo mercado. Na entrevista coletiva que concedeu à imprensa no dia 22 passado, na sede do BNDES, no Rio de Janeiro, ela destacou que pretende aproximar a cultura da educação. No campo da música, por exemplo, isso será formidável, considerando que o até o mês de agosto de 2011 as escolas brasileiras oferecerão obrigatoriamente o ensino da música na Educação Básica.

Um ponto que merece ser revisto na questão do Direito Autoral é o imbróglio que foi feito entre Propriedade Intelectual, como produção funcional, e Direito de Autor, enquanto criação artística e literária. Esse é o calcanhar de aquiles nesse debate. É muito vulnerável a compreensão do que distingue uma obra que não depende necessariamente do mercado para cumprir a sua função social ou existencial e a criação de um novo "software", do "design" de um carro e de um "jingle", que têm em comum um sentido funcional, quer seja produzido de forma independente ou sob contrato de trabalho.

Em linhas gerais, o desafio que a ministra Ana de Hollanda coloca para a sua gestão, no que diz respeito a Direito Autoral, passa por um aperfeiçoamento dos resultados dos esforços controversos que o MinC vem fazendo em favor da economia e do acesso democrático à cultura.

Nesses cinco anos de estica e puxa, fiz várias reflexões sobre esse assunto, parte delas expostas novamente aqui. Para mim, o que deveria orientar essa discussão seria o princípio de que todo produto e todo serviço protegido por esses direitos deveriam ser liberados para cópia e compartilhamento, exceto se utilizados para fins comerciais, institucionais e políticos, com a devida remuneração dos autores.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A marca autoral do consumidor - Diário do Nordeste - 23/12/2010

A grande revolução no consumo seria, nessa hipótese, a união da criatividade com o conforto (...) As políticas de banda larga deveriam antes de tudo serem fundamentadas em razões culturais

Dezembro de 2010. A economia mundial continua sob os efeitos cambaleantes da quebra do sistema hipotecário estadunidense que levou a colapso o mercado financeiro em 2008. No Brasil, a situação desvia-se da regra, em consequência da combinação de fatores como renda maior, desemprego menor, ampliação da base de consumidores, aumento de crédito e a queda no preço dos importados, provocada pela desvalorização do real na guerra do câmbio.

Em 2008, pouco antes da crise, um estudo da agência norte-americana Young & Rubican traçava o perfil do que os consumidores tinham em comum, independente de classe social, gênero, poder aquisitivo, faixa etária e referências culturais. Com variação de predominância por região, os tipos resumiam-se entre: a) fieis a marcas tradicionais, b) ostentadores do status de consumidor; c) compradores comedidos; d) novidadeiros; e) politicamente corretos; f) avessos a inovações; e g) voltados para preços e gratificação instantânea.

No mesmo ano de 2008, as principais megatendências de estilo de consumo, projetadas pela Future Concept Lab, empresa italiana de pesquisa social e de mercado, apontavam para: a) a gratuidade da experiência compartilhada; b) o gosto autêntico como impulsionador de compra; c) a atração pelas linguagens lúdicas; d) a regeneração dos estilos do passado; e) a circunstância como resposta às paixões; f) a qualidade do tempo e do espaço como variável do desejo.

As duas prospecções oferecem um panorama bem razoável das características do consumidor contemporâneo. Francesco Morace, presidente da FCL chegou a organizar um livro, intitulado "Consumo Autoral - as gerações como empresas criativas" (Estação das Letras e das Cores, SP, 2009), no qual tenta mostrar a unicidade existente em fenômenos aparentemente distintos. Neste aspecto, ele descola o consumidor que é ao mesmo tempo autor e ator de suas próprias escolhas de consumo, daquele sobre o qual ainda prevalece a influência das marcas e da publicidade.

Achei formidável esse conceito de o consumidor ter uma marca autoral. O que o meu pensamento passa à margem da tese de Morace é quanto aos motivos que podem levar as pessoas a essa condição de autonomia nas decisões de compra. Ele acredita que florescerá da cultura colaborativa, fomentada pela nova economia, um novo consumidor que considerará as marcas e os produtos seus companheiros de vida. Particularmente entendo que parte da sociedade caminha para o consumo autoral, mas como expressão consciente do que tenho chamado de social-ambientalismo participativo.

Os colaboradores de Francesco Morace entendem que para esse consumidor autor desabrochar faz-se necessário repensar, recriar e redesenhar o mercado, de forma a contemplar o sentido de inovação existente na experiência do consumidor. Acreditam que os bens de criatividade já são uma prioridade para muitos indivíduos. Entenda-se aí como bem de criatividade, os relacionais, os culturais, enfim, os de longo prazo; diferentes, portanto dos bens de conforto, voltados para estímulos imediatos, de curto prazo.

A grande revolução no consumo seria, nessa hipótese, a união da criatividade com o conforto. O uso da rede mundial de computadores e das tecnologias digitais por comunidades colaborativas para o desenvolvimento de projetos comuns seria uma maneira de chegar a uma visão neorrenascentista das profissões, do consumo e do mercado. Algo como uma retomada dos valores humanos, pelo abandono da velha lógica de uma globalização surda a qualquer diferença.

No novo mundo do consumo autoral, as pessoas exercitariam a capacidade de escolher, de interpretar, combinar livremente serviços, produtos e estéticas porque teriam seus genius loci respeitados e uma coerência experiencial de serem consumidores de produtos e serviços dos quais têm participação como protagonistas criativos. Não sei não, essa vulgata me parece mais uma justificativa para a socialização de produtividade, em favor de uma nova mais valia.

O estudo da Future Concept Lab insiste em avisar que a nova economia teria revolucionado os valores essenciais da existência, alterando assim a racionalidade que tem guiado o comportamento dos indivíduos no mundo do consumo. O consumidor autoral, urdido por novos modelos de pensamento coletivizado, estaria com seu campo estético mais alargado e poderia assumir o papel antes atribuído ao crítico. Isso o faria ter uma inteligência de escolha orientada por sua própria sensibilidade.

Como cogitação do processo dialético esses argumentos são atraentes e me parecem necessários ao avanço das urgentes discussões relativas ao consumo. Afinal, a ideologia do consumismo vigente nos faz devorar ¼ a mais do que as condições de reposição da natureza. Mas, sinceramente, não espero consciência de consumo advinda desse novo processo de exploração do capitalismo. As infovias estão controladas por novos sistemas de captura de lucros em tempo real e à base de seguidores que interagem enquanto compram e ajudam a vender.

A intensificação da convergência pela busca dos mesmos eletroeletrônicos de tecnologia mais avançada, tipo tevê de tela plana, celulares e netbooks, é uma prova de que há uma forte onda dirigindo os impulsos de consumo. Tudo isso pode, sim, estar sendo construído de forma colaborativa. Quer dizer: independentemente de quem sejam, de como e onde vivam ou de suas condições culturais, ao serem assimilados como seguidos ou seguidores, os usuários assumem uma sintonia coletiva, capaz de torná-los marqueteiros sem causa.

O que seria consumo autoral nesses casos acontece em um brete comercial de pouca graça. Explico melhor: você pode escolher um aparelho celular que dance tango e que fotografe no escuro. Faça o que quiser, escolha o que quiser, desde que compre um novo celular. Isso me parece com a variante da teoria dos jogos que leva um participante a tomar uma determinada decisão por considerar que os outros estão se comportando do mesmo jeito.

Para mim, a tendência a um autêntico consumo autoral somente será confirmada no dia que deixarmos de pensar na popularização do acesso ao mundo das redes digitais por motivos prioritariamente econômicos. As políticas de banda larga deveriam antes de tudo serem fundamentadas em razões culturais. Encaradas assim, ter um computador deixaria de ser uma estatística de inclusão para ser uma inclusão no debate do que fazer com ele. O consumo autoral deve estar além da noção de serviços ou produtos, cujos pressupostos ainda são pouco claros em uma sociedade modelada por impulsos consumistas.

A internet produziu uma excelente inflexão em nossos parâmetros de consumo, tanto na pesquisa de preços quanto nas opções de compra e no exercício dos direitos do consumidor. Espalhar na rede experiências de compra, principalmente quando negativas, tem sido comum, até como desabafo, catarse, demonstração do novo poder de afirmação e de negação da parte do consumidor. Isso não significa, todavia, que estejamos inclinados a deixar de lado a economia de consumo para voltarmos a uma economia de produção.

Esteja no perfil sistematizado pela Young & Rubican ou dentro das megatendências projetadas pela Future Concept Lab, a marca autoral do consumidor é um tema empolgante e necessário. A reversão do quadro de degradação do planeta está diretamente associada à nossa tomada de consciência no que diz respeito à sustentabilidade. Isso, sim, pode nos levar definitivamente a assinar nossas escolhas.