quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Samba do Criolo safo - 23/08/2012

Foi mais de um ano de espera para ver uma apresentação do Criolo em Fortaleza, depois que passei a ouvir com frequência e admiração o seu disco "Nó na orelha" (Matilha, 2011). Fico imaginando o quanto não foi demorado para ele só poder se apresentar na terra dos seus pais, depois de mais de duas décadas de atuação como artista de rap. Fato injustificável à parte, quem foi assistir ao show "Na batida do Criolo", na sexta-feira passada (17), na Guarderia Brasil, Praia do Futuro, viu que a espera não foi em vão.

Criolo naturaliza o rap como fator cultural no Brasil, inserindo-o no campo da música plural brasileira pelo sentido de pertencimento, sem perder as características que o universalizaram como estética dos apartados, marcada por batidas de refrão e embolada-urbana, que desconsertam (com "s") e concertam (com "c") expectativas de ritmo e narrativa de uma sociedade positivamente mestiça e negativamente desigual. Criolo é fruto dessa trama da mistura na sua diversidade singular; é filho do Brasil real.

O CD "Nó na orelha" representa a materialização do processo de amadurecimento antropofágico do rap brasileiro; a música como plataforma ética e poética da adversidade, seus aspectos psicológicos e filosóficos, pela força do significado da palavra e não pela agressividade da entonação. Criolo conseguiu essa reversão sem somatizações ou atitudes antissociais. Em seu trabalho, a arte se pronuncia em um campo de significados de atitudes, a partir do seu núcleo crítico comunitário e da sua memória cultural. Ele foi a letra "C" do abecedário da música plural brasileira que publiquei neste Diário (8/3/2012), como síntese das trilhas sonoras do meu cotidiano.

A propósito, as músicas do filho do casal Cleon e Vilani têm sido intensamente escutadas na nossa casa também pelos nossos filhos. Tanto que, mesmo a apresentação tendo sido bem tarde da noite, fomos todos, levando máquina fotográfica e a capa do disco para ser autografada. Valeu a pena. No palco, vimos um artista sensível, com sua dança de corpo jogado em gestos firmes e amorosos; um jeito especial de interpretar o mundo e de se ver dentro dele. No camarim, vimos de perto a grandeza da sua humildade, ora com o espanto de um passarinho que percebe ser observado e, ora, abraçando os manos com a graça de quem está transmitindo a segurança de que essa pegada tem valor.
A denúncia na arte de Criolo veste-se da vontade de embelezar o mundo. Tem estética poderosa, narrativa sincera. Quando ele tem coragem de falar no palco que usar drogas é uma roubada está dizendo que não tem receio de patrulhamento. No bolero "Freguês da meia noite" conta a história de um usuário de drogas que espera "a confeiteira e seus doces" para comprar "furta-cor de prazer", mas depois de conseguir meditar decide que "Dessa vez não serei seu freguês". E no rap misto de maracatu, "Sucrilhos", passa nova mensagem: "Cocaína desgraça a vida de um bom rapaz". Ele sabe que é na favela que essa história repercute de forma mais trágica e sabe que nada pode ser mais careta hoje do que fazer parte dos financiadores da violência por meio do consumo de drogas.

Criolo outorga à juventude uma perspectiva mais digna e oferece seu som, sua voz, sua poesia em nome de um outro olhar, de outro estilo de vida menos consumista, menos mentiroso. Com isso, ele dá um chega para lá na desesperança e na fantasmagoria daqueles que insistem em perturbar a juventude, para se aproveitarem do seu coração utópico. Não tem essa de vida paralela para quem chegou ao mundo com tantas limitações sociais e econômicas. Como dizia o Henfil, ele tem mãe e quem tem mãe não tem medo. E tem pai, amigos, uma relação familiar e uma vida comunitária modesta, mas intensa.

Deixa claro na letra do afrobeat-funkeado, "Bogotá" que desde pequeno sabe o que é "brincar no precipício", que aprendeu que "quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto, fique atento, irmão". O grito de indignação de Criolo é macio, porque ele tem a compreensão de que "cada um sabe o preço do papel que tem", e profundo, para poder encarar as frustrações da insanidade do egoísmo social com poesia e bombardear a desigualdade com valores. Sabe da "força do verso" e da "rima que espanca", como rasga no rap "Mariô", parceria com Kiko Dinucci, letra que faz coro com a "Roda Viva" de Chico Buarque no esforço de ir contra a corrente.

Esse recurso de metacanção aparece bem utilizado também no rap "Sucrilhos", como uma caricatura vigorosa da canção "Índio", de Caetano Veloso: "Cartola virá que eu vi / tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali / cantar rap nunca foi pra homem fraco". Como o "abraço pra ti / pequenina" que Caetano dá em "Terra", aludindo ao baião "Paraíba", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Criolo canta o orgulho da cor, do cabelo, do nariz e a felicidade de ser "índio, caboclo, cafuso, crioulo", de ser brasileiro; o que Caetano vaticinara em seus versos: "Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante (...) em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro / em sombra, em luz, em som magnífico".
Criolo tem luz própria, mas nem por isso quer clarear sozinho. É um poeta, um MC, com ideais de juventude e uma narrativa voltada ao que chamo de "cidadania orgânica". Atento às motivações da espiritualidade - apresentou-se com vestes brancas de candomblé - e foi além dessas fronteiras, como no soul-canção "Não existe amor em SP", no qual afirma que "Não precisa morrer pra ver Deus / Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você". Criolo não é gueto, Criolo é Mandela, Gandhi..., alguém aberto às vozes que combatem desigualdades e injustiças. Sua poética vocal tem um "criolês" de pregação de paz, direitos iguais e orgulho dos ancestrais e pede para que ninguém baixe a guarda porque "a luta ainda não acabou", conforme convoca no reggae "Samba Sambei".

"Grajauex" é um rap de ilustração com imagens faladas do "x" da questão: "Duas laje é triplex / No morro os moleques (...) o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex / Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max / Os canela cinzenta que não tem nem cotonets (...) Os irmão que tão com fome desce três marmitex / Sabão de coco não é Pompom com Protex / E se jogo do bicho é contravenção, Mega Sena é ilusão pra colar com durex (...) Atrás de um verdix pra mandar por Sedex / Zona sul é o universo e os vagabundo é belezex"... Um dialeto de sons do inconsciente, como diria Nise da Silveira.

O trabalho do Criolo recicla, reutiliza e reprocessa aspectos culturais que, segundo Tom Zé, caíram do córtex (zona mais rica e sofisticada de processamento dos neurônios) para o hipotálamo; deslocamento que ele inventou de chamar de "lixo lógico" (Revista Bravo! nº 179, p. 24, São Paulo, junho 2012). Tom Zé explica que o "lixo lógico" é tudo aquilo que vai ficando de lado porque não parece inteligente de ser utilizado, como ideia de valor social e cultural. Esse conceito aplica-se bem ao trabalho de Criolo. Nele o rapper resgata e dinamiza o aprendizado das suas raízes da música plural brasileira e a herança nordestina, combinando tudo com o rap estadunidense, devolvendo o "lixo lógico" ao córtex, produzindo originalidade, gerando o novo.

Por não ser um instrumentista, ele compõe como Patativa do Assaré, João do Vale e Dona Ivone Lara compuseram, o que facilita para que sua música seja um ato de liberdade de um saber oral e de uma compreensão de mundo que ecoa compaixão, aflora identificações e suscita reflexões, contribuindo para alargar a percepção de quem o escuta. Nesse samba do Criolo safo, o "samba" é uma velha festa da cearensidade e o "safo" uma mistura de espírito descolado com talento recitativo de Safo, a emblemática poeta grega do século VII, abrigados na paródia de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), que ironizava a pressão em cima dos sambistas para fazerem enredos com fatos históricos.

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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Na Dinamarca de Andersen e da Lego – 16/08/2012



Fui com a minha família à Dinamarca com a intenção de celebrar a infância dos nossos filhos, o Lucas com 13 anos e o Artur com 11. Queríamos vivenciar com eles um lugar com reconhecida experiência de civilidade e que essa experiência tivesse base no lúdico, como essência do humano. Assim, fizemos de carro alugado um corte horizontal de leste a oeste no mapa dinamarquês, cruzando cenários maravilhosos, numa viagem que durou do dia 30 de julho ao dia seis deste mês de agosto, nas três principais regiões do país: as ilhas de Sjaelland e Fyn e a península de Jutlândia.

Embora tenhamos feito paradas rápidas em lugares como Roskilde, para conhecer a cidade do rock, ver o museu de barcos vikings (Vikingskibhallen), com embarcações dos séculos X e XI, e visitar a catedral gótica de tijolinhos vermelhos, onde estão enterrados os reis e as rainhas da Dinamarca desde a Idade Média, nos concentramos na capital Copenhagen (Sjaelland), em Odense (Fyn), a cidade natal do escritor Hans Christian Andersen (1805 - 1875), e em Billund (Jutlândia), onde nasceu a indústria da Lego e onde está localizada a sua fábrica sede, o hotel e o parque Legoland.

Copenhagen é uma cidade na qual dá gosto pedalar. As ciclovias têm paralelepípedo duplo, com separação da calçada de pedestres e da via de automóveis. Circulamos de bicicleta por quase toda a cidade, desde a estátua da Pequena Sereia, em um canal de mar (Langelinje) até o bairro Nørrebro, onde fica o cemitério em que está sepultado o corpo de Andersen, passando por Nyhaun, antigo porto transformado em área de turismo, com restaurantes e saídas para passeios de barco, onde Andersen morou durante vários períodos de sua vida, inclusive quando se mudou para a capital com 14 anos.

É uma cidade muito bonita, agradável, movimentada, com uma arquitetura espetacular, na qual se destacam prédios como o "diamento negro" da Biblioteca Real (Kongelige Bibliotek) e a Casa da Ópera (Operaen). O respeito às áreas públicas é uma marca que se soma ao seu caráter de importante centro urbano, com pouco mais de meio milhão de habitantes (próximo de dois milhões na região metropolitana). Nela, é comum a presença de lojas da Lego e de espaços com a figura e a obra de Andersen. Bem em frente ao Tivoli, um dos parques temáticos mais antigos do mundo, há uma grande estátua do escritor. Encontramos crianças brincando com lego até na visita que fizemos à reserva Christiania, uma antiga área militar de 30 hectares, ocupada pelos hippies em 1971, que tem autonomia econômica, regras próprias.

Na estrada de Copenhagen para Odense passamos por duas pontes, uma delas (Storebæltsbroen) com 18 quilômetros de extensão, com torres de energia eólica construídas dentro do mar. Odense é a terceira maior cidade da Dinamarca. Seu nome é uma homenagem a Odin, um dos principais deuses da mitologia nórdica, o pai do poderoso Thor. O dia estava chuvoso e chegamos a cidade contemplados por um belo arco-íris, como se entrássemos no temperamento poético de um conto de Andersen. Adoramos a cidade, sobretudo a Casa de Andersen (H. C. Andersens Hus), o museu, o lago e a grama que a circunda, onde assistimos um teatro de histórias do célebre autor.

Andersen conseguiu com sua ampla e consistente obra entrar para a galeria dos escritores mais importantes de todos os tempos. Autor de 156 contos que se tornaram clássicos por encantar crianças e adultos e que foram traduzidos em 160 idiomas diferentes, dentre eles, A Pequena Sereia, O Soldadinho de Chumbo, O Patinho Feio, O Pequeno Polegar, O Rouxinol do Imperador. Vimos em sua casa-museu, que ele escreveu 14 novelas, uma 50 obras dramáticas, cerca de mil poemas, além de biografias (inclusive a autobiografia O conto da minha vida), artigos e pequenas peças humorísticas.

O museu de Andersen foi inaugurado em 1908, na casa em que o escritor nasceu. Em mais de um século passou por muitas ampliações e hoje é um lugar com espaço de referência cultural e turística da Dinamarca. Andersen viveu sua infância naquela casa em uma época em que o rei era a lei, quando a maioria dos dinamarqueses era pobre e analfabeta, numa Europa sofrida pelos efeitos das guerras. Ele enfrentou tudo isso produzindo uma literatura de desconstrução do materialismo, com humor poético e caricatural, em favor dos mais humildes, dos mais humilhados e mais injustiçados.

Como pessoa, pode-se dizer que ele foi o próprio patinho feio, aquele personagem que um dia descobriu ser um lindo cisne, depois de amargar o preconceito resultante da circunstância de ter sido chocado por uma pata. Andersen era grandão (tinha 1,85m), nariz enorme, olhos fundos e papudos, totalmente fora dos ideais de beleza tradicionais. Mas com o êxito internacional da sua obra, foi convidado para almoçar com o rei da Dinamarca, com a rainha da Inglaterra e a ser paparicado pela nobreza européia, passando a ser visto de perto, com seu verdadeiro rosto, cheio de vida, de olhar sem malícia, e com sua figura altiva e elegante.

De Odense, na ilha de Fyn, tocamos o carro para a península de Jutlândia, onde fica Billund, a cidade onde foi fundada e onde está a sede da Lego, a mais admirável indústria de brinquedos do mundo. A Lego é uma empresa símbolo do respeito à criança, da inovação e da capacidade de se reinventar. No jogo da competição tem feito alianças com outras organizações e marcas respeitáveis, como a Toyota (em atividades no parque), a Nitendo (no desenvolvimento de robôs) e com o diretor George Lucas, na transformação em brinquedo dos temas e personagens da série Star Wars.

Os brinquedos da Lego inspiram as crianças, tornando-se universais por falar a linguagem da infância, que é o brincar e a brincadeira. Mesmo utilizando antigos bloquinhos de construção não são brinquedos do passado; mas brinquedos para a criança que vem de longe em cada um de nós e que tem no passado um valor a agregar ao presente. Essa filosofia é visível também no arborizado parque Legoland, onde tudo é integrado e espaçoso, com o funcionamento das cidades em miniatura, das ofertas de diversão e suas montanhas-russas. No meio de tudo, uma estátua de Andersen com um livro e uma criança, em um banco de praça, onde sentamos para fazer fotos.

A hospedagem no hotel Legoland deixa a meninada enlouquecida. As instalações são temáticas e há uma ponte de acesso direto ao parque. O hotel é todo pensado para a infância, com áreas de jogos, panelões cheios de peças de lego para montagem a qualquer hora, zonas de videogames de lego e decoração com temas dos brinquedos. Tudo bem harmonizado com obras de arte. É impressionante o cuidado com os detalhes. No restaurante, os alimentos estão ao alcance das crianças em mesas baixinhas facilmente acessíveis.

Essa história toda começou em 1916, quando Ole Kirk Kristiansen, o fundador da Lego, comprou uma oficina de construção de casas e móveis de madeira e colocou na parede a seguinte frase: "Só o melhor é suficiente". Queria que os funcionários não esquecessem nunca a importância da qualidade no que faziam. E ainda hoje esta é a mensagem motivadora da Lego. Digo isso porque temos em casa vários brinquedos com muitas e variadas peças e nunca tivemos que reclamar porque faltou um só bloquinho para a montagem do que está prometido na embalagem.

A Lego é uma empresa familiar que já está na terceira geração. Por conta da grande depressão européia no início do século passado, em 1932 o fundador decidiu deixar de fazer casas e móveis e passou a orientar a carpintaria para a produção de brinquedos de madeira: ioiô, carrinhos, tratores, trens, aves e animais, blocos de madeira com números e letras e, inclusive, um boneco de madeira de H. C. Andersen, montado em um animal com rodinhas. Dois anos depois criou a marca Lego, a partir da expressão "LEg GOdt", que significa "brinque bem".

A segunda geração assumiu em 1954, quando a fábrica já produzia os bloquinhos de encaixe com injeção de plástico. O filho de Ole, Godtfred, organizou a filosofia da empresa em dez princípios, algo como: 1) brincar com ilimitadas possibilidades; 2) para meninas e meninos; 3) entusiasmar todas as idades; 4) para brincar o ano todo; 5) saudável e sem fazer barulho; 6) brincadeira que não se esgota; 7) imaginação, criatividade e desenvolvimento; 8) cada novo produto deve multiplicar o valor da brincadeira; 9) brinquedos contextualizados; 10) segurança e qualidade. A partir de 1979, Kjeld, neto do fundador, assume a presidência e a Lego passa a desenvolver brinquedos com linhas para faixas etárias específicas.

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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Estocolmo é tudo de bom!


Estocolmo tem oito séculos e é uma cidade que surpreende por estar à frente do nosso tempo. É uma cidade com admirável cultura urbana, na relação com o verde, no sistema integrado de transporte público e serviços de barco, no design, no lazer e até no tratamento novo que dá à sua Cidade Velha (Gamla Stan). As 14 ilhas interligadas por pontes, que formam o seu território, tornaram-se tão orgânicas ao longo do tempo que a cidade parece flutuar como se fosse formada por uma rede de folhas de plantas aquáticas.

A leste, espalha-se entre as águas do mar Báltico e, a oeste, distribui-se harmoniosamente pelas águas do lago Mälaren. Percebi bem essa relação estruturada com a água, na quinta-feira passada (26) ao fazer um passeio de barco, cruzando as pontes por baixo e passando por uma eclusa, construída para facilitar o tráfego de barcos no desnível entre as águas do mar e do lago. Mesmo já tendo circulado separadamente pelas ilhas, de dentro dos canais deu para apreciar melhor a beleza do conjunto ajardinado, com arquitetura diversificada e encantadora, as altas torres das igrejas e os balões coloridos no céu.

Durante a semana fui acumulando uma série de experiências, próprias de quem está em um lugar diferenciado em muitos e muitos aspectos. Muita água, muito verde, canais e parques, pontes e praças.

Nas ruas, a servidora pública sai do carro para aguar e cuidar das flores; de outro carro de apoio, um rapaz desce para fazer a reposição de bicicletas de aluguel; nas paradas dos trens, funcionárias uniformizadas ajudam pessoas com dificuldade de locomoção. Isso, sem contar que os transportes coletivos têm batente de acesso no mesmo nível da calçada.

Embora com placas e letreiros somente em sueco (o que vejo com bons olhos), Estocolmo é tão bem sinalizada que dá para circular sem problemas pela cidade.

Estávamos em um grupo de seis: além de mim, da Andréa e dos nossos filhos, Lucas e Artur, viajamos também com o meu sobrinho Pedro, que mora na Alemanha, e a sua namorada Vanessa, com quem vive em Colônia (Köln). Ao chegarmos no aeroporto Arlanda, adquirimos um passe para usar o sistema de transporte coletivo e somos todos testemunhas da sua eficácia. Assim, pudemos ir e vir livre e agilmente pelas ilhas da cidade. Sem contar que andamos muito à pé. É incrível caminhar pelas ruas de Estocolmo; cada quadra que se descortina tem uma composição visual diferente; cada qual a mais bela.

E o impressionante em tudo isso é que, mesmo com tanta diversidade, o lugar mantém uma formidável unidade urbanística. Há em Estocolmo uma invejável cultura de respeito ao que é comum; os transportes coletivos respeitam os automóveis, que respeitam as bicicletas, que respeitam o pedestre... e todos respeitam as normas de trânsito.

O respeito à criança também chama a atenção. Em toda a cidade há lugar para a cultura da infância, para o brincar e para a brincadeira. Alguns são prioritariamente dedicados a isso, como é o caso do Junibacken, um ambiente lúdico e literário, que tem como tema central a obra da escritora sueca Astrid Lindgren (1907 - 2002). As crianças usufruem integralmente desse espaço, entrando literalmente em uma história e saindo em outra. A viagem no trem dos contos de Lindgren é fantástica, com sua caracterização de relatos em narrativa lenta, subindo e descendo suavemente, num encontro com personagens e cenários da imaginação.

O Junibacken fica na ilha Djugarden, que é uma agradável e diversificada zona de lazer. O sentido pleno de parque aplica-se muito bem a esse lugar onde a memória e a história misturam-se ao verde na preservação da convivência comunitária sadia. Logo que descemos do trem deparamo-nos com um dos monumentos da cidade, que é o prédio do Museu da Cultura Nórdica (Nordiska Museet). São vários andares de encontro magistral com a forma de viver das tribos, sua indumentária, seu canto, enfim, com a cultura popular nórdica. Tudo com o apoio de um sistema de guia eletrônico, conduzido e controlado pelo visitante.

Não é minha intenção sair aqui descrevendo museus dessa ilha, mas não posso deixar de mencionar o Museu Vasa (Vasamuseet), pelo que ele significa para a compreensão da própria Suécia. É o museu de um barco de guerra, com 68 metros e 32 canhões de cada lado, que afundou em 1628, na ocasião da sua viagem inaugural, devido a seu peso excessivo e à sua altura desproporcional. Resgatado mais de trezentos anos depois, esse barco deixa qualquer um perplexo por ser uma joia gigante de madeira, um tesouro artístico e bélico, construído com a finalidade de ostentar o poder do rei Gustav Vasa, fundador das bases do estado nacional sueco.

A demonstração desse poder estava na força dos canhões e na qualidade artística das esculturas que adornam a embarcação, em pinturas que vão do dourado ao vermelho, passando pelo verde, amarelo, azul e violeta. O barco, que vimos em cada parte dos seus mais de cinquenta metros de altura, foi apresentado como uma máquina de guerra e uma obra de arte. Vasa iniciou seu reinado em 1523 e ao morrer, em 1560, deixou uma dinastia que durou mais de um século no poder. É uma figura emblemática, cuja síntese pode ser simbolizada nessa relíquia que leva o seu nome e que se encontra exposta desde 1990.

Das sabedorias do povo sueco, uma que também encontramos em Estocolmo está organizada no Skansen, o museu ao ar livre mais antigo do mundo (1891), com 300 hectares de área urbana. Com o início da era industrial os suecos tiveram a feliz ideia de documentar a vida da sociedade camponesa; casas, granjas, oficinas, igrejas, mercados e moinhos de vento, incluindo zoológico com animais nórdicos (ursos, alces, renas, focas etc). São mais de 150 edificações transplantadas ou construídas, que funcionam normalmente nesse espaço com "moradores" que se vestem e atuam como um testemunho vivo do seu passado.

No dia que fomos à ilha Skeppsholmen, concentramos nossa experienciação na caminhada pelo parque e na visita a dois museus. No Museu da Arquitetura (Arkitekturmuseet) vimos maquetes de diversas épocas e lugares do mundo e alguns comparativos em recortes específicos de tempo, como é o caso da arquitetura no Peru e no Cambodja, no início do segundo milênio. No Museu de Arte Moderna (Moderna Museet) curtimos salas e salas de obras instigantes, sobretudo aquelas relacionadas aos artistas participantes da mostra intitulada "Explosão", onde a pintura é tratada como ação, e a instalação "Grapefruits", de Yoko Ono, inspirada no seu livro homônimo, de desenhos e instruções para a vida e para a arte.

Estávamos cruzando a praça Real e nos deparamos com um show realizado por um movimento musical chamado "Lilith*Eve", que reúne mais de quinze compositoras e cantoras da Suécia. Pegada boa a dessa gente, inspirada na relação de Lilith e Eva com Adão, e movida a rock tradicional sueco, baladas dramáticas, pop existencial, jazz, blues, sons bem-humorados e reflexivos, poesia, música performática e canções de metrô.

O que me intriga nessa riqueza cultural e ambiental de Estocolmo é a sensação de que a cidade chegou ao futuro, com aproximadamente um milhão de habitantes, ótima gastronomia de frutos do mar, uma beleza arquitetônica impressionante e uma vida social marcada pela qualidade dos serviços públicos, em um país com território ocupado por florestas e lagos. E pensar que há menos de dois séculos a Suécia era um dos lugares considerados mais pobres da Europa. Parece que deu certo. É possível. Estocolmo é tudo de bom. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Na instabilidade da luz e da cor - 26/07/2012

 A minha agenda de trabalho em São Paulo estava pressionada na semana passada, mas na sexta-feira (20) dei um jeito de pegar um táxi e ir desfrutar por alguns momentos da experiência de investigação da potência das cores e da luz desenvolvida há cinco décadas pelo artista plástico venezuelano Carlos Cruz-Diez. As salas da Pinacoteca que abrigaram a exposição "Cor no tempo e espaço" estavam em inquietante atmosfera cromática, resultante da presença de um conjunto de cento e tantas obras a contar a trajetória conceitual e técnica do seu autor.

Cruz-Diez (1923) é um comunicador visual que nunca mediu esforços para que o seu trabalho interferisse na reflexão plástica das pessoas. Senti o efeito dessa intenção logo que retornei à rua e comecei a achar que os prédios não pareciam os mesmos que eu havia visto antes de entrar na Pinacoteca. Cada filete de alvenaria cedia ao meu olhar a autonomia da composição da cor, da luz e da sombra. De dentro do táxi em movimento era a cidade que se movimentava, sem sair do lugar.

Foi para chamar a atenção do quanto o nosso deslocamento é responsável pela existência das cores como as vemos, que ele tanto procurou demonstrar que, mais do que pigmentos aplicados a superfícies, a cor é uma circunstância derivada da ambiguidade da projeção da luz, em permanente estado de mutação. Por sua característica interativa, a obra de Carlos Cruz-Diez oferece a quem se dispõe a apreciá-la um manancial de eventos que partem da luz e da angulação do olhar para libertar a cor do domínio exclusivo da matéria.

A retrospectiva apresentada na Pinacoteca paulista começa com a mostra de telas figurativas pintadas a óleo na década de 1940, tal como a bela pintura dos empinadores de papagaios verdes, e se estende até uma instalação mais recente, da década de 2000, com a qual o artista desconstrói os volumes em cores. Essa cromointerferência, que envolve inclusive os corpos dos observadores, é feita com a projeção cruzada de faixas das cores azul e amarela (se não me engano) em uma sala branca, onde balões também brancos e pendurados no teto se agitam perdendo as linhas de contorno.

O passeio por cada uma das salas revela como a estrutura expositiva contribuiu para facilitar a nossa compreensão do discurso do design e pintor, posto em prática nos campos da radiação das cores, do comprimento de onda cromática e de toda a migração que ele fez da pintura de realismo social para o aprofundamento nos estudos de luz e percepção. O controle meticuloso das superfícies e sua relação com o ponto de olho do espectador vai nos desacomodando do senso comum pelo respeito à subjetividade do nosso olhar.


As vitrines com esboços de criações sobre papel, o preto e branco das gravuras e dos desenhos de ilusão de ótica, as composições geométricas abstratas, os painéis multicores em constante transformação, os ambientes cromatizados, as ondulações dos tons, as mandalas em efeito de vibração de retículas, os documentários em vídeo sobre o seu processo de trabalho, as máquinas e ferramentas inventadas por ele para dar precisão às canaletas de alumínio e o corte das lâminas de papelão e algumas maquetes de edificações vestidas de retalhos de cores, como os silos miméticos de um moinho de trigo, produzem uma emoção estética a reforçar a posição do observador diante da obra.

Há momentos na exposição "Cor no tempo e espaço" que vemos cores que não existem, mas as vemos; logo existem. São cores geradas pela proximidade de outras cores na fertilidade da luz e do olhar. No lugar de algo fixo, dependente de suporte, um organismo que ganha vida na realidade da luz, vibrando, flutuando e dialogando com o nosso plano sensorial bem além dos sentidos. Para mim, esse foi um encontro de comportamentos entre a minha percepção e a atitude da cor.

Por possibilitar que a cor seja vista como detentora de uma realidade própria e por colocar o entendimento do que chamamos de cor na dimensão dos tons e do movimento, o trabalho de Cruz-Diez transita na atemporalidade da aparição e da desaparição. Ao longo dos anos ele foi dando provas disso em investigações sobre a instabilidade da luz e da cor, isolando uma daqui, aproveitando a complementaridade de outra acolá, colocando filtros refletores de um lado e induzindo condições de visibilidade por outro. E foi categorizando isso como cromosaturação, transcromia, cromointerferência, fisicromia, e desenvolvendo fases conceituais e tecnológicas de induções cromáticas e cromoscopia, para atingir o estágio maturidade que alcançou na fenomenologia ótica da cor.

Dono de um estilo visual que o destacou como um dos mais importantes artistas plásticos da América latina, Carlos Cruz-Diez é um artista gráfico e pintor que saiu das galerias para os logradouros públicos. O sistema de hastes coloridas (fisicromia), criado por ele para possibilitar frequências cromáticas em superfícies e, assim, expressar a vida própria das cores, destaca-se como arte em prédios, corredores e calçadas de grandes cidades do mundo. Para tornar-se uma referência internacional também em intervenções de arquitetura e urbanismo, conquistadas por sua forma peculiar de tratar a cor, a luz e o movimento em variadas situações de condições culturais e climáticas, Cruz-Diez acreditou na essência participativa das cores. 

quinta-feira, 19 de julho de 2012

A midiaeducação faz 80 anos (final) - 19/07/2012




O fato de a educação ser hoje em dia muito mais do que uma atribuição escolar, aumenta a importância da escola como ambiente de sociabilidade comprometido com a potencialização do contexto experiencial local, do conhecimento crítico universal e da aprendizagem significativa. Fora da vida escolar não há como assegurar a integridade dos aspectos cognitivos, culturais, relacionais e afetivos, embora não haja também como fazer isso sem o fortalecimento da midiaeducação no processo educacional.

A busca pela construção de uma compreensão comum de sociedade, iniciada há oito décadas pelos pioneiros da nova educação, permanece desafiante, principalmente porque as mídias de massa, como destacadas provedoras de representações, tendem a rejeitar uma experiência pedagógica que fuja aos encartes, cadernos especiais e programas educativos audiovisuais. A ampliação dessas iniciativas esbarra nas contradições homogeneizantes da educação tecnomidiática e sua aplicação em lugares culturalmente diversos.

O compromisso educacional dos sistemas massivos de comunicação começa com o fortalecimento da liberdade de expressão, da circulação de interpretações e de análises com posicionamentos explícitos e da veiculação de notícias livres. O futuro do jornalismo, por exemplo, está atrelado à clareza da voz que toma partido, que diz por quem torce e que assume a parcialidade do ponto de vista, simplesmente porque se inspira em valores e interesses defensáveis.

As empresas de serviços de relacionamentos, a indústria de games, os portais de venda de conteúdos, os serviços de buscas e as agências de comunicação mercadológica, dificilmente aceitarão uma corresponsabilidade educacional sem uma grande e firme pressão social. Essas corporações têm o domínio mundial das atenções e obviamente não querem perder vantagens comerciais em nome de qualquer projeto de coletividade. Os limites das mídias de massa no desenvolvimento da midiaeducação apresentam variados conflitos. A perturbação gerada pela abundância de dados e informações é uma delas. Outra é a confusa distinção entre o que é de interesse social e o que é criação de valor de mercado. Às vezes a deformação educativa está apenas no jeito de expor, como é o caso da publicação das notas e fotos de socialites nos cadernos de arte e cultura e da promoção de celebridades midiáticas como modelos, disfarçando o mundo do espetáculo de realidade objetiva.

Ao ocupar o cotidiano escolar, o mercado informacional-cognitivo trabalhou com a supervalorização da tecnologia, dos meios eletrônicos, digitais e interativos sobre a comunicação no fazer pedagógico. A formação do usuário de educação, para a aplicação das novas tecnologias como ferramenta pedagógica e didática, contou com a vulgata da aceleração do tempo, com a força invisível da informação pulverizada, com a facilidade da produção de mensagens escritas em tom de oralidade e com o determinismo da técnica sobre o humano, recurso ardiloso que chamo de maktub digital.

O que inicialmente era apenas "TI", ou seja, tecnologia da informação, ganhou um "C" de comunicação, formando a sigla "TIC" e ganhando uma abrangência conceitual pouco efetiva. Mesmo assim, os laboratórios de informática viraram moda, como se por si possibilitassem o nivelamento entre a escola e a sociedade. E muitos processos educativos ficaram reféns da ideia de neutralidade que foi vendida com a TIC, enquanto suporte para a ampliação da aprendizagem. As escolas mais atentas conseguiram perceber que não dava para educar somente com a posse da tecnologia. Antes de tudo, deveriam refletir sobre a própria tecnologia.

Na atualidade, a incorporação dos novos sistemas de mídia nos processos de educomunicação e de midiaeducação precisa ir além da TIC. Mais do que aproveitar seus recursos para soluções pedagógicas sonoras e visuais, para o incremento de didática participativa e para a construção de territórios de identificação, cabe escapar do bullying dos defensores de equipamentos que estimulam mais a mente do que os sentimentos, não fazendo caso do tempo para a reflexão interior. Pulamos uma etapa, mas ainda temos condições de recuperá-la, por meio de uma boa articulação do que poderíamos apelidar de TEC; tecnologia, educação e comunicação, entre si e com a sociedade.

A TEC seria o tripé de base da comunidade educativa para a experiência da interdependência do múltiplo repertório cultural e educacional em trânsito pelas vias e infovias. Para isso, os planejamentos pedagógicos de midiaeducação teriam ou terão que passar por uma reconfiguração comunicativa e educacional, na qual a integração dos processos tenha como suporte a dialética formadora da tecnologia, da educação e da comunicação. É na catálise do ponto comum desses três conjuntos que ocorre a midiaeducação. Para que, com os locus da web, a ampliação da esfera pública não siga trazendo consigo a possibilidade de promoção apenas do consumo, mas também da cidadania, as inovações pedagógicas com técnicas midiáticas (Informação, ficção e entretenimento) podem ter intensificado o ensino sobre as próprias mídias (com as mídias), sem que se esqueça, todavia, da importância da convergência de autônomos complementares: o educador saber que pode atuar também como comunicador e vice-versa; e o mercado de informática saber que os dois sabem que não dá mais para deixar de cobrar o seu compromisso educacional diante do consumismo.

A proeminência do papel das mídias na formação da sociabilidade exige o aprofundamento e a ampliação do debate sobre a educação para o consumo, com extensão para o impacto do poder da visibilidade na constituição espacial e temporal da vida em sociedade e suas repercussões no transbordamento da esfera íntima.

O problema é crítico porque a migração do controle dos meios de produção para o controle dos canais de transmissão de dados e informações criou uma verdadeira webtruste, atualmente constituída por corporações do comércio virtual de conteúdos, de serviços de busca e relacionamento, a exemplo da Microsoft, Google, Facebook, CNN e Fox.

A essência da midiaeducação se dá na zona de interseção da tecnologia, da educação e da comunicação (TEC), como campo de eventos civilizatórios, dinamizado pelo engajamento de pessoas no processo educacional, a despeito de serem ou não formalmente educadoras. Algo como as vivências educacionais da pedagogia da Dona Benta, na obra lobatiana, que tem na cultura a substância adstringente da midiaeducação em um processo de elaboração discursiva capaz de preparar as pessoas para se orientarem no mundo, pensando por si e para saberem o que buscam.

A compreensão de que o lugar, as circunstâncias e os interesses na produção de mensagens têm vínculos diretos com os indivíduos, os grupos e as comunidades, liga o saber local ao não-local, na construção de sentido, de conhecimento e de relações (não apenas de contatos). Quanto mais teias de comunicação existirem, mais necessidade da cultura local para a interação humana, sob pena de nos tornarmos apenas usuários passivos nas estatísticas de consumidores finais.

Parafraseando o manifesto da Nova Educação, de 1932, penso que a sociedade deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possível, todos os recursos possíveis da midiaeducação para a promoção de significantes culturais, que correspondam à vida, com seu valor estético, produtivo e intelectual. Afinal, midiaeducação não é a intermediação de modelos ideais, mas a criação de oportunidades de emancipação. 

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A mídiaeducação faz 80 anos - 12/06/2012


À primeira vista o tema da mídiaeducação pode parecer algo novo, surgido por força da crescente influência das tecnologias eletrônicas e digitais. Claro que a onipresença das mídias na formação do ser social ganhou proporções grandiosas na atualidade, mas a necessidade de exercitar o entendimento crítico da informação e o sentido de tratar os meios de comunicação de massa como parte indissociável dos sistemas educacionais é um debate que está fazendo 80 anos no Brasil.

Tomo como marco para essa celebração, o manifesto da Nova Educação, assinado em 1932 por intelectuais comprometidos com a melhoria das condições sociais e culturais brasileiras, no contexto de um país imenso, com o futuro ameaçado por sua imensidão de analfabetos. Dentre os signatários desse importante documento estavam o educador Anísio Teixeira, a escritora Cecília Meirelles e Roquette Pinto, o pai da radiodifusão brasileira.

No trecho que trata da busca por uma propagação de conteúdos considerados fundamentais ao processo educacional e à formação de uma compreensão comum de sociedade, eles foram abertos e taxativos quanto ao uso das mídias no processo educacional: "A escola deve utilizar, em seu proveito, com a maior amplitude possível, todos os recursos formidáveis, como a imprensa, o disco, o cinema e o rádio". Com essa afirmação eles reconheceram e invocaram o potencial da mídia como parte relevante da comunidade educativa.

A repercussão do pensamento desse grupo diversificado de educadores ganhou concretude na carta constitucional brasileira, que indica uma necessidade de preferência dos meios de comunicação social para as "finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas" (art. 221, I). O texto, constante da Constituição de 1988, deve ou deveria alcançar, inclusive, os meios de transmissão de informações e do comércio de conteúdos presentes na rede mundial de computadores.

O tema vem sendo tratado nessas oito décadas ao sabor das inquietações e dos interesses de cada conjuntura. Em 1942, o educador argentino-uruguaio, Mario Kaplún, avançou na perspectiva da inter-relação entre educação e comunicação para a formação cidadã e criou o conceito de educomunicação, tendo ele mesmo se tornado um educomunicador ao trabalhar com o sentido freiriano de visão crítica das mensagens em programas de rádio educativa. Nos anos 1960, a "mídia-educação", foi fomentada pelas Nações Unidas, como alternativa para a formação em escala do sentido da nova ordem da sociedade de consumo.

Ensinar sobre as mídias e com as mídias, dentro de um propósito cidadão e não apenas comercial continuou e continua sendo desafiante. O cabo de guerra entre os interesses da sociedade e do mercado, que já tinha na televisão um problema nada simples de ser resolvido, foi intensificado sobretudo com a massificação da internet nas três últimas décadas. Algumas dessas movimentações ganharam realce em simpósios de grande envergadura, como o que foi realizado pela Unesco, na Alemanha (1982), em cujo documento final - a Declaração de Grunwald - o poder formador da mídia foi reconhecido e valorizado como de destacada importância para o mundo moderno.

A constatação de que as telas, inicialmente de cinema e televisão, e mais recentemente, de computador, celular e tablet, passavam e passaram a "educar" mais do que as escolas e as igrejas, levou os participantes a defesa de uma alfabetização que preparasse as pessoas para esse mundo de poderosas imagens, palavras e sons. Essa proposta de mídiaeducação implicou em reavaliações das prioridades educacionais, voltadas para o envolvimento mais amplo dos responsáveis pela educação - incluindo aí os profissionais de mídia e os tomadores de decisões - na busca pela preparação de uma cidadania responsável.

Passados 25 anos de Grunwald, um encontro semelhante em Paris (2007), reforçou a necessidade da mídia-educação, com ênfase no desenvolvimento das chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). A agenda francesa pregou a vinculação das mídias de massa com a diversidade cultural e direitos humanos, numa articulação capaz de trazer em si escolas, famílias, associações e profissionais de mídia, com vistas à emancipação social.

O tempo passa e cada vez mais as mídias ganham importância na formação das pessoas, fazendo com que o debate se torne dia após dia mais atual e urgente. No início deste mês (1/7) fiz uma palestra sobre o tema "Mídiaeducação: debatendo o papel das mídias na educação para o consumo", no "I Meeting Nacional de Educação e Tecnologia", ocorrido no Teatro Guararapes, do Centro de Convenções de Olinda, em Pernambuco. Para se ter uma ideia do interesse pelo tema, o auditório tinha cerca de 500 pessoas presentes em plena tarde de domingo.

Acredito nessas educadoras e nesses educadores que estão se mexendo como podem entre a especialização e a interdisciplinaridade, entre o curtir e o participar, o físico e o virtual, as culturas e a cultura de massa. Pessoas empenhadas em encontrar o lugar da educação no novo Brasil em curso, na nova configuração geopolítica mundial, nos novos sistemas de comunicação e seus horizontes de teias, nodos e canais, nas novas formas de percepção, compreensão e de atuação cidadã, enfim, nas buscas por ressignificações da modernidade de exceção.

A mídiaeducação é um tema desafiador porque coloca as estruturas de comunicação social dentro do conjunto de sistemas institucionais e de vivências de educação. E hoje esse complexo de núcleos de sociabilidade tem imbricações de elevado poder, perpassando os ambientes familiares, escolares, espirituais, governamentais, empresariais, midiáticos e em grupos de afinidades, que se estendem desde interesses esportivos e artísticos até os de negócios, drogas, violência e de entretenimento.

Nesse cenário de trancelim, onde a joia sagrada é a educação, os encontros e desencontros de expectativas vão gerando dilemas inquietantes. O principal deles está na sensação mútua de potência e de impotência gerada, por um lado, pelo enriquecimento das possibilidades educativas disponíveis nas condições excepcionais de suportes digitais e pelas infovias e, por outro lado, pela dificuldade de encaminhamento dos interesses sociais permanentes, em franca disputa com o imediatismo praticado pela nova economia, de cunho imaterial, que domina o mesmo aparato para a venda de conteúdos.

A gestão social da educação oscila entre ética, estética e consumismo. É quase impossível uma conduta humana decente e sensível em uma situação de predomínio da transferência dos ideais de felicidade para a insaciável aquisição de objetos. Enquanto os anseios de correção de injustiças históricas fragmentam de modo abusivo a estrutura curricular, as escolas que viraram meros pontos de venda tentam destruir o livro para impor o tablet, como se ambos não fossem plataformas de leitura com características específicas.

Nessa geografia de interconexões virtuais, por onde a mente pode transitar com desenvoltura, e dos lugares físicos, onde o corpo pode aferir que tem cabeça, tronco e membros, educar passou a ser um misto de embaraço e ato de coragem. "A carreira ou a vida?", perguntam-se as mães, os pais e cuidadores quando pensam em educação. Fragilizados pela falsa dúvida, muitos decidem pela terceirização dos filhos, entregando-os para a modelagem do inteligente vazio em estabelecimentos comerciais camuflados de educacionais (continua na quinta-feira, 19/07/2012). 

quinta-feira, 21 de junho de 2012

São João em Maracanaú - 21/06/2012

Andei por um bom tempo meio desencantado com a descaracterização provocada pelos exageros dos figurinos, dos passos das danças e dos autos das quadrilhas juninas e com a homogeneidade e o empobrecimento artístico dos shows incorporados às festas de São João. Isso vinha me inquietando porque sei da importância desses eventos para a cearensidade e do tanto que eles têm de alma nordestina e de potencial turístico.

As festas juninas estão direta ou indiretamente entre os traços culturais mais presentes no Ceará. Constituídas e organizadas simbolicamente como decorrência do nosso sistema de relações sociais, formatado a partir da influência histórica da colonização, modificaram-se ao longo dos anos e continuam em franco processo de alteração, enquanto festejos oscilantes entre manifestação popular espontânea e produto da cultura de massa.

Resolvi tomar pé de como se dá uma grande festa junina atualmente e, sábado passado (16), fui ver de perto a de Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, considerada a Capital Junina do Ceará. Adianto que fiquei positivamente impressionado com a estrutura de aproximadamente quatro hectares, circundada por tapumes de madeira e divida em três ambientes: quadrilhódromo, praça de shows e uma cidade cenográfica em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga. Tudo bem organizado pela municipalidade, com entrada gratuita e bem-estar de segurança.

A concepção de três ambientes em um só espaço destaca-se por sua configuração integrada do sentido atual das festas juninas, dando novos significados a uma diversão antes orientada principalmente por intenções pastorais. O deslocamento do cunho religioso para o cultural estava coloridamente caracterizado na cidade cenográfica, onde a representação da capela apresentava a mesma distinção do xilindró, da radiadora, do engenho moendo cana e do cabaré da luz vermelha.

A presença desses elementos tradicionalizados na vida interiorana, conjugados e conjurados na mesma área, abre diversas possibilidades de conotações, analogias e permutações porque se resumem apenas a um ordenamento festivo e não a qualquer prescrição social. A simples combinação de réplicas abre passagem para validades particulares e suas compreensões relativas, muitas vezes guardadas no íntimo de cada pessoa como algo apagado de sua cultura.

Convém lembrar que Maracanaú é uma cidade industrial habitada praticamente por desterrados. Para seus moradores, aquele espaço público deve reacender uma via de identificação cultural profunda, elevada pelo sentimento atávico de quermesse, misturado em fantasias de clubes e de praças de igreja e de mercado. Nessas festas de São João, que a cidade realiza há oito anos, as pessoas têm a oportunidade de receber, por quase um mês, centenas de visitantes, provenientes de municípios vizinhos, além dos integrantes dos cerca de oitenta grupos de quadrilha que se deslocam para lá em busca de diversão e dos títulos dos festivais que acontecem no quadrilhódromo.

Tenho consciência de que as festas juninas, como toda invenção social coletiva, precisam mesmo ser repensadas a partir das mudanças ocorridas na sociedade e, por conseguinte, no nosso olhar sobre a cultura. Na dinâmica da vida urbana talvez seja de pouca razoabilidade querer um folguedo nos moldes dos mais isolados recantos do mundo rural. O que me embaraça a mente quando fico matutando sobre isso é a sensação de carência de estímulo ao prazer da apreciação, acentuada especialmente na praça de shows. Minha expectativa é que o encontro e a dispersão que essas festas produzem estiquem o alfenim da sabedoria popular até libertar a sua consistência e o seu sabor mais puro de melado com goma.

O que me pareceu mais relevante na ida ao São João em Maracanaú com a minha família foi não ficar preso ao claro e escuro, até porque no fundo, no fundo, o preto e o branco são policromáticos. Procurei fazer o exercício de dar prioridade aos fatos na minha experiência perceptual. Transitamos descontraídos na plasticidade da cidade cenográfica, do quadrilhódromo e da praça de shows, entre bandeirolas e balões no efeito recíproco de saturação e brilho das cores estouradas da decoração, sem cobrar o que poderia ser claridade e escuridão.

No percurso evolutivo das festas juninas, muitos altos e baixos já foram deixados para trás. O mais importante de tudo é que a essência dessa tradição ainda não desapareceu; o que era não é mais, contudo, segue com vigor em busca de renovação e sentido. A estética das quadrilhas perdeu as nuanças intuitivas da cultura popular e, salvo exceções, se perdeu na distração de um público difuso, aparentemente conformado com suas necessidades de escape da rotina e dependente da relação direta do mercado com as massas.

Qualquer dia desses, quando o Brasil e o Ceará perceberem que não dá para se desenvolverem de verdade sem um ministério da cultura e sem uma secretaria de cultura pra valer, certamente esse tipo de manifestação ganhará os cuidados devidos. Não defendo com isso que se gaste o menor tempo sendo contra o que está estabelecido. Assim como em alguns bairros e povoados as pessoas continuam fazendo festa junina orgânica para o viver comunitário e o comércio de shows domina as arenas de bandas, espera-se que um dia os governos venham a dar apoio sistemático ao que faz a diferença em qualidade e liberdade criativa.

A festa de Maracanaú é uma síntese bem estruturada do que somos na atualidade em termos de considerações à cultura. A estrutura "três em um" desse evento mostra-se valiosa por permitir a distinção do que há de músculo nos grupos de quadrilha, de voz nos animadores de palco, e de semblante no campo social coletivo da cidade cenográfica, criando as condições de despertar nas pessoas o que elas ainda podem ser, enquanto parte dessa manifestação viva do nosso calendário cultural (e que deveria ser turístico também).

Em que pese a beleza das nossas praias, não há melhor forma de dar sustentação ao turismo do que pelas revelações das nossas práticas culturais. Se o que temos ainda não está totalmente pronto, a pressão da difusão ajuda a melhorar. Neste aspecto, as quadrilhas juninas fazem parte do nosso acervo simbólico, tanto no tocante à sua expressão social quanto em relação à economia que movimenta a tecnologia utilizada, as linguagens a que recorre e os conceitos que traduz.

Infelizmente temos, tradicionalmente, um turismo com ideia limitada de cultura e, por isso mesmo, pobre em ofertas culturais. É provável que a falta de atenção às festas juninas encontre justificativa na ideia de que esse tipo de evento existe em outros estados nordestinos, portanto, não haveria muita razão para um visitante querer pagar para apreciar ou participar desse tipo de atração. Ledo engano; é o modo como se apresenta uma manifestação cultural que a torna atraente. Neste caso específico, a Capital Junina do Ceará está a apenas 25 quilômetros da avenida Beira-Mar, onde ficam os principais hotéis de Fortaleza.

O modelo tríplice adotado por Maracanaú ainda levará um bom tempo para ser o tal, mas já está preparado para receber turistas. Embora seja um espaço provisório de interações, ele desenvolve-se subjacente a uma manifestação cultural de grande valor para o Ceará. Gostei de ter ido ao São João em Maracanaú. Lá me diverti, encontrei amigos e refleti sobre o que essa festa pode representar para além do evento no nosso horizonte cultural e turístico.